Morava numa casa de pedra coberta de hera e antiga era a
casa e velhos os avós e os bisavós e ela tão pequena ainda. Ouviam-na mal. Ela
dizia, bom dia e eles respondiam, parou de chover minha filha. Esqueciam-se de
tudo, das horas, da sopa no fogão, das idas ao dentista, de fechar as janelas,
de chamar o cão. Perdiam-lhe as meias e os casacos de lã e trocavam-lhe o nome.
Maria, Ana, Carlota, Luísa, Margarida. Raramente acertavam e quando o faziam,
já ela ia longe.
Liam-lhe os livros das estantes, ensinavam-lhe
provérbios, advérbios e as palavras esdrúxulas acentuadas e as outras
esquisitas, estranhas como ela. Falavam-lhe da raridade das flores de
pessegueiro numa terra prenhe de pedras e escassa em húmus e em vida.
Ela amava os avós e estes gostavam tanto dela.
Às vezes perguntava:
-Onde estão as outras crianças?
E os avós dormiam.
No espelho do quarto escondia-se uma rapariga como ela,
mas feia, antipática, agressiva. Invejava-lhe a voz e o brilho dos olhos e se
ela dizia, olá! a outra baixava a cabeça, cerrava os punhos como se quisesse
bater-lhe e respondia-lhe o silêncio das superfícies desertas. Um dia fartou-se, tapou o espelho com um papel branco e desenhou uma árvore despida. Num
impulso, desceu as escadas a correr e gritou aos avós:
- Vou buscar as flores de pessegueiro e encontrar as
crianças perdidas.
- Parou de chover minha filha.
Lá fora a hera dos muros crescia reptante e os pássaros
debicavam-lhe os frutos, ávidos de alimento e cantoria.
16 comentários:
MANUELA BAPTISTA
Flor de pessegueiro
amor
frustrante
Belo como sempre
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 8 de Março de 2014
A emoção nunca me deixou prostrado, antes pelo contrário, quando me emociono, me levanto (caso esteja sentado) ou apresso o passo (caso não esteja parado). E é na sequência desses movimentos que não dispenso de seguir Violeta, não para a ajudar a ir buscar as flores de pessegueiro, mas para procurar as outras crianças.
Agora, que parou de chover e eu não tenho coisas mais importantes para fazer...
Violeta via a tristeza no espelho e saiu em busca das flores raras! Que bom para ela!
Beijos e boa semana, Manuela!
Olá, Manuela!
Metáfora amarga do Portugal interior de hoje:que vai minguando de novos e velhos, até ao dia em que há-de desaparecer.E onde já não há lugar para as Violetas crescerem...
Lindamente construído!
Abraço e boa semana.
Vitor
Os espelhos algumas vezes são assim, reais :)
Bjs e uma boa semana
Muito bela a história.
As pessoas que vivem nos espelhos são sempre diferentes.
Muito belo! Posso ver a menina a correr, a pegar as flores do pessegueiro, a procurar outras crianças, a olhar o espelho que sempre nos atraiçoa...
Um beijo, Manuela.
Reparei na coincidência da hera...
É só imaginar o que a criança
fará. Como sempre um texto mtº.
bom e que eu li com muito prazer.
Bj.
Irene Alves
Os avós são assim mesmo, surdos e esquecidos...
Mas é muito bom ter a felicidade de conviver com eles.
Mais um excelente mini-conto. Gostei muito, como sempre.
Manuela, tem um bom resto de semana.
Um beijo.
Talvez por ser Violeta...ela aceitava com carinho as deficiências dos avós...afinal as violetas não são as flores mais humildes?
Mas ela precisava de flores e de crianças para alegrar a sua ainda curta vida.
Aqui...com o mar ao fundo...as histórias continuam lindas.
Um beijo
Graça
Acho que tenho ainda uma criança perdida em mim, pois gosto de brincar de me perder por aí, nas paisagens longínquas do meu país...
Um beijo Manuela
Bia
.
.
. nunca será in.sustentável a leveza . que re.encontro neste en.canto Seu .
.
. a cada momento . de ligeireza . :) .
.
. íssimo feliz .
.
.
Kriu?
Nunca gostei de espelhos!
Até porque, nem respondem ao que lhes perguntamos, pelo que, estou farta e cansada de tanta indiferença!
Kriu!
Os pássaros debicam tudo o que lhes aparece pela frente, mesmo que não tenham fome, o que se traduz num vício esvoaçante...
Têm mais olhos do que barriga, essa é que é essa!
ainda bem que voltaram!
isto sem vocês não tem graça nenhuma
É como o retrato do nosso Portugal profundo.
A desertificação.
Os velhos que restam nas aldeias e as crianças que são tão poucas.
Violeta também é nome de flor antiga que rareia nos jardins. E as flores de pessegueiro são tão maravilhosas como o fruto que prometem.
Um abraço.
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