Era uma vez um homem que tinha duas filhas. A mais nova chamava-se
Formiga e a mais velha, Lua. Habitavam uma velha casa de dois pisos virada para
o mar e lá atrás a aldeia, a escola e o templo.
Eram muito ricos. Possuíam um barco a remos, uma cana de
pesca, três mudas de roupa, dois livros de poesia, uma faca afiada e um cão.
Quando acordavam de manhã cedo Lua fazia chá e barrava de mel o pão, a irmã
abria as janelas de madeira, sacudia as mantas e o pó dos tapetes e colocava
copos de água em todas as divisões e em cada copo, um lírio. Depois saíam os
três e o cão.
O pai trabalhava para um senhor pobre e era os olhos que
ele não tinha. Lia-lhe as cartas, as contas, fazia-lhe a escrita e tomava conta
da sua loja e dos seus bens. Este pagava-lhe em farinha, azeite, amêndoas, mel
e tecidos e deixava-o ler todos os livros da sua biblioteca na condição de o
fazer em voz alta para que ele pudesse ouvir e assim lendo sabiam os dois de
cor os contos inventados e as histórias verdadeiras dos astros, das ciências e
das químicas.
O cão seguia as raparigas e ficava à porta da escola até
à hora da saída e as crianças sentiam-se tranquilas porque manso era o cão, mas
virava fera bravia se pressentisse uma ameaça ou um perigo.
O templo tinha sido construído numa ilhota no meio de um
lago calmo e não se sabia exatamente que deus celebrava. Desta forma Deus nunca
desiludia. Era um lugar antigo, silencioso, isolado, misterioso. Onde cabiam
todos os mistérios. Quem o procurava, sentava-se ou punha-se de joelhos e
falava daquilo que não entendia ou preocupava ou fazia sofrer ou rir ou temer
ou simplesmente buscava a tranquilidade e permanecia calado. Podiam lá ficar uns
minutos, uma hora ou alguns dias e as respostas ouviam-se muito tempo depois e
eram simples de reconhecer. Como na margem do lago existia só um barco, os
visitantes do templo apenas se cruzavam, esperando pelo regresso de um, dando a
vez a outro e por aí fora.
E novamente à tarde regressavam a casa os três, o pai e
as filhas. O cão cansado de estar quieto, corria à frente deles a espantar os
gatos e os pássaros e a ladrar de alegria.
As raparigas falavam as duas ao mesmo tempo, a contar das
letras e dos números e dos segredos das meninas e o pai ria-se.
A mais velha era meiga, doce, delicada, tinha nascido em
quarto minguante e a mãe a olhá-la dissera, lua e Lua ficara. A irmã era
curiosa, inteligente, audaciosa. Tinha nascido pequenina e agitada e o pai a olhá-la
dissera, parece uma formiga e Formiga seria. Depois tinham ficado sozinhos os
três e o sono da mãe. Dela guardaram as rendas que fazia, abertos e fechados
como os corações das crianças antes de crescerem e não podiam viver uma sem a
outra, a face de uma e a face da outra.
Nas noites de lua nova o pai contava-lhes os contos dos
livros que sabia de cor e descascava pêssegos com a faca afiada. Às vezes saíam
à pesca das taínhas e dos robalos e nas noites de lua cheia recitava-lhes
poesia. Com ele aprendiam a química das estrelas e um dia, sabiam, um dia
partiriam as duas no barco de remos em busca do quarto crescente que decerto
lhes faltaria.
Eram muito ricos. Possuíam um barco a remos, uma cana de
pesca, três mudas de roupa, dois livros de poesia, uma faca afiada e um cão. Assim
nunca se desiludiam.
inspirados no filme "o mar olha por ti" de Kei Kumai
27 comentários:
Manuela como e bom passar por aqui e ler suas historias .bjs
Hoje foi dia de história da Manuela. Hoje foi dia de encantamento.
(Obrigado pelo sorriso doce com que fiquei ao terminar a leitura)
Beijo :)
Nunca, é palavra pesada, forte demais para figurar num final.
Quem tem tão pouco, só em teu conto pode ser rico.
O barco perdeu o remo. A cana perdeu o anzol. O livro amareleceu. A faca cegou o gume e o cão entristeceu...
Lua e Formiga, por isso, não chegaram a partir.
MANUELA BAPTISTA
Correndo embora o risco, nos tempos que correm, de não parecer lá muito politicamente correto, certo é que para se ser rico não é preciso ter muito:
Um barco a remos, uma cana de pesca, três mudas de roupa, dois livros de poesia, uma faca afiada e um cão, ser Lua ou Formiga ou ser homem e ter duas filhas ...
... e escrever e pintar assim!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 9 de Junho de 2012
é verdade, Manuela!
não se sente falta daquilo que nunca se teve, por tal, a desilusão nunca pode acontecer
a verdadeira felicidade não é mais do que a Grandeza da página que hoje me é dada a ler
um beijo
nandinho
Olá, Manuela!
A arte de ser feliz com "muito pouco", coisa que não está ao alcance de todos, já que a maioria de nós quer "ter tudo".
Família rica, esta.E também nós, por termos os seus contos - lindos como sempre.
Abraço amigo.
Vitor
Eram de facto muito ricos. Porque eram felizes e se tinham uns aos outros e aos seus sonhos.
Encantadora, esta história!
Beijos
É muito bom ser feliz com o que se tem.
Ainda que sem deixar de querer mais e melhor...
Excelente conto, como sempre.
Manuela, querida amiga, tem um bom fim de semana.
Beijo.
Minha querida
Por vezes não é preciso ter muito para se ser feliz...e tu tens o TALENTO IMENSO, que me deixa sem palavras.
Digo apenas que das tuas mãos escorre magia.
Um beijinho com carinho
Sonhadora
ao ler a Manela, não sei bem, mas volto sempre à minha infancia.
o homem muito rico que trabalhava para um pobre, gostei!
para se ser rico por vezes bastam as coisas que a autora descreveu.
gostei muito.
um beij
Manuela, boa noite!
Eram ricos de amor e alegria, eram felizes com o que tinham e sabiam da beleza natural das coisas.
Lindo!
Beijinho,
Ana Martins
Que delicia de riqueza essa. Chego a sentir inveja dessa singular existência. Seria tão bom ser assim, tão simples, tão comum e natural... Adorei.
Bacio
Nossa que linda história, pessoas simples, vida grande.
Adorei
Bjs
Mary
Obrigado!
Querida amiga
Tem muitas pessoas assim neste Mundo, imensamente ricas, falta só descobrir que a felicidade está dentro de cada um, e que basta aceitá-la.
Seu coração na condição de iluminado nos dá essa reflexão.
Obrigada.
Com muita alegria BJS.
Ah, uma casa olhando o mar....e a Formiga e a Lua sonhando a vida de sonhar.... quisera eu estar lá!
Um beijo Manuela
Bia
www.biaviagemambiental.blogspot.com
Quanta riqueza neste conto!
Mostra-nos o quanto é fácil sermos ricos e felizes.
Mostra-nos o Deus das pequenas coisas.
Os contos da Manuela trazem-me sempre paz.
Beijinhos
São muito belas as histórias que por aqui se contam, são de uma grande sabedoria e sensibilidade... parabéns Manuela! Foi um gosto passar por aqui...
Beijinho!
Os contos que não dispenso.
Uma família rica sem dúvida... pois de mais não precisa o homem.
Por mais que goste da Lua eu sou mais Formiguinha.
Beijinho
Ná
Bom dia
A felicidade não está nas coisas mas nas pessoas.
As suas histórias levam-me a fazer essas viagens através do tempo,
Ser rico por tão pouco é não ter mais ambição, é sofrer por perder até o fio de corte de uma simples faca...
Bela história...Espectacular....
Cumprimentos
.
.
. bel.íssima . esta composição como tributo .
.
. e,,, .
.
. ai de alguém que o retorque .
.
. ai de alguém que o questione .
.
. ai de alguém que se atreva a abordá.lo de igual para igual .
.
. ai de alguém . :)))) .
.
. por.que "Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!" .
.
. íssimo . sempre feliz .
.
.
Auf!
Que raio de nomes escolheu o homem para as filhas! Formiga e Lua.
Eu teria escolhido Maria João para a mais nova e Arminda, para a mais velha.
A mais nova viria a ser uma humilde poetisa e a mais velha, por andar sempre com a cabeça na lua, acabaria por não fazer carreira em lado nenhum...
Auf!
Auf!
Béu, béu!
Errado, Fézada! A mais velha viria a fazer carreira como maledicente por email, pois a solidão deu-lhe para se agarrar com unhas e dentes às novas tecnologias...
Béu, béu!
Ter as ferramentas para criar a riqueza de e para uma família, é o que todos queremos e ansiamos.
Mas, termos a sorte de nascer e crescer com as ferramentas para podermos ser olhos e a voz dos outros que estão limitados, é ter algo que não tem preço.
Que as meninas encontrem o seu quarto crescente quando for a hora certa.
Um abraço!
A esta hora da noite...a entrar pela madrugada, não vejo a lua mas senti o fascínio de uma família unida e rica porque, só tinham o necessário mas sobrava-lhes em amor e união.
Não havia de facto, lugar para a desilusão! Adorei os desenhos.
Um beijo
Graça
Belissimo e cinematográfico. Parabens também pelo outro, magnifico blogue.
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