Rufus já não mora aqui. Chegou um pouco antes da noite do
primeiro dia, a chuva era imensa e de cada lado do passeio tinham-se formado
dois rios turbulentos. Bateu tão de leve na porta e se não fora a gata começar
a rondar desconfiada e a cheirar o tapete, eu não daria pela sua presença. Mas
perante a insistência do felino, abri. E ele ali estava, vinte e cinco
centímetros de uma espécie de rato a pingar água, um nariz comprido e vibrátil
de elefante bebé, os olhos vivaços. A cauda da gata cresceu, triplicou de
volume, a espécie de rato espirrou, a gata saiu e ele entrou.
- Venho responder ao anúncio – disse o bicho, numa
vozinha de erva fina - e acrescentou – eu sou Rufous Sengi e atravessei continentes
para aqui chegar.
- Ah - respondi eu, sentindo que qualquer coisa me
escapava. Mas ao ver a poça redonda que se formava à sua roda, reagi, fui
buscar uma toalha, sequei-o e ele sentou-se junto à lareira. Era bonito, o pelo
encarniçado brilhava e aquele nariz tromba não parava de mexer, era cómico, mas
no instante em que me preparava para dar uma gargalhada, lembrei-me, o anúncio!
Sim, fora eu. Dizia assim: Preciso com urgência de um conhecedor da antiga arte
de traçar mapas, geográficos, topográficos, mentais, lunares, concretos ou
imaginários, mas que sejam seguros. Para que eu fuja dos medos, das incertezas
e dos baixios da vida. E em letras pequenas: anexa-se contacto.
Espalhei estes dizeres pelas árvores, pelos postes de
iluminação pública, pelas lojas, pelos jornais e pela net. Colei-os nas janelas
dos comboios e nas costas das pessoas que me precediam na fila dos
supermercados. Até esse dia tinham-me respondido três criaturas: um
ilusionista, um fotógrafo amador e um contratenor. No entanto a cada um deles
faltava uma perspetiva que por mais que eu explicasse, eles não eram capazes de
entender.
Lá fora a gata começou a arranhar a porta, a pedir para
entrar. Rufus, alerta, espetou as orelhas, esticou as patas e preparou-se para
o desafio. Mal a gata surgiu ele iniciou uma corrida por baixo dos sofás, pelas
estantes, por cima dos armários. Saiu para o quintal e à medida que se
apercebia dos canteiros, das árvores e dos esconderijos, repetia os percursos,
cada vez mais rápido e com maior à vontade. A gata atrás, mal o alcançava e
quando estava prestes a consegui-lo, Rufus trocava-lhe as voltas e mudava de
caminho.
A gata, ofendida, rendeu-se, desistiu de o perseguir e eu
imaginei-o nas terras secas a fugir aos lagartos gigantes, a inventar trilhos,
a memorizar mapas.
Rufus ficou, nessa noite e nos dias seguintes. Trincava
duas ou três formigas, caçava baratas, roía frutos e sementes e escondia-se nos
meus bolsos para passear. Invariavelmente desafiava os cães, os melros e as
lagartixas, desatinava fugas e esperas. Eu observava e ia registando na minha
cabeça o que ele sabia de cor na sua.
Ele ensinou-me o significado da sobrevivência num meio
hostil e a habilidade de traçar alternativas. Rufus é o mais ágil dos
musaranhos. Nunca lhe perguntei onde tinha lido o anúncio que eu publicara.
Quando as chuvas abrandaram e os primeiros rebentos de
frésias cresceram pela relva, ele partiu. A gata foi com ele até ao portão a dissimular
afetos. Rufus, conhecedor da antiga arte de traçar mapas, com os olhos a
brilhar, levantou o nariz e regressou a casa.
29 comentários:
Rufous Sengi são dos bichos com maiores afetividades que conheço. Não há continentes que nos separem :-)
Cada um que chega ensina-nos sempre alguma coisa e, por isso, a vida é uma aprendizagem constante.
Ainda há Rufos ternos
que resistem
e nos apaixonam
Bjs
Fui eu que dei a ler teu anúncio a Rufus... ele mora em minha casa, é meu irmão. Eu, ilusionista, fui por ti rejeitado... apenas sei criar ilusões...
(será até por isso que deixaste de me visitar...)
Dava-me jeito um mapa desses de caminhos seguros para poder fugir "dos medos, das incertezas e dos baixios da vida".
Acho que vou aventurar-me e espalhar um anúncio desses antes que janeiro termine.
Um abraço e bom fim de semana.
MANUELA BAPTISTA
O que falta é ratinhos como tu, Rufous, para mapear caminhos!!!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 11 de Janeiro de 2014
Kriu?
Se tivesse ólicos seria tal qual o Rogérito...
Vai lá visitá-lo, rapariga!
Kriu!
Regressar a casa é sempre reconfortante...
Olá, Manuela!
Bichinho prendado esse Rufus, mestre na arte de viver a vida e da sobrevivência, e com quem, pelos vistos, muito teremos a aprender.
A mim, acho que me daria muito jeito acaso pudesse contratar um deles...
Que o 2014 tenha entrado com o pé direito, e que assim continue.
Um abraço
Vitor
não sei porquê, mas acho que conheço essa gata
Onde posso encontrar o Rufus, Manuela? Também eu estou a precisar de aprender "o significado da sobrevivência num meio hostil e a habilidade de traçar alternativas".
Uma história deliciosa.
Um grande beijo.
Hoje precisava de encontrar este rufus e deixar que ele corresse e ensinasse a sobreviver.
Um bichinho muito interessante. Parece-me que o reconheci e que temos algumas coisas em comum...o nariz comprido...
Hoje só passando pra divulgar o blog: http://umanjotriste.blogspot.com.br/
depois com calma volto pra te ler e comentar.
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.
. o ânimo é outro quando as palavras se estendem pelas veredas da Criação . ,,, . finalmente . é chegado o momento do justo reconhecimento . poético e pictórico . o Seu tributo . ascende na ascese de todas as realizações . todos os dias . a olhos vistos .
.
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. íssimo . feliz
.
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Gostava de o conhecer...! será que vai passar aqui por casa? Não pus anuncio, mas também gostava de aprender a fazer mapas... :)
Boa semana, Manuela!
O importante é sabermos que no fim tudo foi feito, mesmo que depois só tenha respondido um ilusionista, um fotógrafo amador e um contratenor...
beijinho amigo
e eu que sou tão atenta, não vi os anúncios...
:(
um texto que é uma fábula de sentires...
:)
Também vou colocar um anúncio destes a ver se me bate à porta um rufus que me ensine o significado da sobrevivência neste mundo :)
bjs e uma boa semana
Inevitável, toda chegada e toda partida nos ensina alguma coisa, mesmo que a gente não reconheça, as vezes, a partida nos fere a alma, mas o coração nos lembra que é preciso partir para reconhecer certos afetos. Certo? Acho que a gata sabia disso. rs
bacio
Eu btambém queria que um Rufus
aparecesse em minha casa.
Foi pena ter partido...
Mas há chegadas com partidas
garantidas.
Bj.
Irene Alves
Bem bonito continua o seu blog!
saudações poéticas!
Kriu?
Olha, nasceu outro estafermo, daquele casal de leste que cá mora em casa há uns tempos, ainda por cima e também por baixo, é cinzento, como a economia portuguesa, mas com o tempo ganhará cor, como os pais!
Não gosto dele! Detesto fotocópias!
Kriu!
Iguais a ti, há milhares, Kika Eufrásia!
é das vitaminas,
nascem cinzentos mas bicam que se fartam
Minha querida
E estamos mesmo precisando de quem nos ensine o caminho e a direcção a tomar neste mundo louco.
Como sempre um texto que vai para além das palavras.
Um beijinho com carinho
Sonhadora
É mesmo importante saber traçar mapas.
De contrário, perdemo-nos...
Manuela, tem um bom resto de semana.
Beijo.
Gostaria de gostar de ratos, mas eles só conseguem ver em mim um rato fêmea, já para não dizer uma rata, e transforma-se assim a coisa roedora na coisa ratada, como Camões dizia.
Olhe, adorei os bichinhos, ao menos ainda respeitam a minha invalidez
:-*
Kriu?
Venho desejar-te um bom fim de semana extensível ao roedor cheira ús com c...
Kriu!
Venho arredondar os comentários... No post seguinte não vale a pena, por já ser redondo...
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