as represas, os açudes e trémulos ondulam os caniçais











Agora vou-me embora. Deixo-te a chave na lata das sementes que coloquei no parapeito da janela e sobre a mesa da cozinha alguns cachos de uva moscatel.
A lareira tem puxado bem e como as noites serão cada vez mais longas e frescas arrumei a lenha no cesto de vime, aquele que ninguém é capaz de deslocar. Um dia, o espaço esférico que ocupa sobre o tapete rompe-se, o soalho cede e seremos invadidos por tribos de seres enfarruscados que nos roubarão as pinhas e as acendalhas. É um sonho, não é um pesadelo.
Parece-me que não me irei já embora. Dou uma volta à casa, abro as janelas que tinha fechado, ajeito as flores amarelas da jarra sobre a mesa, abro o frigorífico meio vazio, corto aos cubos uma fatia de melancia, trituro, coloco num copo cheio de gelo e combina, o sangue vivo da fruta e o amarelo da jarra. Sento-me cá fora nas cadeiras de lona da varanda, a bebericar, a acrescentar o tempo. As casas deviam ser como os ninhos flutuantes de certas aves, meia dúzia de caniços, cordas entrelaçadas, plantas aquáticas e partíamos e regressávamos, com as correntes.
Talvez no início estranhes a algazarra do lago, mas depois habituas-te e se por um acaso sentires que o pescoço te cresceu, aceita esse facto. A mim aconteceu-me o mesmo, é apenas uma questão de dar três voltas ao cachecol.
Mais um pouco e os entardeceres serão da cor do fogo e as folhas e os caniçais e sobre a água das represas os mosquitos zumbem e talvez chuvisque e não há forma de explicar tudo isto a não ser pelo coração.
Levanto-me, alinho as cadeiras de lona, lavo o copo, fecho as janelas e antes de sair estico o pescoço. Recoloco a chave na lata das sementes.
Estremeço um segundo, mergulho e reapareço longe em um outro lugar.





















13 comentários:

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA



... e não há forma de explicar tudo isto a não ser pelo coração.

Não há mesmo, já tinha saudades



Jaime Latino Ferreira
Estoril, 6 de Setembro de 2014

Olinda Melo disse...


Magia pura este texto.
Sim, as casas deviam ser como os ninhos de que fala. E desaparecer e reaparecer num outro lugar tão simples como isso...

Bj

Olinda

. intemporal . disse...

.

.

. re.digo o jaime e acrescento ,,, .

.

. ! seja bem.regressada . :) .

.

. a este "ninho" onde me sinto a flutuar . :) .

.

. íssimo feliz .

.

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Graça Pires disse...

Aquilo que se aprende pelo coração nunca mais nos larga, Manuela.
Um texto cheio de beleza e ternura a cheirar a outono.
"As casas deviam ser como os ninhos flutuantes de certas aves", é verdade, mas como diz Herberto Helder "a casa é como uma escrita onde as palavras se motivam e desenvolvem por si próprias"
Como a tua escrita, digo eu...
Um beijo.

Agostinho disse...

Ainda bem que está de regresso porque este está um primor.
Recomendações destas são ditadas pelo carinho. As três voltas no pescoço serão precisas? e a gente tantas vezes distraída...

Beatriz disse...

Assim é mesmo difícil ir embora .... Que dia lindo, Manuela!!!

Beijinho
Bia

Kika disse...

Kriu?

Olhós garnizés!

Fuje fuje que estão a ficar brancos!

Kriu!

Anónimo disse...

Escreves searas da bem e cada pequeno detalhe teu, deixa-me horas n'água!

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

Manela,

sem querer ser repetitiva, este texto é um primor.
cada frase leva-nos a querer mais, e quase que conseguimos ver os personagens.
as imagens estão também muito belas.
um bom regresso.
um beijo

:)

Vitor Chuva disse...

Olá, Manuela!

Por aí o equinócio chegou mais cedo, e com ele voltaram as histórias de encantamento.
Feliz o inquilino dessa casa encantada,que trás à mente tão doces recordações...

Muito bonito, como sempre.

Um abraço
Vitor

Unknown disse...

Um texto pequeno mas uma mensagem a perder de vista sentada na soleira da porta por dias de Outono.

vieira calado disse...

Bem bonito, o seu blog!
Bjsss

ki.ti disse...

os mergulhões de crista

são uma espécie de patos marrecos com o pescoço passado a ferro