código



Aprisionou-o irreflectidamente logo após o primeiro gorjeio do anoitecer e lançou para o ar frio e húmido a linguagem dissuasora de ramos e telhas. Os outros assustaram-se, confundidos pela razão das penas, sem vontade de brigas e gritos.
O homem não soube o que dizer, deixou-se ficar, as pernas pendentes, um ligeiro arrepio, que estupidez, disse, porque é que não vesti a camisola de gola alta, agora não adianta, altitude é coisa que não me falta e sentiu-se marear.
O pássaro ouviu-o e aproximou-se saltitando, telha sim, telha não, numa equidistância espontânea lança-lhe uma baga encarnada, redonda, brilhante, e mais outra ainda, desafia-o ao reconhecimento do jogo, não teme, conduz. O homem deixa-se conduzir, não sabe o que fazer, nunca foi prisioneiro de um pássaro.
A negritude das penas confunde-se com o escuro da noite, o bico laranja abre-se provocador e ensina ao ser sem asas, o grito agudo do medo da rapina das aves, o miar do gato gordo e mimado, o assobio desvairado do ciúme, o agressivo da guerra.
Criadores de códigos, partilham as árvores e os telhados, o calor do sol, a água da chuva, a lama, os ninhos e as penas. O pássaro é fiel, o homem nem sempre.
Os olhos do pássaro fixaram os olhos do homem e ele sentiu-se bem ali, longe do ruído dos dias, da solidão do micro ondas, dos talheres de plástico dos centros comerciais, do som das chávenas quando chocam com as tostas de queijo.
A noite cheira a uma promessa de frésias em Janeiro a um desfiar de sonhos, a um colar de bagas encarnadas para enfeitar um pescoço delgado.
E o homem entende a diferença do pássaro e não ousa perguntar porque me prendeste mas ele responde, para te libertar.



turdus merula de mb



28 comentários:

AC disse...

Manuela,
Há no "para te libertar" uma doce e convicta crença na (re)descoberta do sentido primeiro, no retomar da naturalidade das coisas.
Com bagas, ou raízes, ou frutos, talvez aprendamos a olhar olhos nos olhos. Esquecendo grelhas, tabelas, gráficos, índices...

Beijo :)

Penélope disse...

A noite teve cheiro de magia ao proporcionar um encontro dos olhos do homem com os olhos do pássaro.
Uma descrição muito linda.
Abraços

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


Para te libertar
fazeres da folha escorrega
por onde possas deslizar


Os nossos melros são boa companhia!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 14 de Janeiro de 2011

Branca disse...

Manuela,

Hoje as páginas dos amigos são todas tão belas, que me enchem de loucura, a loucura da noite e do encontro com os olhos de um pássaro sempre fiel, códigos de afectos e prisões libertadoras.

Arrepio-me com o contraste dos talheres de plástico dos centros comerciais, porque o que faz cada vez mais falta aos homens é a comunhão com a natureza, é o encontro com o ser e as origens, que lhe é roubada pelas catedrais do consumo.

A conclusão do seu conto é comovente, libertadora.

Beijos
Branca

. intemporal . disse...

.

.

. por ora re.conta.se da "razão das penas" como força promissora e libertadora de todas as amarras .

.

. e "altitude é coisa que não me falta" . na incessante demanda de um "colar de bagas encarnadas" que me coroam como se fora ninho as coroas dos reis . ou a cara dos homens .

.

. "o pássaro é fiel, o homem nem sempre" .

.

. quando sobre.vive à tangente .

.

. íssimo feliz .

.

.

Kika disse...

Auf!

Eu sou!

Auf!

Auf!

Beatriz disse...

Manuela
Prender para libertar...libertar para prender....às vezes é necessária esta ambiguidade...
Ah, eu falei dos belos desenhos de pássaros?!
Parabéns!!!
Bia
www.biaviagemambiental.blogspot.com

manuela baptista disse...

fézada

a tua,

é a alta fidelidade!

auf!

Manuela Freitas disse...

Belíssimo Manuela! «Para que me prendes? Para te libertar!..»
Estamos a precisar de ser presas pelos pássaros, pelas árvores, pelas nuvens, pelo mar...por tanto que nos extasia e só nos pode elevar!...
Beijo,
Manuela

Linda Simões disse...

Manuela

Tu devias escrever um livro.E com ilustrações.

...

Saudade,

Linda Simões

Virgínia do Carmo disse...

Que história fantástica, Manuela... e tanto é o sentido que faz... lúcido e terno ensinamento...

Obrigada!

Beijinhos

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

o passaro é fiel, o homem nem sempre...

prender para libertar...

gostei....

um bom fim de semana!

beij

António R. disse...

Os pássaros, tal como o mar podem sempre ensinar muito ao homem. o final da história é sempre a...a melhor parte.

Anónimo disse...

Restar-nos-á a fidelidade dos pássaros?

Creio bem que sim!

Um beijo sem código, Manuela

Unknown disse...

e eu, posso fazer aqui o meu ninho?

prometo encher esta página de olhinhos libertadores...!

agora vou... há muito trabalho a fazer, são aos milhões aqueles que quero prender!


um abraço de penas, Manuela!

pássaro-folha

Unknown disse...

Cada uma das suas histórias é uma presa que nos apetece soltar e sair com elas em voos plenos de liberdade, alegria, naturalidade e com tudo quanto os sonhos ainda nos conseguem acordar.

Foi bom, acordar aqui nesta manhã, e ter olhado para os olhos vivos do pássaro de olhos suaves.

Mª João C.Martins disse...

Aos olhos dos pássaros, os homens são aves que voam sem asas e perdem-se, tantas vezes, na solidão dos talheres de plástico. Eles, os pássaros, sabem do valor que tem, saber do caminho para um ninho, onde as penas são o aconchego brando e seguro de todas as viagens. Mas sabem também, que os homens entendem de cógigos e que uma baga vermelha pode ser uma bússula para quem anda perdido.

Manuela, esta página que é um ninho, debruado de bagas!

Um beijinho com toda a minha admiração por si

alegria de viver disse...

Querida amiga

Amiga, a vida é feita de códigos, penso que seria uma confusão se não existissem.
Valioso conto.
Cheio de reflexões.

Com muito carinho BJS.

Cândida Ribeiro disse...

bendito passáro que prende o homem para lhe dar a liberdade!

...um passaro sábio!

a natureza tem tanto para nos oferecer....
pena o homem continuar adormecido.

para a Manuela, um colar de bagas vermelhas e perfumadas.

Insana disse...

Lindo

bjs
Insana

Nilson Barcelli disse...

Ao contrário dos pássaros e dos outros animais, inventamos os códigos para depois os desrespeitar...
Excelente texto, querida amiga. Gostei imenso.
Boa semana, beijos.

Graça Pereira disse...

Lampejos de poesia neste encontro do homem com o pássaro e tenho a certeza que o homem saiu ganhando, cantando com profundidade as coisas simples e difíceis da vida!
As coisas lindas que escreves... e os desenhos? Extraordinários estes...tão reais que eu esperava a todo o momento que eles voassem daqui!
Beijo
Graça

Anónimo disse...

Em tempo de "tantos outros códigos", sabe bem ler este texto belíssimo e, com ele, recuperar a sinceridade e profundidade dum "simples" olhar - simples mas, tão forte e tão vivo, que ganha liberdade, disfarçada de prisão! Parabéns!
Beijinho

Graça Pires disse...

Um pássaro. O seu cantar. Uma noite com promessa de frésias. Um texto excelente, Manuela. Fico sempre espantada com a sua forma de escrever.
Um grande beijo.

manuela baptista disse...

agradeço-vos

a linguagem dos melros!

um abraço

manuela

Dulce AC disse...

"A noite cheira a uma promessa de frésias em Janeiro a um desfiar de sonhos, a um colar de bagas encarnadas para enfeitar um pescoço delgado."

Também eu gosto tanto do canto do Melro...liberta-me à vida e traz-me a natureza para perto de casa, sentindo-a no meu aconchego...

Como sempre, lindíssimo Manuela.

Subscrevo inteiramente as palavras da Linda, pense num livro, para nos ser mais fácil voltar às suas palavras, aos pedaços de vida que sempre nos dá...

Beijinhos grandes.
Dulce

Dulce AC disse...

Manuela...Hoje encontrei-me com a natureza ao sair de casa, bem cedinho...num canto de tantos melros...Foi maravilhoso e claro, lembrei-me de si...:-))

Muitos beijinhos.
dulce

manuela baptista disse...

...e eles falaram-lhe de mim?

um beijo

manuela