II - o imperador











Quando se olhava, via-se outro. Podia ser nas águas paradas do lago dos peixes vermelhos, no olhar das pessoas que o rodeavam, na chapa exterior da fechadura da porta ou tão somente no espelho que o pai lhe tinha deixado como legado.
- Deixo-te esta serra onde cresce o carvalho negral, as aveleiras e os medronheiros, este palácio arruinado e este espelho. Um dia verás como ele é especial – disse-lhe o pai.
E ele olhava-se e via-se pequenino, o manto a roçar o chão, as mangas a sobrarem pano, os sapatos de veludo azul escondidos nos pés quase invisíveis. Sabia-se um homem e o espelho refletia uma criança assustada. Com o passar do tempo habituou-se e desviava o olhar das superfícies lisas e espelhadas.
Na serra coberta de verde existiam muitos e variados reinos e não raras eram as vezes em que se pegavam a discutir e a guerrear. O reino dos seres pacíficos era invejado pelo reino dos seres insuportáveis de rancor. O reino das plantas era aniquilado pelo reino dos destruidores compulsivos. O reino dos homens corajosos vivia em sobressalto temendo a ira dos homens mal falantes. Justificado de uma outra forma, o direito e o avesso de cada reino tal e qual o imperador e a sua imagem no espelho.
O palácio era composto por sete alas, um pavilhão, uma torre sineira e um jardim onde cresciam desordenadamente ervas aromáticas e abóboras-menina. Na primeira ala viviam as crianças órfãs, na segunda ala, os poetas. Na terceira, os que não possuíam casa. Na quarta os que sabiam um ofício e o ensinavam a quem desejava aprender. Na quinta ala, os pássaros exóticos, na sexta, uma companhia de teatro e por fim a sétima e última ala estava reservada aos passantes e a quem, sem destino, lhe apetecesse ficar. Ele, despojado que era de ambições mas repleto de sonhos, habitava os sótãos, onde pelas telhas quebradas umas vezes entrava a chuva, outras não. Era aí que guardava o espelho do pai e pelas janelas de mansarda olhava o longe e a distância da serra ao mar e à noite cantava com saudade dos dias que ainda não tinha vivido.
E ela ouviu-o. Volteou sobre o loureiro, a torre sineira e por fim pousou no parapeito da janela. Ele não se mexeu.
-Parece-me que cheguei – disse a andorinha.
Ele ficou calado, não lhe parecia nada.
-És tu que cantas? A tua fama é maior do que tu - disse a andorinha e sem esperar pela resposta continuou – gosto destas ruínas, daquela torre, posso fazer aqui a minha casa?
E olhou-o e viu-o pequenino e de boca aberta de espanto.
A andorinha ficou e construiu o seu ninho diferente do das outras andorinhas, um túnel perfeito e depois a casa, da lama dos ribeiros onde crescem os freixos e os sanguinhos.
Todos os dias visitava o sótão das telhas quebradas e conversavam os dois, a andorinha dáurica e o imperador. Ele contou-lhe do rapaz assustado que via no espelho, ela disse-lhe que é preciso coragem para atravessar os oceanos.
Uma noite, o espelho refletiu a lua. Abandonado o manto e uns sapatos de veludo azul.

o imperador e a andorinha, segunda e última parte


abandonado o manto e uns sapatos de veludo azul






19 comentários:

mz disse...

A ira dos homens é muito feia!

Quantas vezes queremos ser apenas pequeninos. Procurar forma de fugir à realidade, desviar o olhar do que a vida nos mostra.


Precisamos de alguém que nos dê coragem. Todos nós precisamos de uma andorinha nas nossas vidas.


Abraço Manuela,
Bom fim de semana!

Rogério G.V. Pereira disse...

Senti-me na sétima ala, querendo ficar.
Será que o imperador volta?
Será que a andorinha me fala?

Que falta me faz esse espelho...

(posso ler isto trinta vezes, que há trigéssima primeira que leia, certamente ainda descobrirei cores, sons e detalhes que antes me tenham escapado...)

Rogério G.V. Pereira disse...

queria dizer: "que à trigéssima"

Unknown disse...

Ao ler vamos vivendo as coisas e as paisagens em volta desta personagem e ainda este mundo de sentimentos e medos.
Fabuloso o encontro e o dialogo com a andorinha. Xeque-mate perfeito.

Bloguinho da Zizi disse...

Diz lá à andorinha onde vivo e que venha ao meu encontro.

beijinhos Manuela

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


E uma noite, o espelho refletindo o reflexo do sol encheu-se de tudo e acabou-se o entrudo.

Desculpa-me esta variação, lindíssimo!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 9 de Março de 2013

Rita Freitas disse...

Precisamos urgentemente deste espelho. E eu espero pela andorinha :)

beijinhos

Anónimo disse...

Olá, Manuela!

Resultou num lindo conto este original arranjo de ocasião:Entre uma andorinha de gostos requintados e um homem-menino que assim acabou por perder o medo - que o fazia sentir pequenino...

Bom fim de semana; abraço amigo.
Voitor

Nilson Barcelli disse...

Sem coragem, não passamos de crianças grandes...
Manuela, minha querida amiga, tem um bom resto de domingo e uma boa semana.
Um abraço.

Isa Lisboa disse...

Gostei muito de conhecer este imperador, penso que todos nós de vez em quando nos olhamos no espelho e nos vemos outra pessoa...
Fica-me ainda a frase: "O reino dos seres pacíficos era invejado pelo reino dos seres insuportáveis de rancor." Verdade, grande verdade, esta!

Na próxima quarta-feira, o Instantâneos a preto e branco faz 2 anos. Terei todo o gosto a receber lá, se puder visitar-me!

Beijo

Kika disse...

Kriu?

O meu sobrinho, ainda não fez dois meses e já queria vir visitar o teu blogue, mas eu não deixei, porque a tua escrita, por mais bonita que seja, ainda não é perceptível para ele!

Kriu!

Anónimo disse...

Eu vejo-me sempre o mesmo, porque os outros, ou melhor, as outras, as sorridentes, já as espantei a todas!

O Diabo que as carregue!

Silenciosamente ouvindo... disse...

Que sorte para o imperador encontrar
essa andoriha...
Às vezes há encontros assim...
Beijinhos
Irene Alves

. intemporal . disse...

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. e sente.se . o fluir desta escrita . fluida . proveniente de quem sabe e de quem gosta de escrever . de quem escreve bem . e com amor . fluidamente .

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. essencial.mente com amor .

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. íssimo . sempre feliz .

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Lúcia Bezerra de Paiva disse...

...e a andorinha encorajou o pequeno e belo moço...Aventurou-se!

B

Beatriz disse...

Manuela

Realmente, é preciso coragem para atravessar um oceano.... mas este lindo pequenino imperador a tem de sobra!

Beijos

Bia
www.biaviagemambiental.blogspot.com

ki.ti disse...

Imperador, é um pinguim

e veste fraque.

vieira calado disse...

Não conhecia o blog.
Espero cá voltar.
Saudações poéticas!

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

acho que por vezes me sinto como o imperador e gostava de ter por perto uma andorinha...

bom final de semana.

beijo

::)