grão de ar


Quando nasceu ditaram-se presságios, as mulheres acenderam velas nos altares, rezaram uma ave-maria, esconjuraram antigos medos.
Era apenas uma pequenina diferença no dedo indicador da mão direita, meio centímetro talvez.
Mas o menino sorria e quando pela primeira vez meteu o dedo à boca na sofreguidão de um aconchego, foi aquele que escolheu e a mãe disse “É uma marca, a tua. Assim saberei sempre reconhecer-te, onde quer que estejas, faças o que fizeres, por muito estranho que pareças, serás o menino que largou um pedacinho de dedo em troca de um sinal”.
Chamou-lhe Jacinto, porque ele gostava de água e deu-lhe um frasco pequeno de vidro transparente, tampa de enroscar e dentro dele colocou um botão dourado como se fosse um tesouro. Cuidadosamente colada, uma etiqueta azul e branca e numa letra desenhada a tinta preta escreveu, “grãodear”.
Depois ensinou-lhe a arte das tesouras, das fivelas e a de casear.
Jacinto ajudava-a com uma infinita paciência e por cada vestido que a mãe costurava, ele desenhava um sapato que combinasse com a cor do tecido ou as pregas da saia. Ela incitava-o e explicava-lhe “Para ser bonito, o sapato tem de condizer com o fato”. Por esta altura, a diferença do seu sinal atingia o centímetro e Jacinto copiava dos livros de leitura os poemas de que mais gostava e colava estes dizeres nas palmilhas dos sapatos.
Os frascos de vidro transparente foram crescendo nas prateleiras; os maiores, com as fitas de veludo e os seixos redondos dos rios; os médios, com as asas de besouro e as folhas secas do diospireiro e os mais delicados, apenas ar.
Jacinto dominava agora a arte das tesouras, do couro, das solas flexíveis e dos poemas.
Nas sapatilhas das bailarinas cozia um grão de asa e quando elas dançavam ficavam tão leves que voavam e o público amante de bailarinas em sapatilhas cor-de-rosa, abria a boca de espanto num imenso e redondo oh!
Escrevia um poema de amor nos sapatos dos jovens apressados, para que quando eles crescessem não lhes fosse estranha a linguagem das ilusões e não deitassem fora as palavras que rimam com o coração.
E quando as raparigas vaidosas exigiam mais altura em cada salto já de si tão alto, ele fazia-os frágeis, quebradiços, para que cada queda as acordasse e as fizesse sentir a beleza das calçadas.
Eram tantos os grãos de loucura que emprestava, que a sua fama se espalhou por muitas terras e todos desejavam uns sapatos desenhados por ele, fosse qual fosse o preço que pedisse ou o tempo que os levasse a confeccionar.
Mas Jacinto possuía a simplicidade dos sinais de esperança, aqueles que apenas as mães são capazes de reconhecer e quando a diferença entre o seu dedo indicador direito e o dedo indicador esquerdo atingiu o centímetro e meio, os dois pararam de crescer.
Foi então que imaginou e realizou, os mais belos sapatos que alguma vez fizera. Cortou o couro macio, coseu as folhas douradas do diospireiro e as asas magníficas dos besouros, colou os seixos dos rios, enlaçou as fitas de veludo, soprou um grão de ar e ofereceu-os à mãe no exacto domingo em que as papoilas começaram a avermelhar.
E este foi o sinal do seu amor.


sapatos desenhados a lápis pastel de mb







36 comentários:

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


... grandear a grandeza que é amar ...!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 28 de Abril de 2011

Branca disse...

Muito lindo e terno, Manuelaaaaa, só não digo de elo porque não me quero apropriar de chamamentos carinhosos e belos que não me pertencem, mas que agora me apetecia qualquer coisa assim, lá isso apetecia, porque a trago muitas vezes na minha cabeça e no meu coração, quando leio histórias como esta, porque é tão bela a forma como sente o amor de um filho (a), porque é mais belo sentido assim por si...

Beijinhos
Branca

Eva Gonçalves disse...

Que lindo manuela... que lindo mesmo. Sapatos com grão de ar, para condizer com um vestido da cor das papoilas e um coração de mãe. Eu também dispensava um pedaçinho de dedo, em troca dum sinal desses... :)Beijinho grande

Petrus Monte Real disse...

...quando o filho preserva o sinal que o marcou desde a infância, a mãe rejubila e sente orgulho.
E quando oferece, à sua própria mãe, o melhor da sua obra, cobiçada por todo o mundo,
num momento único,
creio que entramos no campo
do Divino.
Bela história!

Petrus

Mariazita disse...

Bom dia, Manuela
Quanta magia neste lindo conto.
O gesto com que Narciso homenageou sua Mãe é duma beleza e profundidade ímpares.
Adorei!

Bom fim de semana. Beijinhos

Graça Pires disse...

Minha querida amiga Manuela, fiquei fascinada com este texto que é mais do que um poema de amor filial e materno... Gostei do Jacinto que escrevia poemas nos sapatos. Maravilhoso!
Um grande beijo.

Por toda minha Vida disse...

Lindo oferecimento as boas mães que ensinam os filhos a arte de amar poesias e rimar amor.

Beijo

Unknown disse...

ó Jacinto... meu bom rapaz!

tu condizes com o melhor que há no mundo - a tua amorosa mãe!

abençoado seja este sinal de amor e quem aqui o deixou escrito!


M A R A V I L H O S O... simplesmente!

um beijo é o meu sinal, de profunda admiração e amizade por si, Manuela minha amiga!

Walter

Por toda minha Vida disse...

Muito obrigada Manu.

A escritora estudou no mesmo colégio que eu estudei em Minas daí recordei muita coisa, o mundo é assim parece grande mas, por vezes, torna-se uma província.
E tivemos um professor de inglês muito bom e nós duas se lambram com carinho. Lembranças, saudade tudo muito bom de sentir.

Beijinhos

. intemporal . disse...

.

.

. quando nasceu nasceu perfeito .

.

. mais tarde uma mulher olhou.o e uma lágrima rolou.lhe rosto abaixo . a mãe pressentiu mas conquistou a margem da resistência para uma vida inteira .

.

. mais tarde ainda deixou de ser apenas ele e aprendeu a coabitar com outros tantos imensos e incontáveis seres permutáveis dentro do alvéolo da célula .

.

. serenou e viveu algum tempo sob o efeito nefasto procedente da linguagem das ilusões .

.

. estranhamente um dia despertou . naquele que considerou ser um momento tardio .

.

. mas os sinais de esperança estão agora ao alcance de todos os dedos de espera . outrora franzidos .

.

.

. este é o dia . desta que é uma verídica história de vida . quem sabe ainda na expectativa de uma narrativa viva .

. talvez por re.encontrar .

.

.

. um beijo feliz .

.

.

Nilson Barcelli disse...

Maravilhoso conto.
De encantar os leitores.
Gostei imenso, parabéns pelo talento qua a cada publicação revelas.
Um beijo.

Glorinha L de Lion disse...

Manuela nascestes com o dom de encantar! Tal como o Jacinto do conto, em cada um mais adentras o mundo do sonho, com um toque de asas de borboleta... beijos querida contadora de nuvens...

Anónimo disse...

Sem palavras... só uma lágrima e um nó enorme na garganta.

Obrigada amiga Manuela.
Beijinho

Silenciosamente ouvindo... disse...

Não consigo exprimir por palavras
o que senti ao ler este maravilhoso
post. Estou tão comovida.
Beijinhos
Irene

Anónimo disse...

Olá Manuela.
Gostei de ler os seus contos, tão bem contados, cheios de encanto, amor e saudade que por ali passeia à mistura. Histórias doces feitas de beleza que só alguém sabe sentir e transmitir tão docemente. Parabéns e volte, eu, sempre que me aperceba cá estarei para as ler e saborear.
Obrigada
Maria Inês

Manuela Freitas disse...

Sempre uma imaginação encantatória nos teus contos!...
Essa cumplicidade entre mãe e filho, só podia terminar com a magia da essência funda do amor!
Beijos,
Manuela

lolipop disse...

Vim pela mão da Ná...emocionei-me, maravilhei-me...tive vontade de levar papoilas à minha mãe, mesmo que ela já não lhes possa apreciar a cor.

Obrigada.

AC disse...

Começa-se a ler e logo se fica refém do respirar das palavras. A partir daí nunca mais se liberta, e quando isso acontece, no final, o peito está repleto de mil e uma sensações...
Tem um dom, Manuela, um dom maravilhoso!
Obrigado

Beijo :)

Anónimo disse...

Existe uma só bela criança no Mundo... mas para cada uma delas existe uma Mãe.
Beijinhos especiais neste dia... que é tão nosso.

Beatriz disse...

E este singelo sinal de amor vale TUDO!!!

Um feliz domingo!!!

um Beijo Manuela

Bia

www.biaviagemambiental.blogspot.com

Graça Pereira disse...

Manela
Há sinais que marcam os filhos, sejam jacintos, narcisos ou junquilhos e há mães que "costuram" almas como Jacinto fazia com os sapatos que confeccionava!
E naquele grão de ar, juntamente com as papoulas houve um abraço infindável de amor!
Lindo...demasiado lindo, Manela!
Um beijo especial neste nosso Dia.
Graça

Mª João C.Martins disse...

Maravilhosa é a simplicidade dos sinais de amor. Aqueles que só as mães reconhecem, como poemas escritos nos laços que enlaçam todos os seixos do rio.
Maravilho o tributo e a docura da mensagem contida neste conto.

Escreve tão bem, Manuela!

Um beijinho

Dulce AC disse...

"...soprou um grão de ar e ofereceu-os à mãe no exacto domingo em que as papoilas começaram a avermelhar.
E este foi o sinal do seu amor"

papoilas que aportam a vida
e marcam na simplicidade
os sinais de esperança
presentes, num para Sempre
sinal de amor

A beleza da vida num retrato perfeito, do filho e de sua mãe...

Numa papoila de muitas cores, um beijinho grande para si Manuela..Olá..:-)

dulce

Mar Arável disse...

Excelente

do ventre até à foz

Um brasileiro disse...

Oi. Tudo blz? Estive por aqui. Lindos desenhos. Gostei. Apareça por lá. Abraços.

Penélope disse...

Eu sempre me encanto com os contos e as imagens singelas que vejo aqui...
Hoje também vim agradecer sua visita no (IN)PERCEPÇÕES...
Grata, amiga, um abraço!!!!

Anónimo disse...

Manuela

Belíssimo poema de amor esta história de Jacinto! Ternura imensa destilada em cada frase, elogio da intensa relação que perdura entra mãe e filho: "Jacinto possuía a simplicidade dos sinais de esperança, aqueles que apenas as mães são capazes de reconhecer..." - e o grão de ar "inchando"!
Beijinho

Linda Simões disse...

Tão lindo,Manuela!

O cordão umbilical não se rompe nunca,elo pra vida inteira...

Beijinhos de saudade,

Linda Simões

ju rigoni disse...

Todos temos uma pequenina diferença no dedo indicador... Que saibamos calçar, com beleza e conforto, aquela que sempre nos permitiu o voo.

Que lindo, Manuela! Adoro a poesia que mora nos seus escritos.

Um beijo, querida. E inté!

alegria de viver disse...

Querida amiga

Amei os sapatos, parecem tão confortáveis, como sempre desenhos lindos.
Jacinto belo nome, meu marido é Manuel Jacinto.
Seu Jacinto também tem a beleza interna além da externa. São artistas tem dons, mas o mais fantástico é o coração simples e amoroso.
Seu texto sempre me inspira.

Com muito carinho BJS.

Isabel Venâncio disse...

Olá, Manuela

De cada vez que aqui venho, reparo nas modificações do seu blog. Gosto muito deste new look, com o som da música de fundo, quando entramos.
Os seus desenhos também são encantadores.
Digamos que tem um blog "hand made" e está uma verdadeira designer literária.
Quanto ao que escreve ... já sabe! Os seus textos são sempre sensíveis e bem escritos.
O de hoje ... é o de hoje, para muitos. Para mim, o texto de hoje, é a minha história de sempre - a de amor de um filho pela mãe.
Muito bonito.

Um beijo
Isabel

manuela baptista disse...

...Isabel

que há um Jacinto em cada solitário coração!

um beijo

manuela

manuela baptista disse...

um grão de agradecimento

a todos os que vieram aqui!

manuela

E.A. disse...

Manuela,
Venho atrasada, mas venho.
Dizer-lhe que todos os seus textos e telas nos deixam um rasgo de magia no coração. Todos. Mas este que agora li tocou-me tão fundo e vá-se lá saber porquê.
E dou por mim dando graças, porque no caminho a encontrei.

manuela baptista disse...

Elisabete

graças dou eu

por a ter aqui!


um beijo

manuela

manuela baptista disse...

e agradeço aqui

à Maria Inês

porque não sei onde a encontrar


manuela