Escrevo-te na certeza de que entenderás o fio do meu pensamento, como um lago entende um fio de água, como as copas das árvores entendem o sussurrar do vento.
Quis o destino que fosses tu rei e eu o habitante do teu
reino e na aparente apatia dos nossos deuses, parece-me ter sido uma decisão
acertada. A minha maior ambição era saber porque é que a terra gira em redor do
sol e na infinita sucessão dos dias, reconhecer cada um deles pelo que
edifiquei de belo e jamais por aquilo que destruí. O que tenho de meu não é
palpável, a casa, o forno, a árvore, o cão, a nascente, o celeiro, os pincéis,
as tintas e os livros, foram-me cedidos e entregá-los-ei inteiros qualquer dia.
Os meus filhos e as minhas filhas trazem nos olhos o encanto
das marés, aquelas que fazem o mar subir e descer pelas areias e as gaivotas
gritarem sedentas de azul e de barcos carregados de sardinha.
Quanto a ti, corre-te no sangue a bravura dos guerreiros
e falar de paz apenas tem sentido depois de se conhecer o horror da guerra. Delimitaste
o teu reino, a norte e a este, a terra. A oeste e a sul, o mar. Muitos outros
enclaves conquistaste e foram tantas as línguas que aprendemos, que a nossa,
mais doce, mais terna, mais poética, permanece espalhada por aí e há sempre uma
palavra que nos diz, eu sei quem tu és.
Se a tua memória for a minha, lembra-te da tarde em que
nus, mergulhámos no rio na ignorância de quem era o rei e de quem seria o
súbdito, ambos crianças a brincar, que é o destino apetecível de quem tem dez
anos de idade e eterno é o verão.
E fizeste uma promessa qualquer, um dia, um
dia quando as laranjeiras estiverem em flor, dou-te um cavalo branco e
aprenderás a galopar.
Quantas vezes ao olhar-me ao espelho, eu pensava que a
tua face era a minha face e sentia o galopar desse cavalo a descompassar-me o
coração. Iguais são os reis e os servos e a diferença é-nos imposta, não está
decerto na nossa natureza. A película que reveste uma semente é semelhante à
que reveste um homem ou um animal.
No entanto andam vazios os barcos e as sardinhas não se
podem pescar. Os homens inteligentes perderam as saídas para o mar e a
estupidez grassa como erva daninha, como eucalipto invasor a abater os
pinheirais mansos.
Assim, envio-te daqui num saquinho bordado a ponto cruz,
dois grãos de pimenta, três grãos de trigo, duas sementes de trepadeira e esta
carta.
A não seres tu rei serei eu quem te empresta um rio.
22 comentários:
MANUELA BAPTISTA
... e mesmo que eu fosse rei tu dar-me-ías sempre o eterno mar!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 5 de Fevereiro de 2013
.
.
. "eu sei quem tu és." .
.
.
. uma bênção de Deus .
.
. uma deus.a entre a.deus.es .
.
. e por ora . um a.deus entre a.deus.es .
.
. és . alguém . como ninguém . que ja.mais esquecerei . aqui . e quando me for dada a plenitude da vida e.terna . caso a mereça .
.
. não há . Pessoa mais bonita do que Tu . aos olhos meus .
.
.
. e este "Tu" . é pertença do Seu coração .
.
.
. íssimo . mais.do.que.feliz .
.
.
Então entrega-me que tu vais ver...
Kriu?
Raramente me olho ao espelho, porque fico sempre a pensar se este rosto avermelhado será sinal de saloiice!
Kriu!
Vão-nos entregar inteiros????
e eu que nem fatura tenho, porque era uma vadia!
Te respondo com o reino que tão bem definiste pesando-me nas costas, na alma e no lago que entende esse fio de água que me estendes. Não me surpreendes, sabia-te como és. E porque pareces saber mais do que eu o que é nobre fazer, vem para junto de mim, e traz contigo o tal rio. Dois faremos melhor do que um só, Deus era só e se fez um mundo perfeito não tem agora mão no no criado... Traz, para além do rio, quem te aprouver. A tua chegada será festiva e será anunciada a igualdade entre nós dois. Não haverá senhores e servos, depois
Tão bonito!
Adorei ler.
Beijinhos
Mais do que rei, se for inteligente, irá decerto entender que para além dos ingredientes, não se mandam saquinhos bordados a qualquer pessoa.
Um abraço,
Mz
Olá, Manuela!
Este lindo texto bem poderia ser a história do percurso dum riozinho curioso e encantado à nascença, a desaguar num mar imenso onde o se instalou o desencanto.Para onde olhamos lembrando um passado onde não faltavam a pimenta e outras especiarias ao tempo exóticas, neste presente à deriva em que procuramos traçar o rumo que nos conduza ao futuro. E é assim há tanto tempo...
Gostei muito!
Abraço amigo.
Vitor
O texto pode ser enigmático...
Ou cada um de nós "lhe dar uma
interpretação"...Eu limitar-me-ei
a reflectir e a esperar que os
barcos possam ir pescar e vir cheios,
e que a paz possa estabelecer-se
dentro de nós, sem reis e sem
escravos.
Beijinho
Irene Alves
P.S. - no saquinho enviei-te também o meu sopro...
beijinho amigo
Que bom de ler...
Beijo, Manuela
Os rios contam sempre histórias de encantamento e dão-nos a certeza de um dia de mudança...Talvez as sementes também ajudem e façam esquecer os tempos magros de agora...
Um dia...seremos definitivamente livres - é o que te digo na carta resposta que te envio, com perfume a canela.
Beijo
Graça
Minha querida
Que pena que esse rio já não tem peixes...nem barcos.
Resta apenas a saudade e a esperança que esse rio volte a correr para o mar.
Ler-te é sempre uma viagem pela beleza.
Um beijinho com carinho
Sonhadora
Uma bela carta, de um súbdito para o seu rei...
E disseste bem ao dizeres que lhe emprestavas o rio. Porque os rios, o mar, os barcos e as sardinhas são do povo.
Magnífico conto. Encantas-me sempre.
Manuela, tem uma óptima semana.
Beijo.
Fiozinhos d"água, como fios condutores, inspirações para reinos distantes ou de reinos tão perto de nós que por serem perto os desconhecemos. Teus contos me encantam...
Beijinhos, Manuela
uma carta tão agradável de ler.
gosto muito da maneira como escreves.
as palavras dançam.
uma boa semana.
um beijo
.
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. um ponto .d.aqui .
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. from malaysia . :))) .
.
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Texto extremamente bem escrito, com imensas entrelinhas e metáforas.
Uma pitada social e política, e uma mão cheia de amor, que inundou a prosa.
Feliz dia, com luz.
hello malaysian point!
Nesse reino encantado, absorvo aromas, sabores, sons e cores...
Viva a mãe d'água!
Como sinto saudades daqui. Como é bom ler-te. Saborear suas frases como se fossem um diálogo tecido para comigo durante o caminhar de um dia que segue com seus excessos. Você me propõe uma pausa e eu aceito. E vou mergulhando em coisas simples como saber se a terra de fato gira ao redor do sol. Que delícia. Fico pensando, de fato gira - mas e se o fato não for assim tão preciso? rs
Vou ali sonhar-te.
bacio
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