conto do rapaz que gostava de berlindes azuis










A loja do senhor Artur tinha muitos armários e prateleiras. Eu gostava de lá ir fazer recados à minha mãe, dois carrinhos de linha âncora, uma agulha fininha de remendar, um quilo de açúcar, duas latas de atum Tenório. Se sobravam uns trocos, comprava um berlinde ou dois dos mais brilhantes, que o senhor Artur guardava em frascos grandes de vidro do lado esquerdo do balcão. Eu afundava a mão naquele mar de vidro em busca dos azuis de todos os tons, que me dariam sorte, que me fariam abafar os adversários.
Diziam que era um homem abastado, com a loja, as filhas, a mulher e a criada, frascos repletos de berlindes, caixas de lápis 2B e uma escada de pedra com um corrimão de ferro forjado que dava acesso ao alpendre do andar de cima, onde ele morava com as filhas, a mulher e a criada.
Eu era um rapaz pequenino, umas vezes tímido, outras não. Uma manhã, antes do almoço, fomos brincar para ali, eu e uns quantos da primeira classe, a saltar os degraus dois a dois e num desafio, enfiámos as cabeças nas grades da escada exatamente no espaço em que o ferro forjado formava um losango e ríamos muito a macaquear tontices. De repente senti um frio no estômago, tentei tirar a cabeça das grades e não consegui. Senti-a enorme, as orelhas apertadas naquele losango e entrei em pânico. Os outros rapazes não tiveram dificuldade em libertarem-se e gozavam-me perdidamente. Eu gritava e via o meu futuro estranho, a cabeça agarrada a um corrimão e nunca mais um berlinde sequer e a minha mãe a castigar-me por ser cabeçudo e pateta.
Foi então que ela apareceu. Tinha um vestido azul berlinde e um avental branco, o cabelo castanho preso numa trança que lhe chegava a meio das costas, uns olhos meigos e numa voz calma enxotou-os, aos rapazes que riam de mim. Colocou as duas mãos sobre a minha cabeça, disse, não chores, já vais sair daqui e rodando-a um pouco, soltou-me daquela espécie de guilhotina. Eu soluçava e ela pegou-me pela mão e levou-me para a cozinha. Numa chocolateira de esmalte ferveu cacau e eu sentado num banco, as pernas a balouçar de medo ainda, queria falar e não era capaz. E ela disse-me o seu nome, mas eu não fixei e bebi cacau quente e espesso e comi línguas-de-gato e foi a melhor refeição que comi na minha vida. Fiquei mais um pouco para animar, ajudei-a a fazer as camas de lavado, ela ensinou-me a lengalenga da criada lá de cima que é feita de papelão e quando vai fazer as camas diz assim para o patrão.
No dia seguinte regressei com umas flores do campo e como não me recordava do seu nome, chamei-a do fundo das escadas, Cacau, ó Cacau, abre-me a porta. E ficámos amigos, a Cacau e eu e as línguas-de-gato.
Muitos anos depois encontrei-a a trabalhar numa torrefação. Já não era a criada lá de cima, era a menina Rita, mas eu insisti, és tu Cacau? Era. Ela deu-me um cartucho de papel cheio de grãos de café para a minha mãe e sentámo-nos num caixote de madeira a trincar amendoins torrados.
Hoje sou um homem, às vezes tímido, outras vezes não. No entanto o meu coração oscila entre o odor do cacau quente e do amendoim torrado.















20 comentários:

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


e, no entanto
hoje sou um homem
amendoim e pingente
odor de um cacau quente


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 7 de Novembro de 2014

Beatriz disse...

Ah o cacau.....sempre trazendo boas recordações!
Tuas histórias são tão doces e singelas como o cacau. Feliz tu, Manuela, que sabe mexer com as palavras!

Grande abraço <º))))< Bia

Unknown disse...

Boa noite
Como é agradável ler estes textos.
Hoje jogou com a simplicidade dos meninos da aldeia.
Quantas imagens passaram por aqui enquanto lia. Belo demais esse cacau e o rapaz dos berlindes azuis.

Benó disse...

Nunca joguei ao berlinde. Era menina.Não tinha irmãos mas lembro-me de ver jogar aquele que é hoje meu marido e dos seus berlindes muito coloridos e abafadores todos guardados num saquinho de pano. Obrigada por me fazeres voltar à infância tão distante.

Como gostei de te ler

Rogério G.V. Pereira disse...

Dantes
nos bairros das nossas cidades
havia lojas assim,
com balcões assim
a onde fazíamos recados assim
e tinham, também, berlindes azuis
e tudo era assim
e ainda hoje
tenho esse travo
entre café e amendoim

(teu conto sabe a saudade)

ki.ti disse...

línguas de gato...?!

Kika disse...

Kriu?

Lembraste-me a mercearia do Sr. Alvarinho, onde se vendia isso tudo, sempre com o mesmo sorriso e com o mesmo carinho... Naqueles tempos embrulhavam-se os artigos nas folhas das listas telefónicas, se fosse hoje, utilizar-se-iam as folhas dos livros que os blogueiros pagam para publicar, para dar alguma utilidade aquilo, nem que fosse a embrulhar...

Kriu!

Anónimo disse...

Dantes era assim, como tão bem diz acima, o namorado da nossa Mindy!

Graça Pires disse...

Sabes, Manuela, senti-me igual ao rapazinho, umas vezes tímido outras vezes não. E que bem me soube o cacau e nem falo das línguas de gato que eu tanto gostava... Quanto aos berlindes azuis ainda os guardo para inventar o mar...
Um beijo.

Olinda Melo disse...


As recordações da infância ficam para sempre. Boas ou más perduram na nossa memória. Os sabores, os cheiros, os lugares... Lembro-me da casa da minha madrinha e do bolo acabadinho de fazer que ela me oferecia ao lanche. :)

Um bom fim de semana, cara Manuela.

Bj

Olinda

Vitor Chuva disse...

Olá, Manuela!

Doces memórias dum tempo longínquo que continua tão perto:Das chocolateiras mais dos cartuchos de papel em forma de cone onde tudo cabia, e ainda do atum Tenório que felizmente ainda por cá mora.
Para não falar dos berlindes e das covinhas que se escavavam no chão, e onde se passavam a horas a fio...

E este texto está uma delícia.

Um abraço e bom Domingo.
Vitor

. intemporal . disse...

.

.

. sabes . manuela . pois sabes . há tanto que sabes . aliás . és das rar.íssimas que sabes . como se foras um jóia . discreta . mas permanente.mente rara .

.

. um . vêjo . :) .

.

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Graça Pereira disse...

Gosto das histórias com aromas de cacau quente e amendoim torrado...Ficam em todos os campos de recordação!
Estive ausente mas voltei..talvez com a cor de um berlinde azul!!
Beijo
Graça

mz disse...

Em casa do meu avô também existia uma janela com grades de alvenaria para o quintal das laranjeiras e eu, algumas vezes tanbém metia lá o braço e a cabeça para poder colher laranjas e comer com as amigas. Sempre me safei mas houve alturas em que me assustava.

Adorei a história, achei-a ternurenta e repleta de sensações.

Um grande abraço e boa semana.


Isa Lisboa disse...

Pois é, há pessoas que nos marcam assim! Tivéssemos todos a sorte de ter uma Cacau na nossa vida! :)
Beijinhos

Agostinho disse...

Mais uma, como sempre de encantar.
Mas esta tem um gosto muito especial porque nos/me transporta a um tempo que foi/é nosso/meu.
Os berlindes... Havia o abafador...
Os recados. Há de trazer aqui o arco que era o meio de transporte utilizado quando a mãe queria algum ingrediente em falta para completar a refeição.

Kika disse...

Kriu?

Viste onde deixei as minhas hermesetas? Estavam ao lado da embalagem do Daflon!!!

Kriu!

Rita Freitas disse...

É tão agradável ler que acabo por ir buscar as minhas próprias memórias, as mais bonitas.

Gostei imenso

beijinhos

Silenciosamente ouvindo... disse...

Como sempre uma belíssima história.
Apesar de ser menina tive muitos
berlindes e gostava de brincar
com eles...Também conheci uma
dessas mercearias. Cacau também
se bebia na casa de meus pais.
Voltei a uma época em que era mais
feliz, do que hoje.
Bj.
Irene Alves

Anónimo disse...

Pelo menos leva a loiça para dentro pois com os pingos da chuva é cá uma sinfonia que até já tenho de dormir de headphones...