Era uma vez um pássaro que nascera redondo. Saudades do
ovo, diziam as gralhas. Improvável a quilha, afiançavam as águias. E logo se
esqueceram dele.
Como o pássaro não sabia que era redondo e desconhecia a linguagem
das águias, foi crescendo pelo rasteiro das ervas e dos caminhos,
aventurando-se nos montes mais baixos e rebolando até à base. Era uma forma
divertida de se deslocar pois tinha sempre duas perspetivas da paisagem. No
entanto sentia qualquer coisa a picar dentro do peito quando observava o voo
das aves ao amanhecer, o sol a alaranjar o azul do céu e o grasnar ruidoso a
libertar as gargantas. E o pássaro piava.
Apu ouvia-o. Não entendia a frágil coragem do pássaro, os
saltitos, a bola de penas curtas a rolar baixios. Apu era dourado de ouro
verdadeiro. A cobrir-lhe o dorso, uma manta às riscas de cor preta, branca,
siena queimada, ocre e amarelo gema de ovo. Colocado no parapeito de uma
janela, mexia apenas os olhos e batia-lhe o coração num anseio de liberdade. E
disse ao pássaro redondo que se arredondava na terra batida:
- Rebola até aqui. Quebra os vidros desta janela,
liberta-me do feitiço dos deuses que me fizeram estatueta rara.
O pássaro olhava-o, mas os vidros eram espessos e ele
distraído e foram necessários três dias e três noites para que entendesse o
pedido mudo dos olhos que mexiam. Então o pássaro quebrou o vidro e sangrou das
suas curtas penas. Apu estonteou com o ar puro da noite, inspirou e expirou a
habituar os pulmões recém nascidos, mas foi tal a alegria sentida que gritou ao
pássaro:
- Segue-me, vou ensinar-te a voar nos grandes espaços.
E começaram a subir. Umas vezes o pássaro esvoaçava,
outras, Apu carregava-o no lombo. Escolhiam os trilhos perigosos, as cordilheiras
altas. O pássaro transfigurava-se e Apu incitava-o a voar, mais leve, mais
solto. As penas feridas sararam, alongaram-se, ganharam a cor do ouro, da terra
queimada, do amarelo sol e a neve enfeitava-o aqui e ali. Quando o pássaro
cansado se enrolava, Apu irritava-se e cuspia-lhe, mas depressa restabeleciam o
equilíbrio entre o voo e a marcha e a coragem das alturas.
O pássaro nunca mais sentiu picos dentro do peito e Apu
nunca mais regressou ao parapeito da janela. O dono da casa substituiu o vidro
partido e como era poderoso e rico, enviou mil servos em busca de um ladrão de
estatuetas. Alguns de entre eles cruzaram-se com Apu mas não o reconheceram.
Esta é a história do pássaro que nasceu redondo e de Apu dourado,
de ouro verdadeiro.
E tinham inveja deles as gralhas e as águias anãs.
22 comentários:
MANUELA BAPTISTA
Bravo!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 18 de Janeiro de 2014
História linda e bela
Mil lições hei-de tirar dela
Para já, sinto um pico
dentro do peito
Tantos são os pássaros
que não sabem
para que lhes servem as asas
e passam ao lado,
com desdém
de todas as estátuas...
E eu repito, Manuela: como eu gosto de uma história bem contada...
E lembro Torga: "Ave que pode voar no firmamento só rasteja no chão por cobardia".
Um grande beijo.
Que maravilha, beijo Lisette.
Aposto que aquela editorazeca, a Lua de Marfim, ainda te vai pagar uma fortuna para publicares um livro com a chancela dela e deixar-se para sempre das "poetisas" à la minute...
Ou então, mais a norte, a Poética não sei das quantas, daquela criatura que tem um timbre vocal que mais parece uma corneta dos trezentos, optará pelo mesmo caminho, para não ter de fechar as portas...
Bravo!
Kriu?
Redonda de riso :)))
Kriu!
Os invejosos desconhecem sempre a força dos sonhos de quem desdenham.
Gostei muito.
Abraço
.
.
. como num voo . cada sílaba Sua . a decifrar a lonjura . deste chão a tanto céu .
.
.
. íssimo feliz .
. e um grande beijo . :))) .
.
.
Belo conto, onde a poesia e o conhecimento do mundo ondeia em ondas de filosofia.
Boa semana.
O pássaro redondo que tinha saudade do ovo......tudo de bom!!!
Suas fábulas fazem qualquer um viajar num tempo em que tudo é magia!
Um beijo Manuela
Bia
Agente lê e fica assim: - A modos de querer mais ou entender melhor...
Faz-me muita pena ver tantos pássaros com asas que não sabem voar e teimam em rebolar.
Será que deixaram de sentir o espinho dentro do peito ?
Olá, Manuela!
E o improvável aconteceu:por obra e talento de quem criou esta encantadora história cheia de magia: conto de embalar para os mais novos, e convite à reflexão dos outros que aqui a lêem.
Lindo!
Um abraço e boa semana.
Vitor
Manuela que beleza de conto como se diz aqui no Brasil.
Linda semana amiga beijos,Evanir.
gosto da maneira e da forma que dás aos personagens, que ganham vida e rodopiam, e voam nas tuas palavras certas e talentosas.
gostei!
boa semana.
beijo
e essa espécie de fogueira meia aluada?
cá para mim, comeste um parágrafo..
Comeste um parágrafo?
Como castigo, tens de escrever sobre o papa formigas e depois sobre o tigre de bengala, no Amadora-Sintra, por exemplo...
Kriu?
Foi um crime terem fechado o Júlio de Matos...
Kriu!
Lindo e emocionante, fez-me reflectir sobre os picos dentro do peito que muitas vezes sentimos…mas basta aprender a voar :)
Adorei
Beijinhos
Muito bonito... geralmente os tesouros estão escondidos na própria natureza do ser, e são os anões da vida que desejam secretamente ser ladrões de estátuas...
Beijinho amigo.
Beijinho amigo.
.
.
. este Daniel Silva não passa de um impostor . há muito que sei muito bem de quem se trata . é desta "gentinha" que a blogosfera se reveste .
.
. en.fim . é o que [não] temos .
.
.
Enviar um comentário