IV - de um todo


Juntou os pedaços que possuía. Aleatoriamente, ao acaso. Reconheceu cada um dos cinco montes, o número de janelas de cada casa, o som dos passos nas pedras da calçada, a ausência de árvores, o olhar confiante dos que se cruzaram com o seu.
Primeiro chegou Ana, a do vestido vermelho. Trazia pela mão uma criança morena, calada e terna. Falou-lhe dos tecidos que tecia, da composição geométrica dos fios e das linhas, da tonalidade fantasma que cobria os montes quando o dia se zangava, do silêncio do filho que não usava as palavras para falar.
Depois a velha e bondosa Sara, a do vestido preto. Olhou-o como se ele fosse ainda um rapazinho e perguntou “o que veio aqui fazer neste fim do mundo?” ele respondeu, “procurar o seu princípio”, ela calou-se. Colocou na mesa um prato com suspiros doces, um ligeiro travo a limão. Desfaziam-se na boca, macios, leves. Deu-lhe um beijo na testa, olhou as mãos e desafiou-o, “sei muitas formas de fazer o pão e quem o come diz que é o melhor, mas o fermento é a sua essência”. Contou-lhe da solidão do vale nos dias de ventania e da quietude gelada dos luares no inverno.
A terceira foi a estouvada Teresa, os dedos verdes, os vestidos de todas as cores. Jovem, corajosa, entende de jardinar. Quando se ri, as gargalhadas fazem eco no monte mais alto, sobem às nuvens, acordam os velhos adormecidos e chamam os pássaros que não têm onde pousar. Teresa, diz-lhe com os olhos cheios de água, “tenho um sonho”. Fala-lhe da fertilidade escondida da terra, do desejo de conduzir o caudal dos rios que não se vêem, de fazer as plantas crescer. De um lado as alfaces, do outro as rosas. Os coentros e as ervilhas de cheiro; a abóbora-menina enfeitada de flores amarelas.
Seria tão simples! Replicaram as três. Ele acreditou.
Por fim chegou Pedro, Manuel e André. Um sabia das aves migratórias, o outro dos moinhos de vento, o outro ainda, dos cantos, das músicas e da leitura dos livros a quem já não tinha olhos para ver.
Há sempre dois lados, duas faces e ele percebeu que esperavam dele muito menos do que estava disposto a dar. E arriscou. Disse: vamos! pegou na mão do filho de Ana, deu-lhe três suspiros e saíram para a rua. O rapaz saltitava ora num pé ora no outro, chutava as pedras redondas e rejeitava as irregulares, lambuzado de açúcar, ébrio de ar. Perguntou-lhe “onde é a tua escola?” o rapaz parou, olhou-o com ar de troça e esticando o braço direito desenhou uma linha imaginária entre o monte mais elevado, a igreja, o vale, as casas, o joelho do gigante e regressou a si, fechando a mão junto do peito.
Conduziu-o à torre da casa de João e na impossibilidade física de observarem as estrelas por ser ainda dia, ensinou-lhe como se poderiam vê-las na possibilidade de a noite chegar. Caminharam quilómetros até ao rio, com a água pelo pescoço encheram o peito de ar e cuspiram para ver quem cuspia mais longe. Treparam aos montes, tocaram o sino da igreja, entupiram-se de amoras das silvas, único arbusto espontaneamente permitido e nas camisolas cresceram as marcas de roxo que jamais se poderiam lavar.
Soprou um vento quente e a luminosidade alterou-se. Escureceu e clarificou. A aldeia não era apenas uma e se em todas as coisas que não entendemos descobrimos um propósito implícito, não trocamos os pontos cardeais, mas mudamos a cor das tempestades.
Sentiu uma vertigem, a cabeça deslocou-se três graus de latitude norte e o ouvido esquerdo estalou. Visualizou os sonhos de Teresa, os tecidos geométricos de Ana, os cozinhados de Sara, a energia eólica de Manuel, o canto das aves de Pedro e a voz de André que lia os livros a quem já não via, sussurrando cantos do anoitecer.
E assim religou os fios soltos da sua vida e com as pedras redondas, as irregulares e as pontiagudas construiu uma margem para este lado, o de cá.
Regressaram. Estavam todos à sua espera. O rapaz correu para a mãe e pela primeira vez deu um grito de alegria. As nódoas das amoras continuaram roxas nas camisolas brancas, mas os olhos encheram-se-lhes de luz.


esta é a quarta mas enganadora última página  de um todo
que se quer perfeito
e onde daremos um nome a cada uma das margens deste lugar



acrílico s/ tela "uma terra, nua, fria e crua" inventada pelo autor




38 comentários:

Mar Arável disse...

Excelente

Grato pela partilha

Eva Gonçalves disse...

Tem piada que cheguei aqui por vias travessas... por esta ponte criada entre duas margens :), dado que esta publicação ainda não aparece no reader! Um conto que se queria perfeito, que começou numa margem e acabou noutra, enchendo os nossos olhos de luz através desta viagem belíssima que nos proporcionaste. As nódoas roxas nunca saiem :) mas vão ficando mais claras...
Um grande

Eva Gonçalves disse...

beijinho, claro, rrsss azelhices tecnológicas, sorry :)

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


Por enquanto ... pasmo!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 9 de Julho de 2011

AC disse...

Manuela,
Esse todo perfeito existe, não tenho a menor dúvida, porque há quem nele creia...
Quanto há escrita, não tenho palavras, tal o meu deslumbramento!

Beijo :)

. intemporal . disse...

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. "e se em todas as coisas que não entendemos descobrimos um propósito implícito, não trocamos os pontos cardeais, mas mudamos a cor das tempestades." .

.

. outro comentário ser.me.ia impossível .

.

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. até porque que graça terá um pires cuja chávena é apenas e só o nado corpo des.fraldado que cauciona a pega como orelha de abano ? .

.

. a des.graça do propósito . arrebatado .

.

.

. íssimo . and happy .

.

.

Laços e Rendas de Nós disse...

"E assim religou os fios soltos da sua vida..."

E por/com este verbo 'religare', talvez ele tenha encontrado a sua etimologia e, na pureza das coisas simples, regressado à sua religião...

Beijo

Ana Lucia Franco disse...

Religar os fios soltos da vida é sempre uma aprendizagem que confere a possibilidade de nomear, alterar e (re) construir os seus rumos. Lindo texto, imagens maravilhosas, este blog é uma obra de arte, parabéns.

Lídia Borges disse...

Sabe, Manuela foi encantadora esta viagem que me proporcionou através das suas letras...Perfeitas, diria eu se perfeição houvesse!

Um beijo

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


Sem originalidade nenhuma e se o autor não se importasse, ao teu conto dar-lhe-ia, exactamente, o nome do quadro:

Uma terra, nua, fria e crua

Nem mais!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 10 de Julho de 2011

manuela baptista disse...

registo, Jaime!

o autor ainda não está aqui, chega mais tarde

antonio ganhão disse...

"...chutava as pedras redondas e rejeitava as irregulares..."

Um dia gostava de imaginar um miúdo assim.

Nem todas as pedras nos merecem um chuto.

Silenciosamente ouvindo... disse...

É tão bom ler os textos dos seus
posts...só posso dizer isso.
Faz-me bem, muito bem.
Beijinho
Irene

António R. disse...

Não sei se esta história tem o mar ao fundo,mas deve ter porque o mar também tem dois lados. O que vemos e o que está debaixo da água.
Se me permite relembro esta frase da sua história: -"e se em todas as coisas que não entendemos descobrimos um propósito implícito, não trocamos os pontos cardeais, mas mudamos a cor das tempestades."
Todos temos esse poder, contudo muito poucos o usam para religar os fios soltos da vida.
Aprende-se muito nas suas histórias.
Que saudades do tempo em que aí às amoras.
Abraço.

Unknown disse...

uma terra, nua, fria e crua, que a Manuela [re]pintou com tanto sentimento...


religados os fios, reacende-se a esperança!


obrigado, Manuela!

um beijo


Walter

manuela baptista disse...

ainda não

AFRICA EM POESIA disse...

Um beijo e dizer:
LINDO

alegria de viver disse...

Querida amiga

A vida me ensinou a sonhar acordada.
A acordar para a realidade.
A aproveitar cada minuto de felicidade.
Ensinou-me que é bom ter e chorar de saudade.
Ensinou-me a maravilha que é enxergar,
ver e ouvir as estrelas.
A ver o encanto dos poentes.
A abrir minha janela para o mar.
A ver... perceber as belas paisagens.
Ensinou-me a não ter medo do futuro.
E a viver intensamente o presente.

Um dia nos encontraremos.

Com muito carinho BJS.

Este é o jardim botânico do Rio de Janeiro, fotografei num dia de inspiração.

OutrosEncantos disse...

eu... :((...
reduzo-me à minha insignificância para te confessar que não consigo encontrar a frieza dessa terra!
esta tela, magnificamente pintada tem os tons quentes da "tal terra" e os contornos redondos e macios de uma terra/corpo/carne em tumultuosa tempestade! uma cidade/ilha com o Mar ao Fundo, cheia de movimento; os montes e os vales em contorção, repara como ruge o mar, ao fundo...
mas... num enorme abraço ao céu!

:) não ligues Manela, é que, se não posso chegar com os dedos às "coisas", tenho que engoli-las com os olhos do peito, mastigar..., saborear..., sentir!

... o teu todo será seguramente perfeito!

já tinha passado aqui, feito a primeira leitura, levei o sabor atravessado na garganta.
porque ler-te exige muitos regressos ao lugar da inquietação. tão simplesmente porque... ler-te... é um antídoto para a rotina diária, essa sim, fria e crua [porque mascarada].
não sei replicar o teu texto, não merece palavras vulgares.

meu beijo, num afago, de mim aqui tão perto!

OutrosEncantos disse...

"... o que veio fazer neste fim de mundo?!..."

"procurar o seu principio..."

:)))bj.

Mª João C.Martins disse...

Todos os rios têm duas margens e um propósito. Assim como deveria haver um colo para cada menino, e um monte com um sorriso de gigante para o fazer sonhar com a mão junto do peito. Embora algumas pedras sejam redondas e outras irregulares, são roxas todas as nódoas de amora.

Tela e conto... conto e tela, retalhos que vestem e aquecem a terra que não queremos nem crua nem nua e muito menos fria.

Um beijo, Manuela

António Gallobar - Ensaios Poéticos disse...

Olá

Excelente este conto, é realmente bom ler os seus textos, levam-nos a pensar.

Adorei
beijinho

Mariazita disse...

Olá, Manuela
Estive vogando, enquanto lia, ancantada.
Espero que não seja a última parte.
Quero mais!...

Linda tela.

Boa semana. Beijinho GRANDE.

Branca disse...

Então que venha o todo que se quer perfeito (a perfeição existe?). Existe...quase, na serenidade das margens de um lugar assim, que nos transporta a lugares únicos por onde muitos de nós já passaram e que ficam sempre nas profundesas da alma e ressurgem nos "rios" que atravessamos pela vida.

Obrigada pela partilha e pelo sonho.

Beijinhos, Manuela

Anónimo disse...

Gostei dos textos...Adorei as pinturas!

E.A. disse...

Manuela!

Tinha tantas saudades. De si, que não conheço senão de longe e por acaso, mas ainda assim. Porque acredito que é fada.

Belíssimas as quatro páginas deste conto.

Já terminei os exames. Sei que me perdoa o descuido da ausência.
Um beijinho,

Graça Pereira disse...

Manela
E o todo se completou! Na perfeição? Acredito que sim.Ligaste as pontas de todas as dúvidas que fizeram a certeza...Tira a tira, fio a fio, uniste as margens, cuidadosa e pacientemente nesta história escrita com todos os pormenores, até encontrares o princípio das coisas...
Maravilhei-me...é isso!
Beijo
Graça

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Sei que já tinha lido, e até já tinha comentado, não sei porque não está cá, escrito, o que senti na altura...
Não sei mesmo, amiga Manuela, mas seguramente foi aselhice minha.

O que seu agora ...
Que quando as vontades crescem, mesmo que timidamente, as mesmas se aceleram e tomam formas, cores e galopam pelas pradarias do sonho, onde os vales tocam os montes e estes o céu.

Parabéns pelo talento.

Beijinho

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Minha querida

Eu que tenho sempre palavras...fiquei sem elas depois de ler este texto soberbo...digo apenas que bebi cada palavra.
Quero agradecer o carinho que me deixou e dizer que estou melhorando.

Deixo um beijinho com carinho
Rosa

Anónimo disse...

la querida amiga
Estou na final da ostra poesia, me desculpe por mais uma vez vir lhe pedir votinho para a minha poesia, Precisamos. Mas sem a sua ajuda eu não irei conseguir. Prometo que passando esta fase eu virei comentar apenas sobre o conteúdo de seu cantinho.
Como votar você entra no link …http://ostra-da-poesia-as-perolas.blogspot.com/
No final paginas das poesias esta escrito
VOTE CLICANDO NA PALAVRA COMENTÁRIOS Lindalva 1 comentários
Por favor coloque coloque o nome da autora e da poesia, ( Precisamos ... Maria Alice Cerqueira e o nome do seu blog. para que Lindalva possa confirmar seu voto.
Desde já lhe agradeço de coração.
Tudo do melhor para você.
Abraço amigo
Maria Alice

manuela baptista disse...

Maria Alice Cerqueira

agradeço a honra da sua visita

mas o meu cantinho, como lhe chama, é para os que comentam e para os que por opção, impossiblidade, timidez ou qualquer outra razão, não o desejam fazer

ler contos ou poesias, é um prazer e não uma mesa de voto ou uma banca onde se vendem livros

no entanto, respeito as escolhas dos outros

assim com espero, que respeitem as minhas

muito obrigada

um abraço

manuela

Dulce AC disse...

Que maravilha, Manuela...
Hoje venho e fico

E levo tudo comigo, sem vertigem
e com uma certeza,
a de voltar.

Beijinhos muitos
cheínhos de muita ternura.

dulce

manuela baptista disse...

olá Dulce!!!

quanto tempo, pois é quanto tempo

obrigada!

um beijo


manuela

Rogério G.V. Pereira disse...

Um dia, quando morrer - se eu morrer - quero regressar aqui para te ler e depois ser sepultado num qualquer lado dum qualquer quadro. Quero estar, eternamente, junto do que é belo...

manuela baptista disse...

Rogério

esta é uma aldeia que nasce todos os dias da vida

a morte apenas virá por acréscimo

um beijo

manuela

ju rigoni disse...

"A aldeia não era apenas uma e se em todas as coisas que não entendemos descobrimos um propósito implícito, não trocamos os pontos cardeais, mas mudamos a cor das tempestades."

Ressurgir das cinzas em novas asas... "Minha casa sou eu
dentro de mim..." A poesia que pulsa em seu texto abre janelas, - deixa entrar a luz.

Um beijo, querida. Bom fim de semana. Inté!

manuela baptista disse...

um beijo, Ju!

Glorinha L de Lion disse...

Me perdi nesse mundo mágico...quero morar lá...beijos,