Quando nasceu ouviram-se três gritos de uma ave e ninguém
soube explicar porquê. A mãe olhou-o, sentiu-lhe o peso, contou dez dedos das
mãos e outros dez dedos dos pés, admirou a perfeição das orelhas e a força do
choro. Por fim observou que no lugar de cada sobrancelha, pairava uma nuvem
branca. Não se assustou, não ouviu os presságios dos falsos magos nem tão pouco
as dúvidas das outras mulheres. Chamou-lhe Li e disse, vai ser feliz este meu
filho.
Li cresceu robusto e ágil e as nuvens-sobrancelha cresceram com ele. Nos dias de mercado estendia um tapete azul no meio da praça e fazia acrobacias, saltos, cambalhotas e riam as crianças que faltavam à escola só para o ver. Li mimava os trejeitos do governador, a vaidade da mulher do chefe da aldeia, a avareza do mercador, a imponência do juiz. E quem o via aplaudia e os mais fracos sentiam-se mais fortes e os injustiçados menos carentes de justiça.
Li cresceu robusto e ágil e as nuvens-sobrancelha cresceram com ele. Nos dias de mercado estendia um tapete azul no meio da praça e fazia acrobacias, saltos, cambalhotas e riam as crianças que faltavam à escola só para o ver. Li mimava os trejeitos do governador, a vaidade da mulher do chefe da aldeia, a avareza do mercador, a imponência do juiz. E quem o via aplaudia e os mais fracos sentiam-se mais fortes e os injustiçados menos carentes de justiça.
Nas tendas comentava-se a coragem de Li, mas o rancor que
criava no palácio e no tribunal ia aumentando, surdo e viscoso.
Li, alheio à verdadeira maldade dizia-lhes, esta é a
minha arte, eu imito o que vejo fazer.
Uma noite sem lua quando todos dormiam e calados estavam
os cães porque nada havia a temer, chegaram dez homens armados e arrancaram
Li da sua cama e a mãe temeu pelo filho que desejava feliz e as nuvens brancas
de Li escureceram e choveram lágrimas e água doce do céu.
Nos dias de mercado os homens estendiam um tapete azul no
meio da praça e as crianças eram a ausência triste do riso e das palmas.
Mas Li era robusto e ágil e não cedeu ao medo nem à
solidão e ao completarem-se trinta dias de cativeiro ainda nenhum juiz ousara
acusá-lo de crime algum. Na madrugada do trigésimo primeiro dia uma ave gritou
três vezes e quando os guardas abriram a cela, encontraram-na vazia. O governador
disse, deixem-no, já deve ter aprendido a lição. Mas a verdade é que temia a
inocência de Li e sabia da vacuidade do poder.
Li sabia muitas coisas e intuía outras tantas, mas não sabia
viver sem as suas histórias na certeza de que representando fazia girar a
aldeia e com ela as montanhas e os barcos e a profundidade do rio.
Juntou então pedaços de madeira escura, cartão preto,
varas, fios, tachas, e com uma tesoura recortou as figuras de todos os
habitantes da aldeia, da mãe, do governador, do juiz, das crianças, das aves.
Depois pegou numa pele de peixe fina e macia, esticou-a até à máxima tensão e
colou-a sobre os seus bonecos. Guardou-os cuidadosamente numa caixa pintada de flores
e só os soltava nas noites escuras, a fonte de luz por detrás de um pano branco
e ele ajoelhado no tapete azul, invisível na subtileza das sombras.
E já não era ele mas sim os bonecos que falavam, contra luz,
que é uma outra forma de ser amado.
As crianças tresnoitavam e riam e aplaudiam e adormeciam na
escola só para o sentir.
contos de palco, o último
23 comentários:
Li é feliz fazendo os outros meninos rirem. Eu gostei muito de passar por aqui e conhecer a história do Li.
Li - liberdade para viver.
Senti o que há muito não sentia e te agradeço por mo fazeres sentir
Senti-me Li, o herói desse teu conto de palco
Olá,Manuela!
Lindo menino, este Li; corajoso na sua inocência, afrontador dos poderosos, cantando o hino à liberdade, divertindo grandes e pequenos.
Bonito!
Abraço amigo; bom fim de semana.
Vitor
Li
soltou o sonho e o medo e saiu herói
um beijo
As pessoas que têm assim o dom de ser felizes e distribuir essa felicidade, também têm o fado de encontrar a inveja dos infelizes...
Um bonito conto, sempre aqui.
Beijo, bom fim de semana
Kriu?
Cruzes, credo! Anda tudo de muletas por aqui...
Não me digas que foram também vitimas das duas tardes que têm morado dentro de algumas "poetisas"...
Ou então foi da pintura que visava reproduzir aquele quadro da paisagem do costume, que costumam oferecer nas feiras ambulantes quando cedemos e compramos o cobertor de papa com o tigre desenhado ao meio...
Quando foi ao forno, o papel de prata, que era da loja do chinês, não prestava e incendiou-se...
Teria sido melhor a escolha do menino da lágrima... essa, a lágrima, pelo menos, teria apagado o fogo!
Kriu!
Ah, ah, ah, Kika, fizeste-me lembrar o ex-blogue da outra bajuladora nortenha, aquela que tudo o que "escrevia" ou vinha ou ia parar irremediavelmente dentro dela...
Um Li criado por si e com um texto
para nós o entendermos como quisermos.
beijinho e bom domingo, apesar
da chuva.
Irene Alves
Mais um excelente conto.
E muito bem ilustrado, como é hábito da casa.
Manuela, tem um bom resto de domingo e uma boa semana.
Beijo.
MANUELA BAPTISTA
E és sempre tu, tu e o teu contracenar, contra luz com as palavras, que é uma outra forma de seres ainda mais amada.
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 27 de Janeiro de 2013
Assim deveria ser na vida de todos nós. Saber dar a volta aos obstáculos e continuar com os nossos objectivos.
Um sonho de conto! Tu levas-nos a viajar pela fantasia, Manuela. Obrigada!
Abraço grande.
Gostei muito do Li, também eu o senti.
Beijinhos
.
.
. entre sensíveis pressentimentos e bons presságios . entre o antes e o depois . o momento é o de agora .
.
. porque reina neste espaço uma escrita . que sendo renda . é tempo . o tempo integrante de um momento único . também ele intemporal .
.
. a imagética é cada vez mais e também . um indício . um augúrio poético e pictórico . que faz desta grande Senhora . uma CRIADORA inigualável .
.
. inteligent.íssima . e singular .
.
. bel.íssima . e sempre tão discreta . até modesta . muito modesta . até .
.
. a qual . muito me honra com a Sua amizade sincera . a qual . não está minimamente preocupada em "conquistar" adjectivos não "merecíveis" como tantas outras . todas elas perecíveis . que deambulam por aí .
.
. e que cacarejam a eito e depois dizem: "poema" . :) .
.
. aplausos . muitos . muitos .
.
. íssimo feliz .
.
.
Kriu?
Encontro sempre aqui um "momento alto", sendo ave, é natural, mas não de rapina, com 150 kilos, como outras que "esvoaçam" por aí...
Kriu!
reler....e desejar
bom final de semana.
beijo
:)
Gostei! Textos muito poéticos e que nos fazem pensar em alguns aspectos da vida e da nossa experiência. Parabéns à autora!
Reli com agrado.
Manuela, tem um bom fim de semana.
Abraço.
Maravilhoso como sempre amiga Manuela. Adorei e ousei sonhar...beijos com carinho
A austeridade também chegou aqui?
Faz tempo que não publicas nada...
E eu que gosto tanto, tanto, mas tanto, tanto, tanto de te ler, claro que, muito mais em prosa do que em poesia, mas gosto, gosto, gosto!
Tens agora mais de cinco horas para reagir!
Sabemos bem o que acontece a quem sabe tudo e observa bem as pessoas...pois, claro que sabemos!
Mas o Li era um menino esperto e as suas sobrancelhas brancas como nuvens, inspiravam-no e tenho a certeza que foi o Li quem inventou o teatro das marionetas!
E os meninos continuam a delirar e as pessoas grandes também!
Adorei a história do Li e os desenhos? Ainda não falei de todos eles...Lindos com muita imaginação e o livro está completo para a impressão!! Pois então!!
Beijo carinhoso.
Graça
Venho por último,
estava com medo que esses bonecos andassem atrás de mim.
Fiquei aqui a pensar a realidade e o imaginário minha cara. Li se parece tanto com certas figuras que se ocupam do outro para fazer o sorriso existir. Adorei.
Foi um belo passeio, mas agora preciso ir porque infelizmente o dia me chama. bacio
Até breve
Conto de rara beleza! Admiro muito teus textos...
Abraços
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