Permanece um frágil sentimento a ambígua construção de uma cidade, pedras, tijolos, cimento, respiração entrecortada de desejo e solidão, os gritos dos pássaros indiferentes às horas marcadas, às conversas desencontradas.
O voo é o ponto de partida, o pesponto é a vida dividida, a cicatriz aberta, não sarada, uma paragem de autocarro fustigada pelo desconforto e a humidade, se me sentar tenho sorte, encosto a cabeça ao vidro da janela e brinco de estar acordado.
Depois pousou um pé no chão e o outro no mar. O frio acentuava a palidez do rosto, os dedos gelados reclamavam a profundidade dos bolsos e os mendigos de palavras colavam-se ao céu de cada boca.
Um penso rápido não cura nada, é apenas um postigo que sossega as inconsciências na pausa entre um café e uma camisola em saldo. Dê-me lume, pediu o homem. Não tenho…Não tem? pobre sou eu e ofereço-lhe esta caixa de fósforos. Ele aceitou.
Na praça, as árvores sem folhas desafiaram-lhe a beleza estremecida de um cinzento-escuro e os pombos continuaram pombos e cinzentos e sedentos de migalhas, milho não há e os velhos e os pardais estão em algum outro lugar.
Inspirou e acendeu um primeiro fósforo. As pessoas pararam na calçada e um menino riu-se e dobrou o riso e o riso dobrou a esquina da rua e a rua dobrou-se em muitas outras.
Ao segundo fósforo, uma claridade estranha pintalgou-lhe as íris e as borboletas diurnas soltaram-se dos olhos, das bocas, dos ouvidos, das narinas e pousaram nas águas prateadas dos lagos dos jardins e os cristais de frio queimaram a tristeza e o medo.
Alguém disse, que disparate já ninguém usa fósforos, as histórias não se repetem, mas correu ao quiosque mais próximo e comprou cinco caixas só para si.
As chamas subiam como as folhas que dançam com o vento forte e quando escureceu a noite estrelou-se abismada em acendalhas de ouro, incrédula de tão quente estar, braseiro, fogueiro de navio que ousou pousar um pé na noite e outro no mar.
"cristais de frio" óleos de mb
22 comentários:
Manuela,
Se braseiro há, ele está por inteiro na sua escrita, onde não lhe basta a dignidade. Quer mais e mais, com assento privilegiado para a poesia e para o encantamento...
Beijo :)
Ai, cada história mais bonita que outra !
Parabéns !
Beijinho de saudade
MANUELA BAPTISTA
Se o chão é a noite
e a noite é o mar
o que será o braseiro
de tanto fósforo a nadar
De tanto fósforo a soprar
a estrela que ponho no ar
Uma vez mais ... lindíssimo!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 24 de Janeiro de 2011
Tenho no meu bolso, uma caixa de fósforos vazia. Aperto-a com força e assim aqueço os dedos enquanto conto as bocas que são mendigas. Acredito que as histórias se repetem e por isso, fico acordada, fingindo que durmo.
Quem sabe não me agarre às penas de um pombo com fome de milho e faça da minha saia branca uma bandeira, ou então, simplesmente me detenha a ver derreter os cristais de gelo no braseiro ateado pelas suas palavras, Manuela.
Sempre singular a sua escrita e tão prazerosa esta leitura...
Um beijinho
E bastou o gesto, a dádiva,
E bastou o olhar, o ver
e fez-se luz.
Manuela, os seus contos são ternura pura, luz a iluminar caminhos, mensagens de encantar.
Gratidão e privilégio meu de a ter encontrado
Mel
Belíssimo Texto, em que as palavras fluem dançantes como verbo transitivo para que os afectos mais sublimes o conjuguem.
Parabéns, com admiração,
filipe
.
.
. ? que dizer dos "mendigos de palavras" por ora vaga.mundos deste mundo que se re.memora quando se re.constrói .
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. talvez um postigo . um porto . um abrigo . até um jazigo . talvez . onde pousam e re.pousam as "árvores sem folhas" .
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. talvez sejam estas as escolhas que me inspiram na ascese de uma caixa de fósforos . talvez . uma prece . mais uma vez . ainda que outra vez . de.vez .
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. porque são talhas douradas as "acendalhas de ouro" . templo deste tempo . vento deste con.vento . braseiro deste navio aventureiro . certeiro . ordeiro . fogueiro e inteiro .
.
. um .
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. dois .
.
. três .
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. íssimos . totais . e ampla.mente felizes .
.
. paulo .
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.
Auf!
Na paragem de autocarro eu estou mesmo é acordado, há espera de te ver com o tupperware recheadinho...
A humidade, essa, fica toda na tampa!
Auf!
Auf!
"As pessoas pararam na calçada e um menino riu-se e dobrou o riso e o riso dobrou a esquina da rua e a rua dobrou-se em muitas outras"
E eu parei por me despertar naquele riso de menino,
e dancei, meu Deus como dancei...
Ousei seguir as borboletas
porque por aqui li que "o voo é o ponto de partida"...
Lindíssimo Manuela.
Beijinhos, muitos.
dulce
Manuela, vir aqui é como entrar nas portas mágicas de um livro, cheio de estórias encantadas, imagens luminosas. Viajo sem sair do lugar ao ler-te. Maravilhosos poema, beijos,
O calor deste conto afaga-nos o coração.
Beijinhos quentes
Manuela,
permita-me que lhe diga, que o seu coração é um imenso braseiro de sentimentos!
se estava triste, já não estou!
se estava frio, já não está!
obrigada Manuela, pelo calor!
um beijo
Walter
MANUELA
Passei só para ver momentos bonitos e deixar um beijo e...POESIA
Manuela, a história é maravilhosa e achei sensacional a ideia de ousar pôr um pé na noite outro no mar. De certeza que ambos mutuamente se aconchegaram...
Um grande beijo, amiga.
E da ficção entrelaçada entre o céu e o mar há-de nascer o livro, já construído de tantas personagens, que só falta pespontar.
Beijos Manuela, porque já não tenho palavras para dizer.
Branca
Olá querida amiga
Amei seu conto, mas este braseiro precisa esquentar algumas pessoas que poderiam resolver os problemas.
Com muito carinho BJS.
Amiga
Deixo um pouco da minha ria...
RIA
Ria de Aveiro
Tão pouco te tenho cantado
Tão pouco te tenho escrito
E tu Ria...
Cheia de beleza
Cheia de canais
Com águas azuis e belas
Vais esperando que te cante
Que fale ao mundo
Da tua beleza sem fim
Dos teus barcos moliceiros
Coloridos e acolhedores
Do teu Rossio...
Da tua gente...
E da tua beleza...
Linda Ria de Aveiro.
LILI LARANJo
Manu.
Aqueceu-me a alma o riso que de tanto se desdobrar aqui chegou.
Beijo e como sempre udo perfeito.
Renata
ternura em chamas num texto onde a autora tem um pé no mar e outro na noite...
muito bom.
beij
...e no desdobrar do riso do menino a alma da Manuela estava tão pura e iluminada que do braseiro nasceram estrelas e sonhos que desejaram voar para iniciar a sua viagem.
Fecho os olhos e preparo as asas para partir.
como sempre um conto delicioso.
um abraço de gratidão
Construir e desconstruir cidades, como o próprio construir e desconstruir a VIDA...
Lindo! Lindo!
agradeço-vos
o calor na noite fria!
um abraço
manuela
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