Dois terços da borracha eram rosa escuro, um terço, azul
forte. Para apagar grafite ou tinta. Safar uma letra ou uma palavra escrita a
tinta era uma tarefa inútil, reduzida a um rasgão mais ou menos arredondado na
folha do caderno. As crianças infelizes insistiam neste método de abertos e
fechados. Os bons alunos treinavam a grafite e só passavam para a tinta permanente
quando a habilidade manual o permitia e aí o erro era imperdoável, mais valia
colocar entre parênteses, riscar, ou, fazer como eu, florear a palavra. Abrir
os ás e os ós com pétalas de margaridas, desenhar uma formiga preta ou uma
aranha venenosa. Os erros-inseto eram os meus preferidos. Versáteis, quase verdadeiros.
Assustadores também, segundo a Eugénia, a minha colega de carteira, quando as
carteiras eram de dois lugares como os bancos do comboio.
A Eugénia não tinha graça
nenhuma, era gorda, irritante, queixinhas, o cabelo oleoso de risco ao lado
e dava gritos por tudo e por nada. Um dia num gesto generoso, ofereci-lhe uma
caixa de fósforos com um grilo dentro, para ele cantar à noite quando ela o
soltasse no jardim. Nem tive tempo de explicar. A Eugénia gritou e passou
definitivamente para a carteira da frente onde podia sentar-se também de frente
para a professora.
As borrachas de duas cores e as verdes de desenho,
limpavam-se na pedra de calcário dos parapeitos das janelas, enquanto lá fora os
melros e nós aqui.
As canetas eram uns objetos fascinantes com aquele
depósito de tinta e os dedos, polegar, indicador e médio, sempre borrados de
azul e depois de preto, quando o regulamento nos permitiu escurecermos um pouco
a mente e possuirmos uma carteira individual onde guardávamos os livros
proibidos e os insetos verdadeiros.
Outubro não era isento de medos. Às vezes de noite
ouvia-os grasnar e já sabia que tinham escapado das caixas de tintas e guaches,
saudosos de peixe fresco, das torrentes de água a galgar-lhes as patas
possantes, as asas abertas e as penas pretas da China. As que os fazem voar.
E dá-me assim uma saudade de pauis, caniçais, juncais,
sapais a grassitar a raridade das aves e da vida.
24 comentários:
MANUELA BAPTISTA
E dá-me assim uma saudade ...
Bravo!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 6 de Outubro de 2014
.
.
. de uma pelica . gentil . a Sua escrita . e para muitos . anos . :) .
.
. e também para sempre .
.
. íssimo . sempre feliz .
.
.
Kriu?
Ólhá Branca!
Fuje!!!
Kriu!
A Eugénia é tal e qual a Branca...
Só quem borrou os dedos assim
é que poderá (tudo e bem) entender
sobre o que acabas de escrever
Outubro era o mês de todos os medos e, por isso, talvez o mais saudoso
Olá, Manuela!
Soube bem voltar à escola primária, que normalmente só começava já era entrado o Outubro. E recordar as caneta de tinta permanente e também as outras de molhar, que deixavam os dedos sujos.E mais os cadernos de duas linhas, para evitar que a escrita saísse do rego...E ainda o pelicano, que ali tinha a forma de tinteiro sem penas.
E o texto está uma delícia
Um abraço
Vitor
É sempre maravilhoso passar aqui e beber estes textos que sobram das memórias de canaviais e sapais.
Muita imaginação e alguns medos que vinham seguindo os passos de quantos se sentavam nestas carteiras de dois lugares e sem querer borravam as letras, as palavras tornando tudo ainda mais triste, mas foi assim que aprendemos.
Fizeste-me voltar à infância:"menina rosada de sonhos nos bolsos". Que saudades e que tormento as canetas de tinta cujos borrões quase nos humilhavam...
Sempre excelente, Manuela.
Um beijo.
O meu neto defende a tinta permanente
mesmo quando lhe ofereço
lápis de carvão
Boa memória viva
olha um certificado de aforro do montepio!
eu prefiro as borrachas rotring para andar às patadas pela casa
Lembranças. E as borrachas que sujavam mais do que apagavam. Voltei à infância, à primária, à bata branca. Obrigada por me fazeres novamente, menina.
Gostei da nostalgia que me trouxe estas lembranças, ainda apanhei um bocadinho deste tempo :)
bjs
Manuela,
traz para aqui coisas de deslumbrar,que nos fazem voltar atrás no tempo. Maravilha!
Se eu tivesse talento, diria apenas, sem borracha, ressalvo: onde se diz “Eugénia queixinhas” deve ler-se “Ingénua parvinha”. A brincar, hem!
Bom recordar, beijo Lisette.
voltei à infância e deu-me saudades de comer maças verdes (que coisa!)...
muito belo
:)
Amiga Manuela, voltei à infância e quase senti o cheiro da borracha...a ardósia onde fazíamos as contas e o mata borrão, que me irritava, quando eu fazia asneira. Não podia limpar tudo sem borrar. Lindo texto que adorei. Beijos com carinho
Manuela:
Admirável,
como dás vida aos objectos
e animais:
rico, transparente
e belo!
Que saudade
dos tempos de infância!
Grande abraço
Descobri-lhe o tempo, que não o modo, pela tinta. Que a minha, mais antiga, talvez pela paixão do pião que o mestre surrupiou à falsa fé, era de cor violácea com a orelha na vergasta da cana por usar a canha a escrever o ditado.
Afora isso, bom, não tive sapais, menos ainda pauis, ah!, mas tive grilos!...
E adorei!
abraço.
jorge
Como sempre os seus textos são
fascinantes, também voltei à
minha infância(tantas dezenas
de anos já passaram...e aos dedos
sujos de tinta, do tinteiro na
carteiras...) mas hoje tem que se
ter ainda mais medo do mês de
Outubro...
Bj.
Irene Alves
Kriu?
Bravo, Manuela,
Bravo!
Uma cortesia
Favir - Fábrica de Lã d'aço, Esfregões Saponificados, Galvanizados e Inox
Kriu!
"Pauis de roçarem ânsias pela minh' alma em ouro...
Dobre longínquo de Outros Sinos... Empalidece o louro
Trigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minh' alma...
Tão sempre a mesma, a Hora!... Balouçar de cimos de palma!
Silêncio que as folhas fitam em nós... Outono delgado
Oh que mudo grito de ânsia põe garras na Hora!",
e como tudo não muda e empalidece a luz por este poente fora :-)
Manuela, assim pudessemos florear todos os nossos erros. Os escritos e os feitos. Transformar o errado no certo com toques de magia.
Outubro ainda não é isento de medos.
Abraço,
mz
possuirmos uma carteira individual
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A carteira individual também era reservada aos que estavam sempre a conversar e aos que davam beliscões nos parceiros.
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Felicidades
MANUEL
16/10/2014
De novo aqui desejo-lhe um bom fim
de semana.
Bj.
Irene Alves
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