páscoa deste dia

digo-vos que às vezes vejo cinza em jarros brancos tão ténue cinzento de água fria
que frio de medo de uma cruz tão solitária de alta de dura de pura entrega
pai porque me fazes isto que eu não merecia aqui despido cuspido
coroado de espinhos que são espinhas atravessadas na garganta deste tempo

.de um tempo apaixonado mas tão lento em que me revejo pássaro de asas abertas
desfeito perfeito cravado no meu peito um leve inspirar refeito
quero ser outra vez um menino nos teus braços e contar-te histórias de anjos
que vejo nos meus sonhos tão antigos tão para lá do mundo sem ter fundo
.

que nem sei se é mundo ou a ilusão de um pranto de um manto de rei bondoso
carinhoso que me fala de reinos perdoados encantados imaginados na cabeça
de um poeta de um asceta pai dá-me um coelhinho branco um chocolate preto
.
consola-me desta dor não me deixes rasgar o coração os meus pés tão magros
tão doridos feridos eu que andava sobre as ondas e os peixes saltavam de alegria
quero ser uma estrela em noite escura na claridade gloriosa da páscoa deste dia
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com cheiro de flores de jasmim, desejo-vos um coelhinho branco e um chocolate preto!
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eu quero oferecer-te o meu coração
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Manuela Baptista
Estoril, 31 de Março 2010
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(fotos pessoais)

retrato de senhora enquanto peixe

Os pés não chegavam ao chão e ficavam ali a baloiçar para a frente e para trás, outras vezes batiam naquela espécie de caixote de madeira e o senhor dizia "está quieta!" ou "não consegues estar quieta?" e ela pensava "não!" mas fazia um esforço e de tanta força que fazia, caí-lhe um sapato e assustava-se, mas o senhor ria-se e ela dizia "Paco?" e conversavam os dois, sem pressa de ter a franja no lugar, a cara ligeiramente de lado, os joelhos unidos, os olhos a rir e a boca a sorrir.
Paco era espanhol, mas ela entendia tudo o que ele falava e ele ensinava-lhe como é que as lentes funcionavam e o flash e a aura que ficava depois do disparo, o arco-íris de cores a piscar na parede branca e mostrava-lhe os álbuns de fotografias, tantos! com tantos meninos sempre a sorrir e senhoras quietas, tão quietas, o olhar perdido quem sabe onde, senhoras antigas do tempo em que os cabelos não se despenteavam, em que os sorrisos eram discretos, calados, aquietados como as senhoras quietas.
Paco sabia as histórias dessas senhoras, às vezes tristes outras tão breves como as suas breves vidas e inventava-lhe outras histórias de quando ele andava na guerra e acreditava que um dia os homens seriam todos iguais e ela imaginava o estranho que seria, ser igual àqueles meninos sempre a sorrir, de sapatinhos de laço, pés juntos e a mão pousada sobre o joelho direito.
E para estar assim quieta e não tremer, ela imaginava que era um peixe no fundo do mar, um peixe de muitas cores que ficam imóveis durante tanto tempo e não piscam os olhos porque não têm pestanas e não mexem um milímetro das barbatanas apesar das correntes, apesar das anémonas e das lulas gigantes, dos tubarões e das baleias brancas.
Ela dizia "O meu pai tinha uma máquina Kodak e não precisávamos de estar assim sentadas num banco..."
Paco fingia que não ouvia, enfiava a cabeça numa enorme manga preta e disparava. O arco-íris tinha a cor dos peixes do mar e ela sabia que nos álbuns antigos, os meninos tinham baloiçado os pés de riso.


Esta é uma página que não consegue ter os pés quietos.
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(fotos pessoais)
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Manuela Baptista
Estoril, 27 de Março 2010

de tronco e pétalas

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deixamo-nos prender a uma ideia a uma certeza a um sentimento
e ficamos assim presos a ver passar o tempo
ganhando raízes pela terra dentro
tão por dentro e tão profundo como o início do mundo

. pasmando na beleza de um sol-pôr que tanto põe e dispõe como do mar as marés
dos navios os convés das ondas o sal e a espuma dos faróis a luz e a bruma
enredando caule e tronco bem acima do horizonte
em sóis e luas contados os enredos sibilados
.segredados salivados desejados despojados
na leveza de uma flor branca terna frágil
despontada na noite das estrelas abanada pela ventania
.molhada pela chuva na madrugada fria
esvoaçando pétalas como leve neve
em cânticos de ave trémula e breve
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este é o canto da ameixoeira em flor
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"...para que as pessoas exaustas deste mundo,
nele possam descansar serenamente.

Finalmente, sobre esta Terra,
Será firmado o sólido
Alicerce do Paraíso.

O jardim das ameixoeiras"

[Mestre Jikan]
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da Betty
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.de como as palavras e as imagens podem ter o dom de marcarem a vida de alguém.
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(para a Branca)



Manuela Baptista
Estoril, 24 de Março 2010
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- fotos pessoais -

LINEAR

(acreditam que esta foto é minha?!)
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gostamos de falar de flores já viu como estão belas as margaridas
entrançadas em frases coloridas suspiramos à tardinha
o coração colado às frésias e aos jarros ai se eu fosse melro preto
tosco
apenas o bico alaranjado em corridas loucas no telhado
.

engolindo o vento em cada esvoaçar descalço
porque se eu voasse para casa na casca apodrecida
de uma árvore qualquer era um percalço
e não o encalço que me calçava a primavera adormecida
.

tremenda é a lonjura prometida de um reino maior
melhor recortado em pedaços de veludo amor-perfeito refeito
em cada peito suspirando de alegria ou de monotonia

.rarefeito é o ar e a agonia se eu tivesse um espinho
era uma rosa mas não tenho nem uma flor cor-de-rosa
sou um vermelho escuro de sangue de loucura e de alegria
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Esta é uma página que apenas se deixa ler de um só fôlego.
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Manuela Baptista
Estoril, 21 de Março 2010

SENTIMENTO SEM NOME

Zip
Ursula I Abresch
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Um dia fez-lhe um avião, de madeira, um monoplano com hélices, fuselagem brilhante, trem de aterragem, o leme de direcção visível para que soubesse sempre para onde voar. Ela largou as bonecas, macias, de olhos perdidos no nada, caladas, ausentes. Segurou-o com as mãos pequeninas e perguntou "é um pássaro?", ele respondeu "não, é um avião! Voa muito mais alto do que os pássaros..." a avó dizia, "que disparate! as raparigas não brincam com aviões!" ele riu-se, pegou-lhe ao colo e fê-la voar de braços abertos e roncou como um potente motor e andou à roda para explicar que a terra era redonda e contou-lhe histórias de aviões de combate e lançaram-se de pára-quedas do muro mais alto do quintal. "Um dia, vais pilotar um avião como este e dar a volta ao mundo inteiro e aterrarás numa enorme planície ou num quente deserto, mas não terás medo, porque eu estarei sempre ao pé de ti para te ensinar!" Ela acreditava, porque a sua voz era meiga e ele era alto e belo e as suas mãos esguias traduziam em gestos aquele acreditar.
E ainda as suas próprias mãos eram tão pequeninas, quando ele partiu, mas o avião de madeira ficou, deu a volta à vida sempre com ela, na arca dos brinquedos, nas prateleiras dos livros, na gaveta dos tesouros, a fuselagem menos brilhante mas capaz de aterrar em qualquer lugar.
Às vezes de noite, quando tinha medo, deitava o avião na sua almofada e ouvia nitidamente o seu potente motor, o zumbir das hélices a cortar o vento e então abria os braços e perguntava "sou um pássaro?" e ainda hoje ele lhe responde "não! tu voas muito mais alto do que qualquer pássaro!"
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.para o meu pai.
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Manuela Baptista
Estoril, 19 de Março 2010

DE OURO


Agradeço à Graça Pereira ter encontrado ouro nestas histórias!
O tesouro que me ofereceu, está guardado aqui:
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Manuela Baptista

Tosca

foto de walter
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-Estás gordo!- gemeu baixinho-não te importas de te chegar um bocadinho para lá?
Gaspar deu um salto, despertado de repente de um sono profundo ainda perdido entre trincas e pâtés, já que de carapaus não percebia nada, a cauda eriçada, os pêlos do nariz esticados, atitude de combate e de bravura felina!
Ela riu-se e estalou ao sol.
-Não é lá muito educado ofenderes-me! Já reparaste como o meu pêlo é brilhante e os meus dentes fortes e aguçados? Eu sei que tenho uns quilos a mais, mas confinado como estou a quatro assoalhadas...proibido de entrar em duas delas porque afio as unhas nos sofás...-disse o gato.
-Se fosses esperto davas uma fugida, ias até ao porto de madrugada, roubavas um peixe ou dois, passavas pelo parque, afiavas as unhas e trepavas a uma árvore, miavas ao luar...sentias-te logo outro gato!
Ela riu-se novamente e Gaspar sentiu um toque de cristal dentro de si. Afastou-se ligeiramente e olhou-a, um pouco desalinhada, metade vermelha, uma parte de ocre, outra da cor usada pelo tempo para marcar os que lhe são fiéis, umas pinceladas de musgo, outra de líquenes, tosca, mas bela.
-Como é que tu sabes tanta coisa aqui parada há tanto tempo?-perguntou.
-Parada? Quieta às vezes, sim! Mas não sentes como a terra gira, como a estrutura do telhado range e como posso olhar ao longe e observar o que os outros não vêem?
Gaspar fez um focinho de quem não sentia nada daquilo e então ela contou-lhe das vozes que o vento lhe trazia, das pequenas sementes que aterravam por umas horas perto de si, das lagartixas que lhe faziam despudoradamente cócegas, dos ratinhos que escondiam migalhas de pão nos forros da casa e da chuva suave que a lavava, do granizo que a espancava, da suavidade da neve que a fazia adormecer. E de um menino magrinho, que todas as noites se esgueirava pela janela de um sótão e com uma lanterna pendurada ao pescoço gostava de contemplar as estrelas e de adormecer com os braços cruzados atrás da cabeça.
O gato pasmava com as coisas que ouvia e ela disse:
-E isto, não é metade daquilo que eu sei!
Uma noite, Gaspar ganhou coragem e com a ajuda do menino magrinho com olhos de estrelas, saltou de telhado em telhado e com o coração aos pulos correu pelas ruas desertas, foi até ao porto de pesca, esperou a chegada dos barcos, sentiu o cheiro a peixe fresco e a mar, enfrentou duas gaivotas brigonas, mas foi bem sucedido no roubo do seu primeiro carapau! De regresso a casa não se esqueceu de trepar a duas ou três árvores, de soltar as suas garras de fera e tão louco estava com esta aventura que deixou caída a sua coleira encarnada com falsos gatinhos e espinhas de peixe. De manhã, quando o dono abriu a porta ao leiteiro, ouviu-o dizer:
-Ia jurar que tinha deixado o gato dentro de casa...
A aventura de Gaspar repetiu-se outras noites e quando se encontravam nas tardes de sol em cima do telhado e ela estalava contente de o ver, ele sentia-se o gato mais feliz do mundo e trocavam histórias de vadiagem e sabiam os dois quantas andorinhas já tinham chegado, quantos melros a tinham bicado e acreditavam que a Primavera era a eternidade de todas as estações.
Mais tarde na noite, se existisse alguém suficientemente sensível para ansiar pela solidão dos telhados e conhecer o caminho das estrelas, poderia ver um menino adormecido com os braços cruzados atrás da cabeça e um gato enroscado numa telha, ligeiramente desalinhada, pincelada de musgo e de líquenes. Tosca, bela.
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Esta é uma página vadia, presa à terra pelo fio de uma telha.
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Vissi d'arte, vissi d'amore - I lived for my art, I lived for my love
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Manuela Baptista
Estoril, 16 de Março 2010

E SONHAR QUE ENTRO NA HISTÓRIA


Ando assim há uns dias...arranho as paredes, dou pontapés nas pernas das cadeiras, afogo pedras nos poços, lanço gritos, parto ossos! Uma voz estranha diz-me "está calada! para quê falar daquilo que incomoda, as pessoas estão cansadas de coisas tristes, querem histórias de navios afundados mas rapidamente reconquistados na bravura das marés, ondas gigantes e assustadoras mas que chegam mansas e pequenas junto à praia. E no final, um cor de rosa pálido que não faz piscar os olhos nem espirros no nariz!". Não reconheço esta voz, não é minha nem quero saber de quem será! Eu sou fogo e água e terra e mar revolto, quando amo gosto, quando desgosto grito.
Neste espaço onde tenho encontro marcado e desejado, não sou uma imagem num quadradinho pequenino, um avatar ridículo, uns olhos assustados, uma pintura abstracta ou concreta, num desconcreto medo de me expor e também não é desta maneira que vejo e sinto os que me falam e me emprestam as suas palavras e me oferecem a sua amizade!
A minha viagem pelo estranho mundo dos blogues, começou na
Casa de uma mulher corajosa que perdeu um filho muito jovem e é a voz dessa mulher que eu quero hoje ouvir e que tem repetido tantas vezes que apenas falamos do sucesso, das curas, das lutas que terminam com uma vitória, mas ignoramos o sofrimento e a coragem dos que lutaram e no final acabaram por partir! Dos que se libertaram e dos que os acompanharam até essa partida e para além dela..
E é aqui que começo a contar-vos baixinho e devagar que, um de entre os seguidores do meu blogue se foi embora.
Angelito partiu e deixou-me entalada entre páginas em branco, com um sentimento estranho de partida e de chegada, de respeito e de tristeza, de ganho e de perda. Os seus amigos falarão dela melhor do que eu, passageira recente da sua escrita e da sua luta, mas este distanciamento leva-me a ousar dizer-lhe que entendo tão bem o que escreveu na página do seu perfil sobre os livros de que gostava: "Os que me embalam docemente até dormir e sonhar que entro na história".
Entrou na história, entrará em muitas histórias, jovem corajosa, brava, doce, cheia de sentido de humor!
Nós não somos uma imagem num quadradinho pequenino.
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Espero não ter chocado nenhum dos seus amigos, mas para sair daqui eu tinha que passar por aqui.
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Manuela Baptista
Estoril, 14 de Março 2010

LITANIA PARA ESPANTAR O ENGANO DOS DIAS

the nightingale
Steven Kenny





Às vezes pensamos, é hoje! com o coração preparado para o hoje que é e sem sabermos como, hoje já é amanhã e não foi hoje e não sabemos quando será. É como encontrar o ninho de um pássaro sem pássaro, esperamos o pássaro todas as tardes, dizemos, como pode haver um ninho sem pássaro? e à terceira tarde do terceiro dia, aceitamos que apesar do ninho, anda por aí um pássaro sem ninho ou apenas um ninho que se perdeu de um pássaro.
Se dizemos, um dia! deixamos em aberto todos os dias, sem portas, sem trancas, não há chave que dê a volta, não há armário que os guarde, não há poço onde mergulhem, não há rede onde permaneçam cativos. Estão soltos, lançados à velocidade da luz e até a luz vacila quando os encontra em aberto, vulneráveis, voláteis.
Quando percebemos que um dia não são dias, encontramos o perfeito dos nossos dias e desejaríamos que nunca terminasse, que cada hora fosse uma vida e assim teríamos vinte e quatro vidas e a eternidade seria a dimensão de uma bem-aventurança até ao fim dos nossos dias!
Também há os que recusamos, a quem gritamos não pode ser! não quero! não deixo! e temos uma faca escondida no peito, uma pedra da sorte guardada no bolso, uma folha quadriculada dobrada em quatro e cada quadrícula é uma porta secreta onde escondemos uma parte de nós, tantas partes de nós tão secretas e até pensamos, olha, vai ali uma parte de mim! tão bonita esta parte de mim! como é que eu não vi esta parte de mim?
E com a faca, com a pedra e com a folha, cantamos um canto encoberto, oculto, íntimo, que retira o medo dos corredores profundos e estreitos, daqueles que levam e trazem os dias, onde apenas há espaço para cada um de nós.
E num tempo cavado tão fundo teremos nos olhos o espanto de um dia, em que reencontraremos todos os dias na fragilidade abismada, contida, consentida, de sermos o pássaro que encontrou o ninho.


Esta é uma página que eu não sei porquê e que vos entrego colada entre o espanto e um canto de esperança.



Manuela Baptista
Estoril, 8 de Março 2010



O PINTOR E A LUA

Era tão tímido que se escondia em qualquer lado, nos roupeiros, na gaveta das toalhas, no sótão, debaixo da mesa. Não gostava que estivessem sempre a falar dele, a medi-lo para ver se tinha crescido, a pesá-lo para ver se engordara, a perguntarem-lhe se gostava de desenhar só para lhe ouvirem a voz.
A professora olhava para ele, chamava-o "Vem cá!" ele dizia "Quem? Eu?!". Não queria ser ele, mesmo que soubesse tudo na ponta da língua, não queria ser ele a ter que se levantar, pegar no livro, ler, interpretar! "Quero lá saber! Esta história não é minha! Eu oiço os pássaros lá fora e o sussurro do vento nas folhas das laranjeiras, quero roubar um ovo no galinheiro e fazer uma gemada amarela, tão amarela como o sol, afogá-la em açúcar e depois derretê-la na boca devagar, devagar..."
Gostava de andar por aí, aprender com o pai os segredos da terra, com a mãe a linguagem das plantas, contar as estrelas do céu, sonhar com os peixes do mar e depois, sozinho no silêncio da tarde à sombra de uma árvore, pegar nos lápis de cor e desenhar os mundos que a sua cabeça já não era capaz de conter e saíam por todos os lados e deslizavam pela gola do casaco, penduravam-se no cachecol e chegavam mesmo a entrar-lhe sorrateiramente pelas botas.
Quando já não cabia na gaveta das toalhas, nem debaixo da mesa e mesmo os roupeiros eram pequenos para si, passou a esconder-se de outras maneiras mais elaboradas, mais engenhosas. Os seus desenhos cresceram com ele e quando na rua alguém o reconhecia e apontava "Ali vai o Pintor!" ele dizia "Eu?!"
Quando inaugurava uma exposição de pintura e lá estavam, um presidente de qualquer coisa, um vereador de uma outra e uma senhora elegante e perfumada e falavam alto, muito alto para que todos ouvissem e diziam "Meu caro amigo!!É com enorme prazer..." ele sentia medo e procurava um sótão para se esconder, mas não é muito comum existirem sótãos nas galerias de arte, ou galerias de arte em sótãos.
Às vezes não aparecia mesmo e fugia para o mar e andavam todos à sua procura e cansados de esperar, discursavam uns para os outros, batiam palmas uns para os outros e comiam croquetes e rissóis pequeninos acompanhados por um cálice de vinho do Porto também pequenino e diziam "É uma honra...", uns para os outros.
Uma noite, esgotadas as fugas e as contra fugas, abandonada a sala no silêncio dos sonhadores, no chão os guardanapos de papel murchavam em patéticos recados "telefonas-me?" ou "tenho saudades..." e ele absorto, distraído das telas e das tintas, ali parado a pensar que as aranhas, se falassem...
-É lindo, este quadro da lua! -disse ela.
-Sim...eu também gosto muito- respondeu, acrescentando timidamente -É meu...
-Eu sei! Já li todos os seus quadros. -disse a mulher.
Ele olhou-a espantado e viu-a. Podia ser a avó, a mãe, a mulher, tanta mulher numa só pessoa, os olhos doces, o desenho das rugas na face expressiva e na sua cabeça já lhe desenhava para sempre o rosto e as alegrias de uma vida tão longa e as tristezas de quem sabe tanto e espera ainda tanto e teve tão pouco e diz não faz mal, pudesse eu ler todos os seus quadros, porque ler as letras eu não sei, éramos tantos e o bibe era curto e o lápis pequeno e a escola tão fria. As letras não sei, mas aprendi o olhar dos outros e as canções da vida, a cor da farinha e do fermento, os tabuleiros dos bolos de noiva, o cheiro da chuva e do anoitecer. E leio, leio tão bem a sua pintura, as falas que me conta em cada traço, a história da lua e da terra a secar, pudesse eu ter esse quadro ao fundo da minha cama e nunca mais teria medo ao deitar!
-Está reservado? Eu poderia comprá-lo às prestações? -perguntou ela baixinho.
Ele sentiu o coração enrolado e viu a avó, a mãe, tantas mulheres naquela mulher e deu-lhe o braço e ofereceu-lhe um Porto e dançou com ela entre a lua e o sol e mentiu-lhe como um namorado e disse, não está à venda, está reservado dentro do meu peito, deve ser do vinho não sei o que o digo nem o que faço!
E na madrugada fria e deserta embrulhou o seu quadro em papel de seda da cor do luar, com cordel de prata deu três voltas inteiras e um laço lasso, inventou um arauto e mandou-o entregar com este recado: "Peço desculpa pela confusão! Afinal o quadro foi sorteado e saiu-lhe a si porque foi a senhora mais linda que leu a minha exposição!"
Depois daquela noite, o pintor nunca mais se escondeu e sonha que o seu quadro da lua terá ainda por companhia, os pés de uma cama onde dorme uma menina, uma senhora, uma mulher, naquela mulher.
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Agradeço a um pintor tímido, a inspiração para esta história.
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Manuela Baptista
Estoril, 2 de Março 2010