Acorda muito cedo naquele primeiro dia. Logo depois dos
pássaros, antes do cheiro a café se espalhar pela cozinha. Veste-se,
silencioso, rápido, a camisola de lã, a gola puxada até ao queixo, os calções a
tiritar joelhos magros, as botas castanhas de pele virada, as meias pelo
joelho, uma abaixo outra acima. No bolso guarda um biscoito de mel e azeite e a
medalhinha de nossa senhora da conceição. O fio perdeu-o, a medalhinha não.
A chave está na fechadura. Inquieta-se, e se a chave não
estiver na fechadura? Está, como sempre esteve. Dá duas voltas, a porta range,
ele suspende o movimento, nada mexe na casa adormecida e ele sai para a manhã
brilhante de geada, apenas e sofregamente sua.
A bicicleta é encarnada, os rebentos de pessegueiro cor
de rosa e os lírios amarelos de cada lado da estrada. Pedala devagar uns
minutos, a seguir aumenta a velocidade, o vento cola-se aos lábios, às maçãs do
rosto, às narinas. Os olhos bem abertos gotejam uma lágrima ou duas, os cabelos
finalmente penteados para trás. Depois tira as mãos do guiador, abre os dois
braços em cruz, fecha os olhos e solta-se. O equilíbrio perfeito, a vertigem do
absoluto. Não é uma criança, é um movimento acelerado, uma partícula de vida.
Não importa que alguém veja, que lhe falem do risco, que ralhem,
que lhe prometam ausência de amêndoas e ovos de chocolate. Ele guarda, esconde,
tudo o que um dia lhe possa fazer falta. Pode ser numa caixa, numa gaveta, num
saquinho aos quadrados azuis e brancos como os bibes da escola, onde seca as
mãos, onde limpa o sangue dos joelhos esfolados. Pode ser no bolso e a
medalhinha é testemunha da memória da bicicleta, talvez outro dia.
Regressa e ninguém pergunta nada. Adormece sobre a mesa
da cozinha, a chávena de chocolate quente, a torrada a lambuzar manteiga e doce
de laranja amarga.
eu tinha uma bicicleta encarnada, acordava o vento nas manhãs de páscoa
e no entanto tenho-a ainda
aquarela de Enrique Ochotorena
18 comentários:
Lindo e envolvente.
Parece que queria mais e mais.
Depois que abriu os braços parece que ninguém mais o viu...
E guardas ainda a vertigem do absoluto?
Nunca tive uma bicicleta encarnada, se a tivesse tido, também a guardava, talvez como memória de um dia ter atingido o equilibrio perfeito...
MANUELA BAPTISTA
Diz a Enrique Ochotorena que tem aguarelas fotográficas lindíssimas.
Para variar, muito bonito!
O meu pai, então, contava-me uma história que ele próprio inventou e que, salvo erro, se chamava O Urso da Bicicleta às Riscas!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 16 de Março de 2013
Kriu?
Eu hoje também acordei muito cedo, até para garantir que há ausências de quaisquer género de ovos...
Viste onde deixei os meus calções?
Kriu!
Também trago uma medalhinha sempre comigo!
De um lado tem gravado o número do meu IDog e do outro tem gravada a identificação do meu tipo de sangue: Canis lupus familiaris RH+
.
.
. associar a arte pictórica do enrique à escrita fabulosa da manu.ela.de.elo . é como sorver um sorvete de dois doces sabores . logo pela manhã . porque .
.
. há casamentos perfeitos .
.
. há associações perfeitas .
.
. há aguarelas perfeitas .
.
. há contos perfeitos .
.
. manu.ela.de.elo . rainha das palavras todas .
.
. íssimo . sempre feliz .
.
.
Guards tudo que trás lembrança a, abraço Lisette.
As lembranças sempre bem guardadas, abraço Lisette.
Lembranças se tornam eternas, abraço Lisette.
Olá, Manuela!
Pé nos pedais, asas abertas feito pardalito, voando pelo infinito. E depois regressar a casa cansado de tanto ser feliz.Que melhor maneira haverá de começar o dia...?
Abraço amigo; bom resto de fim de semana.
Vitor
De vez em quando, todos devíamos pegar na nossa bicicleta vermelha e andar nela assim, abraçando a vertigem!
Um texto que me transporta a muitos lugares, ou talvez apenas a um, mas não importa...É por isso que gostei de o ler!
Beijo
P.S.: Obrigada pela visita ao "aniversário" do meu cantinho!
Manuela,
Em tempo de Páscoa,
férias e Primavera...
sabe bem recordar
a vitória que é
andar de bicicleta "sem mãos"...
e o segredo associado à medalhinha que a avó deu!
O poder da palavra mantém-nos inteiros!
Muito grato.
Boa semana
Grande abraço
...também tive uma bicicleta.
Lembrei a minha infância.
Na juventude, fui viciado em bicicletas...
Mas nunca tive uma vermelha... apesar de ser benfiquista desde a escola primária...
Um beijo, minha querida amiga Manuela.
memórias que o tempo nunca apagará...
tão bonito, Manela!
beijo
Kriu?
Tenho tanta pena, tanta pena, mas tanta pena, tanta pena mesmo de não ter um blogue, mais pena ainda do que as penas que tenho no meu corpo lindo, e é por isso que te venho visitar outra vez, porque sempre que tenho saudades tuas é aqui que eu venho, porque pessoas como tu não há no mundo inteiro!
Minto, só há uma assim mais parecida contigo, digamos que, na locomoção, mas que vive numa caixa de correio à qual não consigo aceder assim num voo breve e equidistante!
Kriu!
Penas têm as galinhas, Kika, assim como, os bigodes da fedorenta sempre que a Néné vai à praça e traz ( ou trás?) a ave de rapina ainda viva, para depenar sentadinha nas escadas que dão acesso à moradia...
Manuela ai esse doce de laranja amarga que eu adoro!!!
Também tive uma bicicleta verde, cor de alface e a tua história lembra-me a adolescência.
Escapar de casa enquanto todos dormem, soa a aventura de férias e a uma relação saudável com o que não se deve fazer mas que se vai fazendo às escondidas. Pequenos segredos sem maldade.
Desejo-lhe uma Páscoa feliz!
Abraços
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