para os que regressam a cada natal

 



No primeiro canto dispôs as pinhas, soltaram-se três pinhões e um pedaço de resina. No segundo colocou as estrelas de madeira e as latas de tinta. No terceiro, os pincéis e a cola. No quarto, quinto e sexto canto, alinhou as figuras de barro, o moinho, o lago dos patos. Os papéis de seda, as missangas e as penas, foram guardados dentro de uma caixa, pois não sabia o que fazer com eles. E escutou o silêncio da casa.

É um ritual esta espera, antes do burburinho, da confusão da família. Atardava-se o dia e a claridade lá fora esfriava os vidros das janelas e ele assentiu na eternidade que alguns escassos momentos adquirem, na capacidade que conquistara para alterar a composição do tempo. Pudessem todas as horas ser assim. 

Decorou a árvore, pintou as estrelas, espalhou as figurinhas de barro, construiu uma gruta, aconchegou o menino nas palhas ao lado da mãe, ajeitou-lhe o manto e disse-lhe, avé maria.

Por fim, acendeu as velas, ligou as luzes e sentou-se no canto mais quente da sala com uma chávena de café na mão, a saborear, a música baixinho e uma almofada. A caixa das missangas e dos papéis de seda começou a abanar, um ruído seco, qualquer coisa a bater. Levantou-se curioso e abriu a tampa. Da caixa vazia saltou um pássaro, bateu as asas a aprender o equilíbrio das penas, abriu e fechou o bico dourado, os olhos brilhantes de missangas e pérolas. Esvoaçou pela casa, rasou os livros, os quadros, deu cambalhotas, fez tombar o açucareiro. E ele parado segurando a caixa e a tampa, e o pássaro pousou-lhe no ombro e deu-lhe uma bicadinha na orelha.

No presépio o menino riu-se, dobrou o riso e o pássaro cantou.


dezembro 2023





 

olhos grandes, coração de peixe




Danças comigo? perguntou o peixe. A rapariga assustou-se, não estava à espera de uma pergunta daquelas vinda de um peixe, um pouco gordo, escamas arredondadas, barbatana caudal larga e curta, olhos grandes e salientes.
O peixe insistiu, não me ouviste? A rapariga balbuciou, sim…acho que sim. E acrescentou, como peixe, és muito falador. Mas decidindo aceitar o desafio, inspirou profundamente e mergulhou. Sentiu a impulsão da água, os cabelos soltos à mercê da corrente, abriu os olhos o mais que conseguiu, imitando o peixe.
O peixe riu-se, deu uma cambalhota, mudou de direcção e deixaram-se ir,  como dois peixes ou como duas raparigas-peixe, na crista das ondas, mais fundo no mar.
Nadaram durante duas horas e dez minutos e depois descansaram. O peixe, junto das algas e dos ouriços, a rapariga sentada numa rocha, a cara virada para o sol.
Somos diferentes, disse a rapariga. O peixe fez glup e naquele instante parecia apenas um peixe vulgar preso numa poça de água e ela uma menina pequena a brincar ao faz-de-conta. Passaram uns instantes que lhes pareceram infinitos e o peixe de olhos grandes disse, escuta o bater do teu coração. Não são iguais os nossos corações, respondeu a rapariga. 

Tinha razão o peixe e tinha razão a rapariga. No entanto para dar entrada em qualquer dos nossos corações existe sempre um átrio, comum aos peixes e às raparigas, um espaço entre a porta da rua e o interior de uma casa, onde somos bem vindos e nos é permitido dançar.




















Para a Maria do Mar no dia do seu aniversário

15 de agosto de 2022






o rapaz e a estrela





Está frio. O rapaz bate as palmas para aquecer e esconde as mãos debaixo do capote. O cão anda por ali entretido com as tocas dos coelhos, com o balido das pequenas ovelhas. No céu escuro de breu apenas uma estrela e um vento agreste que faz esvoaçar o lenço azul turquesa do rapaz. Foi um presente da avó que está no céu como aquela estrela. E sopra o vento norte ou o vento sul, o de este e o de oeste. A estrela acompanha o vento e o lenço azul turquesa do rapaz e o cão acompanha o rapaz que acompanha a estrela.

Por detrás dos montes o piar da coruja e o rapaz diz, mau agoiro, mas de súbito, o canto do pássaro nocturno e o rapaz diz, boa a estrela. Pelos caminhos chegavam gentes curiosas em busca do maravilhoso e divino desconhecido e não sentiam hostis as pedras dos carreiros.

Foi assim a noite primeira, bela, gelada, silenciosa.




Desejo-vos Feliz Natal!






conto da rapariga que pintava pássaros, peixes ou um cavalo a galopar



Morava numa casa branca virada para o mar. Duas portas, cinco janelas e sobre a porta da frente crescia uma buganvília de flores vermelhas e era suave a sua sombra nos dias quentes de verão. 
Levantava-se cedo, vestia o fato de banho, uns calções e uma camisola preta. Num saco a tiracolo colocava uma maçã, uma garrafa de água, uma caixa para guardar tesouros e saía para a praia a cantarolar. 
A rapariga gostava de camisolas pretas. Possuía várias, de manga curta, meia manga, manga comprida, sem mangas e em cada uma delas a rapariga pintava um pássaro ou um peixe, uma estrela, uma borboleta ou um cavalo a galopar. 
Os habitantes da aldeia diziam, quem será esta menina que habita a casa branca virada para o mar e nos acorda de manhã com um canto alegre? E os pescadores ao deitar as redes, avistavam-na nas rochas e diziam, lá está a menina em busca de tesouros e conchas e acenavam-lhe de longe e ela acenava-lhes também e desejava-lhes, boa travessia e que seja farta a pescaria, pescadores do alto mar. 
Numa manhã muito quente a rapariga mergulhou como sempre fazia e destemida que era, nadou para longe da rocha, o sol a brincar-lhe no cabelo molhado e os peixes de prata a mordiscarem-lhe os dedos dos pés. A rapariga ria e entre uma risada e outra ouviu nitidamente clap, clap, clap e uns olhos redondos e brilhantes a enfrentá-la. É uma foca pequenina, disse a rapariga espantada. A foca voltou a bater as palmas e mergulhou. A rapariga seguiu-a e ficaram por ali a nadar até se cansarem e o calor do meio-dia se tornar insuportável. 
Sentaram-se as duas sobre a rocha e a rapariga perguntava, como é que vieste aqui parar? E a foca respondia com o olhar. Tens saudades de casa? Ainda não, foi uma corrente fria que me trouxe. A mim também, disse a rapariga. Haverá uma corrente fria que nos há-de levar, pensaram as duas. 
Ficaram amigas, a foca pequenina e a menina que pintava pássaros, peixes ou um cavalo a galopar. Todos os dias se encontravam junto às rochas e a rapariga contava-lhe da casa branca com cinco janelas, das camisolas pretas, dos pescadores e das redes de emalhar. Tens de ter cuidado com as redes, foge delas, não te prendas, nada bem fundo e a foca respondia com o olhar. 
O verão foi passando, chegou o equinócio e com ele, as tardes frescas e um vento que soprava do lado do mar. 
A rapariga sabia que, apesar de pequenina, a foca não cabia na sua caixa de tesouros e que se tentasse aprisioná-la como às conchas e aos búzios, ela morreria de falta de ar e de mar. Então desenhou a foca pequenina com os olhos a brilhar e pintou-a numa camisola preta de manga curta, de meia manga, de manga comprida e sem mangas. Guardou-as na caixa dos tesouros 
Na manhã seguinte chuviscava. A rapariga vestiu a camisola de mangas compridas, pegou em dois ramos da buganvília onde ainda cresciam algumas flores e caminhou até à praia e à rocha onde a foca a esperava. 
As gentes da aldeia diziam, lá vai aquela menina que habita a casa branca e nos acorda de manhã com um canto alegre e um coração grande e os pescadores nesse dia não saíram para pescar pois estava alteroso o mar. 
A foca pequenina reconheceu-se na pintura da camisola preta e bateu palmas clap, clap, clap e a rapariga disse-lhe, vem aí uma corrente fria para te levar a casa e toma estas flores da terra para te protegerem nesta viagem. E a foca mergulhou deixando-se levar. 
E num último olhar à rocha e à praia, a foca pequenina viu uma rapariga grande que gostava de camisolas pretas e que em cada uma delas pintava um pássaro ou um peixe, uma estrela ou uma foca do mar.




Para a Mar no dia do seu aniversário

15 de agosto de 2021