Há um primeiro voo de morcego. Entre o candeeiro de rua e
o muro pintado de branco contam-se dez paralelepípedos e a lua não está visível. Este
instante é lusco, desfoca os objetos, disforma-os, é um ser que perdeu um olho à
procura da noite. As mães chamam os filhos distraídos a brincar pelos quintais
e repetem três vezes, vem para casa, vem para casa, vem para casa. Como se fora
uma reza, uma encomendação. Os animais de pelo macio deixam as tocas, levantam
o focinho a cheirar o ar, pacíficos e curiosos. As crias saciadas de alimento e
conforto, enroscam-se, talvez sonhem, ou talvez não. A ser este um território
apenas humano, como explicaríamos a existência dos seres fantásticos que o
povoam.
Era uma vez o guardião de uma gruta escondida na rocha,
tapada por uma pedra gigante que jamais alguém fora capaz de deslocar. O seu
senhor dissera-lhe, guardarás esta entrada de noite e de dia, com o frio ou o
calor, como se lá dentro estivesse o teu bem mais precioso, que neste caso é o
meu, e não farás perguntas nem tentarás sequer espreitar pela fresta mais fina
ou por outro lugar. Ele disse, sim meu senhor.
Pacientemente guardava a pedra e a gruta e o bem mais
precioso do seu senhor. Nos dias escaldantes suava e o suor penetrava na
armadura e queimava-lhe a pele abrindo-lhe feridas que muito doíam, mas não se
queixava o guardião. Nas noites estreladas olhava as estrelas e sabia de cor a
posição de cada uma delas em relação a si, à pedra e à gruta. Foi então que
apareceu um rapaz magro que parecia cansado e perdido e o guardião disse-lhe,
bebe da minha água e descansa no meu cobertor.
Ele bebeu e dormiu trinta horas seguidas e ficaram amigos
os dois.
A terceira casa a contar do início da rua parece abandonada.
As enormes portadas de madeira envelhecida têm a tinta lascada e permanecem
sempre abertas. A hera cresceu e multiplicou-se, sufocou as laranjeiras,
apertou as figueiras e mal respiram os figos e as laranjas amargas. A caixa do
correio permanece intacta e todas as quintas feiras o carteiro aí deposita um
sobrescrito da mesma cor das portadas de madeira envelhecida.
No entanto, as aves fizeram ninhos nos ramos e o cheiro
da magnólia persiste.
Uma noite, o rapaz não resistiu. Deslocou uma pedra saliente, outra e ainda mais uma e pelo buraco formado na gruta, espreitou. E deu um imenso grito.
O guardião tremeu e empalideceu e soltou uma
lágrima redonda que rolou pelo chão. Mas o senhor, impiedoso e grosseiro, transformou-o
num inseto sem asas.
A lua é plena no calendário lunar.
18 comentários:
MANUELA BAPTISTA
Se ainda agora anoiteceu como será o amanhecer povoado da tua fértil efabulação?
Esperemos para ver!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 20 de Setembro de 2013
Sendo a noite curta, e a luz extensa, como viver intensa, aquela infinita melancolia lunar
das nossas coisas findas?
Olá,Manuela!
Bonita manta de retalhos, hoje: as coisas estranhas que por aqui acontecem com o cair da noite... mais o triste fim do pobre guardião tentado pela curiosidade que matou o gato - a fazer lembrar os marinheiros de Ulisses às mãos daquela malvada Circe.
Bom fim de semana, com um abraço amigo.
Vitor
Kriu?
Sim, simplesmente obrigada Manuela Baptista, pela beleza dos textos, mas principalmente porque gostaria de escrever um poema para ti, pelo que és, pela tua amizade e agora não me sai da alma nada que não sejam silêncios...mas preciso dizer quanto gosto de ti.
Beijos
Kriu!
E a Ester, ao que parece, é um bom garfo e escolhe a companhia de acordo com o peso que tem...
Aquele restaurante teve de reforçar os alicerces...
não conheço, Té
mas tu és uma boa companhia
e tens uma nítida preferência pelas trincas da gataria lá do teu monte
Mais uma história deliciosa como só tu sabes contar.
Excelente, minha querida amiga.
Manuela, tem um bom domingo e uma boa semana.
Beijo.
A noite
é
uma
metamorfose
Eu ansiosa e a medo também deslocava pedras mas quem gritava a maior parte das vezes era eu, pela surpresa.
Bom domingo, Manuela.
Abç
E era uma vez mais uma linda história de ouvir e de sonhar.....
Um beijo Manuela!
Bia
E é com o anoitecer que todos os seres estranhos saem da toca, percorrem caminhos, soltam lamentos, executam gestos... e regressam de novo à sua toca...
bjs
anacosta
A noite nestas palavras torna-se cheia de magia. Um texto cheio de beleza.
Bjs
Uma nova história no início do
Outono que como sempre traz uma
mensagem.Ler/reflectir.
Boa semana para si.
Bj.
Irene Alves
Minha querida
É na noite que a magia se desprende das almas...e a tua escreveu mais uma linda estória de encantar.
Um beijinho com carinho
Sonhadora
Felizmente há poemas novos por aqui, se vocês soubessem o que custa a uma acamada andar a arrastar-se de blogue em blogue, para ver uma imagenzinha que não seja a da Santa, ainda por cima, cortaram-me na banda larga, a minha vida é um beco, um vale de atrofia, o "Intemporal" anda parado, venho aqui ver o mar ao fundo, graças a deus esta costa é mais calma do que os atropelos de Carcavelos, onde a terceira e a quarta geração de emigrantes acha que eu sou a pista negra para aterrarem, coitada de quem sofre destas coisas todas, vá escrevendo, que a minha vida é como antigamente, para ir de um blogue ao outro, é pelo menos uma semana de viagem, e deixo testamento.
Bem haja, meu amor, nem toda a gente tem um bom coração piedoso para as acamadas
Curiosa sobre o que aconteceu a seguir...!
Beijos
e a noite é sempre um mistério...
:)
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. e,,, .
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. reparo agora que tudo o tinha para dizer foi já dito pelos anteriores comentadores . é engraçado que todos eles escrevem aquilo em que eu já tinha pensado . é sempre assim . em todos os blogues que visito .
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. mas . e já que vim por aqui aproveito para reafirmar o quanto gosto de Si . a Nelita vive permanentemente nos meus silêncios . :))) . nos da Alma . :))) .
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. íssimo feliz .
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Me fez pensar na caixa de pandora. Quanto a noite, acho que um bom punhado de mistérios nos esperam, é só deixar os olhos abertos, mas a maioria de nós prefere fechá-los, não é mesmo? rs
bacio
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