Quando se olhava, via-se outro. Podia ser nas águas
paradas do lago dos peixes vermelhos, no olhar das pessoas que o rodeavam, na
chapa exterior da fechadura da porta ou tão somente no espelho que o pai lhe
tinha deixado como legado.
- Deixo-te esta serra onde cresce o carvalho negral, as
aveleiras e os medronheiros, este palácio arruinado e este espelho. Um dia verás
como ele é especial – disse-lhe o pai.
E ele olhava-se e via-se pequenino, o manto a roçar o
chão, as mangas a sobrarem pano, os sapatos de veludo azul escondidos nos pés
quase invisíveis. Sabia-se um homem e o espelho refletia uma criança assustada.
Com o passar do tempo habituou-se e desviava o olhar das superfícies lisas e
espelhadas.
Na serra coberta de verde existiam muitos e variados
reinos e não raras eram as vezes em que se pegavam a discutir e a guerrear. O
reino dos seres pacíficos era invejado pelo reino dos seres insuportáveis de
rancor. O reino das plantas era aniquilado pelo reino dos destruidores
compulsivos. O reino dos homens corajosos vivia em sobressalto temendo a ira
dos homens mal falantes. Justificado de uma outra forma, o direito e o avesso
de cada reino tal e qual o imperador e a sua imagem no espelho.
O palácio era composto por sete alas, um pavilhão, uma
torre sineira e um jardim onde cresciam desordenadamente ervas aromáticas e
abóboras-menina. Na primeira ala viviam as crianças órfãs, na segunda ala, os
poetas. Na terceira, os que não possuíam casa. Na quarta os que sabiam um
ofício e o ensinavam a quem desejava aprender. Na quinta ala, os pássaros
exóticos, na sexta, uma companhia de teatro e por fim a sétima e última ala estava
reservada aos passantes e a quem, sem destino, lhe apetecesse ficar. Ele,
despojado que era de ambições mas repleto de sonhos, habitava os sótãos, onde
pelas telhas quebradas umas vezes entrava a chuva, outras não. Era aí que
guardava o espelho do pai e pelas janelas de mansarda olhava o longe e a
distância da serra ao mar e à noite cantava com saudade dos dias que ainda não
tinha vivido.
E ela ouviu-o. Volteou sobre o loureiro, a torre sineira
e por fim pousou no parapeito da janela. Ele não se mexeu.
-Parece-me que cheguei – disse a andorinha.
Ele ficou calado, não lhe parecia nada.
-És tu que cantas? A tua fama é maior do que tu - disse a
andorinha e sem esperar pela resposta continuou – gosto destas ruínas, daquela
torre, posso fazer aqui a minha casa?
E olhou-o e viu-o pequenino e de boca aberta de espanto.
A andorinha ficou e construiu o seu ninho diferente do
das outras andorinhas, um túnel perfeito e depois a casa, da lama dos ribeiros
onde crescem os freixos e os sanguinhos.
Todos os dias visitava o sótão das telhas quebradas e
conversavam os dois, a andorinha dáurica e o imperador. Ele contou-lhe do rapaz
assustado que via no espelho, ela disse-lhe que é preciso coragem para
atravessar os oceanos.
Uma noite, o espelho refletiu a lua. Abandonado o manto e
uns sapatos de veludo azul.
o imperador e a andorinha, segunda e última parte
abandonado o manto e uns sapatos de veludo azul
19 comentários:
A ira dos homens é muito feia!
Quantas vezes queremos ser apenas pequeninos. Procurar forma de fugir à realidade, desviar o olhar do que a vida nos mostra.
Precisamos de alguém que nos dê coragem. Todos nós precisamos de uma andorinha nas nossas vidas.
Abraço Manuela,
Bom fim de semana!
Senti-me na sétima ala, querendo ficar.
Será que o imperador volta?
Será que a andorinha me fala?
Que falta me faz esse espelho...
(posso ler isto trinta vezes, que há trigéssima primeira que leia, certamente ainda descobrirei cores, sons e detalhes que antes me tenham escapado...)
queria dizer: "que à trigéssima"
Ao ler vamos vivendo as coisas e as paisagens em volta desta personagem e ainda este mundo de sentimentos e medos.
Fabuloso o encontro e o dialogo com a andorinha. Xeque-mate perfeito.
Diz lá à andorinha onde vivo e que venha ao meu encontro.
beijinhos Manuela
MANUELA BAPTISTA
E uma noite, o espelho refletindo o reflexo do sol encheu-se de tudo e acabou-se o entrudo.
Desculpa-me esta variação, lindíssimo!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 9 de Março de 2013
Precisamos urgentemente deste espelho. E eu espero pela andorinha :)
beijinhos
Olá, Manuela!
Resultou num lindo conto este original arranjo de ocasião:Entre uma andorinha de gostos requintados e um homem-menino que assim acabou por perder o medo - que o fazia sentir pequenino...
Bom fim de semana; abraço amigo.
Voitor
Sem coragem, não passamos de crianças grandes...
Manuela, minha querida amiga, tem um bom resto de domingo e uma boa semana.
Um abraço.
Gostei muito de conhecer este imperador, penso que todos nós de vez em quando nos olhamos no espelho e nos vemos outra pessoa...
Fica-me ainda a frase: "O reino dos seres pacíficos era invejado pelo reino dos seres insuportáveis de rancor." Verdade, grande verdade, esta!
Na próxima quarta-feira, o Instantâneos a preto e branco faz 2 anos. Terei todo o gosto a receber lá, se puder visitar-me!
Beijo
Kriu?
O meu sobrinho, ainda não fez dois meses e já queria vir visitar o teu blogue, mas eu não deixei, porque a tua escrita, por mais bonita que seja, ainda não é perceptível para ele!
Kriu!
Eu vejo-me sempre o mesmo, porque os outros, ou melhor, as outras, as sorridentes, já as espantei a todas!
O Diabo que as carregue!
Que sorte para o imperador encontrar
essa andoriha...
Às vezes há encontros assim...
Beijinhos
Irene Alves
.
.
.
. e sente.se . o fluir desta escrita . fluida . proveniente de quem sabe e de quem gosta de escrever . de quem escreve bem . e com amor . fluidamente .
.
.
. essencial.mente com amor .
.
.
. íssimo . sempre feliz .
.
.
...e a andorinha encorajou o pequeno e belo moço...Aventurou-se!
B
Manuela
Realmente, é preciso coragem para atravessar um oceano.... mas este lindo pequenino imperador a tem de sobra!
Beijos
Bia
www.biaviagemambiental.blogspot.com
Imperador, é um pinguim
e veste fraque.
Não conhecia o blog.
Espero cá voltar.
Saudações poéticas!
acho que por vezes me sinto como o imperador e gostava de ter por perto uma andorinha...
bom final de semana.
beijo
::)
Enviar um comentário