Confio-te o meu livro de viagens por dois ou três dias,
talvez uma semana ou quem sabe, um mês. O tempo é relativo. Demasiado curto
quando nos sentimos bem, longo na inquietação, infindável na tristeza.
O rapaz falava devagar e as suas palavras pareciam vir de
uma outra pessoa que não ele. Estranhei-o assim tão sério, mas não disse nada.
Como devem estar recordados, o livro a que ele se referia
é secreto e invisível e apenas sabemos que está presente pela inclinação súbita
dos raios solares, pelo ladrar de um cão, pelo cheiro forte a pão acabado de
fazer.
Está bem, disse-lhe. Guardo-o, escondo-o para que ninguém
o veja. E estendi as duas mãos para o receber. O rapaz perdeu o ar composto e
gritou, que desajeitada, deixaste-o cair. E bateu os pés, morto de riso. Depois
baixou-se, apanhou-o e disse, lê o que eu escrevi sobre a minha terceira
viagem.
Sentámo-nos ali mesmo nos degraus da escada, a trovoada
ao longe e o ar quente carregado de humidade. O rapaz insistiu, desde quando é
que precisas de ver para ler. Não preciso, respondi. E lemos os dois.
Caiu a primeira gota de chuva, pesada, gorda e
seguiram-se as demais, espaçadas, quase mornas. Foi quando nasceu a filha de um
rei e era bom o rei e rejubilaram todos os habitantes daquele reino de árvores
de grande porte e muita chuva, porque quando nasce uma criança abre-se uma
porta e deita-se fora a chave e o futuro cumpre o seu destino.
Mais à noitinha, já as chaminés fumegavam e os velhos
dormiam, é que perceberam que a criança tinha sete dedos em cada mão, para que
gostassem dela as folhas das árvores de grande porte naquele reino de muita
chuva.
Um dia, atraídos pelas árvores e pelas folhas esguias, chegaram
a bicicleta azul e o rapaz molhado até aos ossos e receberam-no o rei e a filha
pequenina. Ficou por muitos dias e ensinou a filha do rei a andar de bicicleta e
ela com os sete dedos em cada mão, nunca caía.
Quando regressou, trouxe consigo algumas folhas e muitas gotas de chuva.
18 comentários:
Coloquei de lado a minha bicicleta amarela
Sentei-me nela
para te ler até ao fim
Confias-me um livro...
assim?
MANUELA BAPTISTA
O efeito surpresa!
Calcula que só agora percebi ser esta a terceira parte de um conto de três.
Vou saboreá-lo melhor, se vou!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 26 de Setembro de 2014
Acabei de ler este texto e desci mais abaixo para ler "o rapaz da bicicleta azul".
Um livro, um rapaz, uma bicicleta, um reino de muita chuva, uma menina...e essa harmonia com que liga tudo e faz parecer tudo tão real. Um mundo onde não precisamos de olhos porque nos transporta para dentro dele.
Manuela, estou rendida à sua escrita.
Beijinhos
Olinda
Ler sem ver é uma arte que podemos desenvolver e depois dialogar nas coisas boas que encontramos e nos despertam tão belas emoções.
No fim o livro estará ainda aberto para continuar a escrever.
Sei de que livro o rapaz fala. Também gostaria de o ter...
Um grande beijo.
.
.
. longo na in.quietação . in.findável na tristeza . mas que por.vezes se imobiliza . a escutar as palavras do vento .
.
.
. íssimo . feliz .
.
.
Kriu?
Esta coisa da chuva é um aborrecimento, quando preciso, uso gel!
Kriu!
Fixe, se quando um cão ladra se trata de um livro, vais passar o restinho de todos os teus dias e também muitas das noites, a ler...
As coisas que tu vais buscar! Auf!
"O tempo é relativo." - Neste blog, o tempo é relativo e sempre muito bom! :)
um abraço, boa semana!
Sou a tua HERPES LABIAL.
Vou e... Venho
sempre
eternamente
As suas histórias são sempre mágicas,
subtis e eu fico a imaginar como
seria bom eu conhecer "essas suas
personagens".
Bj.
Irene Alves
E se continuasse?
É que ler ser ver requer domínio do sentir: o tempo que vai fazer, a cor da bicicleta, mãos de sete dedos de menina...
Mais um capítulo, pelo menos um posfácio.
Olá, Manuela!
E o melhor que há a fazer quando aqui chegamos e começamos a ler, é deixarmo-nos ir; arrastados por esta escrita encantada,percorrendo este mundo do faz de conta.E o tempo, que é conceito relativo, aqui sempre passa a correr...
Um abraço
Vitor
o tempo é relativo, os teus contos são pérolas com letras bem delineadas e onde impera a magia....
:)
Sem dúvida, o amor é o sal da vida...quer numa relação a dois, quer numa relação de amizade, quer mesmo numa entrega a causas ou seja num amor universal. Sem afecto e doação nada tem sabor, porque viver sem partilhar não faz grande sentido.
Quanto aos programas que incentivam outros valores hão-de cair por cansaço de quem os vê, pena que hajam profissionais de televisão que se vendem por tão pouco.
Beijinhos amigos, sempre
eu então partilho tudo,
exceto o quintal, a ração, a água, as árvores, os muros, as janelas e as almofadas
também partilho a bicicleta azul do rapaz, não sou capaz de pedalar a quatro patas
A vida é relativa...e os livros secretos são TUDO nessa vida!
Quantas boas lembranças da bicicleta azul (eu também tinha uma quando pequenina)!
beijinho Manuela
Bia
www.biaviagemambiental.blogspot.com
Quando confiamos não pecisamos de ver. Acreditamos.
E agora, o teu rapaz minúsculo, já um bocadinho mais crescido regressa da sua viagem, calmo e seguro. Encosta a bicicleta, sacode o resto das folhas, limpa as gotas de chuva e conta-nos sobre a missão de ajudar os outros. E eu acredito que existem pessoas assim.
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