Era uma vez um mercador de joias que tinha duas filhas. A
mais velha gostava dos dias quentes de sol, de gargalhadas, de cães
brincalhões, de sumo de laranja e de pão com mel. A sua pele era da cor dos
amendoins torrados e o seu cabelo era vermelho como as sementes das romãs. Quando
falava, a sua voz enchia de alegria os copos vazios e fazia bater as portadas
da casa.
A mais nova empalidecia no outono e vestia um casaco
branco de lã mal o inverno chegava. Possuía um gato branco e preto silencioso
como ela e afastavam-se os dois nas noites de lua cheia e gelado era o ar, mas
nem o gato nem ela sentiam o frio, as patas e os pés quentes de caminhar. A sua
voz era suave como um floco de neve a cair e quando falava, estremeciam as aves
nos ramos das árvores e as crianças adormecidas.
O mercador amava de igual modo as suas duas filhas e no
seu ofício, muitas eram as vezes que se tinha de ausentar e ora levava uma ora
a outra, para que o ajudassem e aprendessem o segredo das gemas, do ouro, da
prata e dos cristais. No verão, viajava com a mais velha rumo ao sul e
percorriam as cidades mais ricas e as outras junto ao mar e o pai pasmava com a
energia e a saúde daquela filha queimada pelo sol e sempre pronta a devorar uma
apetitosa refeição e a brindar com ele a tudo e a quase nada.
No inverno convidava a filha mais nova e rumavam ao norte
mais frio, às terras onde a luz é apenas uma frugal visita e as noites têm a
dimensão de uma eternidade. E ela vestia o seu casaco branco, despedia-se do
gato, entregava-o aos cuidados da irmã e embora silenciosa, estremecia de
prazer como os pássaros nos ramos e as crianças adormecidas.
No início da viagem o pai sentia saudades da agitação da filha
mais velha, do seu riso, das suas histórias divertidas, do seu jeito nato para
vender e comprar, mas à medida que espaçavam as árvores e as aldeias, tudo se
aquietava e dava por si a falar de coisas que até ali nunca falara. Dos deuses,
da vida, da morte, da arte e das certezas que não temos e das que possuindo
perdemos e voltamos a encontrar. A filha calada, escutava.
E quando se recolhiam nas noites geladas e o
norte era tão ao norte que mais ao norte nada existia, o pai sabia que a filha
se ausentava e a cama vazia. Ela era floco leve de neve, silenciosa, temerária,
sobrevivente, a saber de cor as tocas e as grutas
dos antepassados, a duplicar o branco do pelo para se confundir com a casa que
habita.
Não fora as saudades do gato e da irmã e das árvores
altas e da paz de que o pai falaria.
17 comentários:
MANUELA BAPTISTA
Setentrião
que belo
cião
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 17 de Outubro de 2014
Duas filhas, duas faces, dois extremos - o norte e o sul.
A vida é assim.
Muito boa a história, Manuela.
Um bom momento aqui com a sua escrita sempre clara e imaginativa.
Sem querer também nos sentimos parte da história. Não consegui definir-me:
- Se para Sul
- Se para Norte
que interessante!
duas filhas e duas faces, ou o reverso da moeda.
mas todos nós por vezes precisamos de opostos, para manter o equilíbrio em nós.
gostei muito!
bom domingo
:)
As pontas da vida a completarem o fio que nos prende à existência. Que bela maneira tens de contar as tuas histórias, Manuela!
Um grande beijo.
.
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. "e o norte era tão ao norte que mais ao norte nada existia" .
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. e não precisamos dizer mais nada .
.
. íssimo . de bel.íssimo .
.
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Kriu?
Quer-se dizer, como no post anterior te fartaste de fazer publicidade a diverso material de escritório, acabaram por te oferecer uma lata de tinta branca como pagamento, com a qual pintas agora as bichezas todas!
Não dás ponto sem nó, essa é que é essa!
Kriu!
ki.ti enfarinhada, espanteza redobrada...
Olá, Manuela!
Tão diferentes como o Inverno do Verão, e cada uma feliz à sua maneira.Felicidade, sentimento para o qual não há receita...
Lindo texto!
Um abraço e boa semana.
Vitor
eu acho de um mau gosto, gatos brancos e pretos
definam-se, que coisa
A alegria e o silêncio são estados que nos fazem bem.
Tê-los na vida como uma oferenda de quem se ama, são verdadeiras jóias.
Boa semana e um abraço.
O norte e o sul que tinham um amigo gato que, talvez, se chamasse Equador e servia de ligação entre a alegria viva e espevitada sempre pronta para a gargalhada e o floco de neve suave que se poderia tornar em bloco de gelo ou derreter-se e formar lago. Imaginemos ao reler esta história tão bonita que a Manuela nos conta como só ela o sabe fazer.
E sinto que gosto do sol a iluminar meus longos dias....minha irmã é a lua, onde na penumbra brilha como nunca!
Somos assim...
Que belo conto, Manuela
Um beijinho
<º)))< Bia
Duas filhas, duas diferenças...
uma união que engloba as três
personagens desta sua história.
Não há escolha...cada uma das
personagens têm o seu lugar.
Bj.
Irene Alves
Kriu?
"Alheira à Poetesa" é de rir e chorar demais...
Kriu!
Gostei imenso de ler, senti-me transportada para outro mundo. Aliás, é isso que me acontece sempre que aqui venho, é como se bebesse magia.
Beijinhos e bom fim de semana
Dois lados na mesma alma, como na nossa, muitos...!
Um abraço!
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