Era uma vez um pássaro que morava na torre de um castelo
abandonado, no cimo de um penhasco virado para o mar. Todas as manhãs voava em
busca de alimento e quando o inverno apertava, contentava-se com uma ou outra
erva que crescesse entre as pedras e guardava as fragas e as ruínas e era
frugal e solitária a vida do pássaro. As penas das aves da sua espécie pintavam-se de
um azul profundo durante o verão e um pouco mais mortiças nos meses frios, mas
as dele permaneciam brilhantes e azuis e era azul o pássaro guardião.
Sobre a mesa
comprida da cozinha estendemos o tecido, preso pelas quatro pontas e desenhámos
o pássaro, as asas abertas, as patas esticadas, quase a poisar.
Cheirava a
maçãs assadas e a canela e lá fora o cão corria e ladrava a pedir para entrar.
Um dia chegaram operários e máquinas. Mediram,
discutiram, demoveram pedras, arrastaram traves e o ruído invadiu os salões e
os corredores, calando o vento norte e o assobio do pássaro.
Esta é a minha casa, gritou o pássaro, agitando as asas.
Os pedreiros não o ouviram ou não o entenderam e continuaram a trabalhar. O
pássaro não desistiu e teimosamente gritava-lhes, às oito, às doze, às dezasseis
horas.
Um dia, o mais novo e buliçoso dos operários começou a assobiar. O pássaro, pousado nas
pedras da torre, escutava-o. O rapaz ergueu a cabeça e lançou uma melodia
simples, quatro notas apenas. O pássaro replicou. O rapaz não via o pássaro,
mas o pássaro sabia onde estava o rapaz e assobiavam os dois, às oito, às dez,
às doze, às catorze, às quinze e às dezasseis horas.
O tempo voava como as aves e o castelo sustentava-se em
novas pedras.
Começámos a
bordar. A cada um calhou uma pena, o pescoço, a cabeça, a pata direita, a
esquerda, a cauda, o bico, os dedos, a quilha do peito e escondido, por baixo
do ponto cheio, o coração.
Os rapazes
não bordam a linha de seda, mas bordaram. E em cadeia, o pássaro de dezembro
cresceu, apenas um pouco tosco por passar de mão em mão.
Antes do Natal chegar, pendurámos o pano bordado na parede da sala e deixámos a
janela aberta. Entrou o frio, uma chuva leve, o vento do entardecer. E um ou
dois pássaros.
Muitos meses passaram e os operários prepararam-se para
partir. Guardaram as máquinas e as ferramentas, não discutiram, não moveram pedras,
não arrastaram traves, silenciaram-se. Mas deixaram uma pedra solta na torre cimeira para que o
castelo mantivesse o seu guardião.
O pássaro observava e dando-se a ver, sobrevoou-os soltando penas de
um azul profundo sobre as suas cabeças. O rapaz reconheceu-o e assobiou
longamente uma melodia de sete notas. A ave replicou.
o melro-azul antes do Natal chegar
7 comentários:
MANUELA BAPTISTA
e a escala musical completou-se
BRAVO!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 4 de Dezembro de 2016
Maravilhoso conto em dois registos. Só tu, Manuela consegues este prodígio de encantamento, porque tens dentro de ti um pássaro azul, com asas de infinito e o seu canto é sempre o mesmo grito a falar de amor...
Um beijo.
Os pássaros azuis
cantam à flor das penas
têm uma particularidade
não poisam no chão
Bj
Muito belo, Manuela.
Eu, que conheço um antigo hotel em ruínas
que está cheio de ninhos de cegonhas...
O pássaro arranjou um amigo e, amigos, são
pessoas imprescindíveis...
Abraço.
~~~
Lindo texto, Manoela,
Do teu belo passarinho
Feliz a viver sozinho
E a uma torre se encastela
Como sendo o dono dela
E do Castelo inteirinho
Sem patrão e sem vizinho
Sujeito a toda procela.
Cantas o canto e o encanto
Do passarinho a um recanto
Liberto sem um entrave.
Eu vejo ao meu espanto
Que contas vida de um santo
Representado na ave.
Grande abraço. Laerte.
.
.
. uma escrita deslumbrante . oriunda do núcleo de uma mente sã e tão sábia .
.
. íssimo . terno e feliz .
.
.
Esta voa alto, Manuela.
O dom do encantamento está bem desenhado nos espaços onde se arredonda a história. A forma encontrada, marcada entre dois tempos é de mestre.
Muito obrigado por estes momentos: todo o adulto gosta de ser criança.
Bj.
Enviar um comentário