Quando a chuva parou, o homem abriu todas as janelas da
casa e saiu para a rua a assobiar. Ia apanhando aqui e ali os primeiros morangos
silvestres e comia-os no mesmo instante, pois era assim que lhe sabiam bem,
frescos, com um raio de sol quente a acompanhar. Não era organizado nestas
tarefas de colher e armazenar, saltava refeições, esquecia-se do jantar. Se lhe
cheirava a pão quente, comprava e comia-o pelo caminho, depois dobrava o saco
de papel e escrevia este lembrete: manteiga e guardava-o no bolso das calças
onde existiam mais quatro ou cinco papéis com recados semelhantes. Quando as
calças iam para lavar, retirava os papéis e acendia a lareira.
Não era um homem distraído, era um homem concentrado.
Restaurava pinturas antigas, vivia pendurado em andaimes, a estudar camadas, as
superiores, as inferiores, a composição das tintas, a fazer vir à superfície a
origem das coisas. No entanto, nem sempre o mais belo é o original, o
primitivo.
No quintal da casa havia uma árvore frondosa, uma
macieira a despontar e uma cerca que não cercava nada e abanava com o vento. A
casa, por seu lado, oscilava, mas o homem atribuía esse facto às noites mal dormidas em
que dava voltas na cama em busca de uma solução para um qualquer problema.
Numa dessas noites levantou-se, foi fazer café, encheu
uma caneca e bebeu-o, preto, sem açúcar. Colado no açucareiro um
lembrete: comprar açúcar. Apesar da insónia o homem riu-se e foi para o
quintal, contar as estrelas, pensava ele. A lua cheia tinha surgido no
horizonte e em cima do telhado da casa, num equilíbrio instável, pousara um
pássaro enorme, desajeitado, mas alado. Por cima da cabeça, uma espécie de
antena e emitia sons que o homem não entendia e quando tentou falar-lhe, foi o
pássaro que não o compreendeu e agitando a cauda partiu duas telhas e
desapareceu. O homem ficou ali parado, a pensar que qualquer coisa mágica tinha
surgido na superfície da sua vigília.
E regressou na noite seguinte e nas outras noites e o
pássaro também. Quando o pássaro piava, o homem calava-se e silenciava-se o
pássaro se o homem falava. Parecia uma equação impossível.
Então o homem pegou num lápis de carvão e numa folha
branca desenhou a árvore frondosa e um pássaro desajeitado. Recortou-os,
colou-os numa folha preta. O pássaro observava e segurando com o bico um lápis
branco, desenhou a macieira a despontar, a cerca, a casa, as janelas, as
portas, os torreões, o pátio das pedras soltas e começou a cantar.
E o pássaro regressava nas noites de insónia e
acompanhava o homem nas manhãs de trabalho. Pousava nas cúpulas e nos
zimbórios, partia uma telha ou duas, trincava o estuque das paredes, entornava
as tintas. Mas cantava e o homem assobiava. Ou seria ao contrário, não sei
dizer porquê.
o pássaro
a árvore frondosa, a cerca, a macieira a despontar
a noite das insónias
carvão, papel, tesoura, cola e lápis branco em fundo
preto
16 comentários:
MANUELA BAPTISTA
Simbiose
Maravilhosa!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 21 de Maio de 2016
Quando as insónias chegam qualquer som poderá ser vozes de pássaros. A descrição está fabulosa.
Puro encantamento, Manuela!
É sempre tão bom vir aqui!
Beijos :)
O pássaro assobiava
e o homem cantava
eu sei
presenciei
eu sou a telha
que restou inteira
Que bom voltar aqui, belíssima história Manuela,
Parabéns e um beijinho.
Um pedaço da noite nas pupilas do pássaro a incendiar o olhar do homem...
Sempre a magia por dentro das palavras...
Um beijo Manuela.
.
.
. e num tempo em que proliferam insónias noite.após.noite . sabemos agora que não estamos sós . sempre que somos nós . e fazemos parte de uma união em dueto .
.
. e bonita é a (c)asa onde pertenço .
.
. íssimo feliz .
.
.
~~~
Com o maravilhoso,
pleno de humanidade, sempre a surpreender-nos...
Gostei da descrição do perfil psicológico...
Beijinho, Manuela.
~~~~~~~~~~~~~
Mal se desfaz a cama e o pássaro vem desafiar-nos a imaginação.
Como sempre, Manuela, com o seu inesgotável talento.
Quando me vier o pássaro vou ler tudo em tom lento.
Quem sabe se as telhas deixam de se quebrar?
Abraço
Brilhante mente
há noite por vezes há um pássaro que luz
Bj
Olá, Manuela.
Companhias que não se esperam tornam-se em amizades improváveis, tão boas de fazer perdurar.
bj amg
impossível deixar de ler, e beber todas as linhas bem estruturadas com uma escrita mágica, original e bela.
» agitando a cauda partiu duas telhas e desapareceu."
adorei e lá se foi partindo outras em outras visitas.
como eu entendo as insónias, só que ainda não encontrei esse pássaro :)
muito bom o texto e gostei dos desenhos.
beijinhos
:)
Vai longa a primavera, e a Jacinta nem se arrastou aqui, mas vem agora, coitada, é fim de semana e o trabalho vai custar, este é um vale de lágrimas, onde se sofre, o turco do Kebab e a Jacinta dos Salpicões,
ai, Dona Manuela,
que conto tão lindo, acho que o homem nunca o conheci, mas lembro-me muito disto, "a lua cheia tinha surgido no horizonte e em cima do telhado da casa, num equilíbrio instável, pousara um pássaro enorme, desajeitado, mas alado...",
eu acho é que não era no telhado da casa, era mesmo na rua,
que pássaro tão grande, e não era alado, tinha tudo menos asas,
benzó-deus,
e escuro, parecia um corvo de Santiago,
dizia que era um vulcão, senti-me a marreca de monsanto, que eles já nem disso usam, preferem a aleijada da cova,
da moura,
estava o pássaro grande em debicar em mim, vem a Irmã Chica da Segurança Social, com o "Correio da Manhã", nas garras,
tinham sido trinta e tal a violar uma adolescente,
elas não me contam nada, não percebi se eram brancos, índios, ou mestiços,
trinta
até fiquei com calores, pensei que tinham escarrapachado com a minha vida toda nos jornais, só me apetecia chorar como a Hilary Clinton,
por que choras, jacinta?,
e eu,
já só vejo nessa página de jornal o meu destino, isto anda cheio de pássaros enormes, a fingirem que são alados, para saltarem lá de cima, no número do guarda-vestidos, corpus christi, se eles tratam assim as adolescentes,
coitadinha,
que fado horrível vão guardar para esta centenária?...
"... partiu duas telhas e desapareceu",
virgem maria,
foi mais quebrar as bilhas e deixar-me esvaída a chorar,
parecia uma santa popular...
Primeiro, pensava que eram as cores passageiras da despedida da chuva: não são, são as cores veladas de um chocolate de fim de tarde,
olho,
vejo e gosto marfins,
é nácar,
é um embutido indo em qualquer coisa, de preciosidades desenhadas. O tom é bom, como aquele terceiro pedal do piano: dizem que ao mesmo tempo mente em cores de surdina.
Oboés,
malte,
cafécados,
nos bolsos, os guardapnapos de um galão,
penso eu
Eu já sou distraída e pouco concentrada...
Mas percebo o que é bom por perto, como um delicioso pão quente, ou um pássaro a pousar na minha janela. Mais um motivo para me distrair...
Adoro passar por aqui e me deixar levar pelos seus contos Manuela!
Beijinho
Bia <°(((<
Enviar um comentário