ele chamou-lhe aurélia porque não tinha outro nome para lhe dar









Vinte e nove dias antes do solstício, o rapaz começou a construir uma jangada. Cuidadosamente escolheu as madeiras, as cordas, os nós. Entre a casa e a praia passava os dias e o seu corpo acastanhava-se à medida que a embarcação ganhava forma e não se esqueceu do mastro, dos remos e do suporte da vela. O pano, forte e maleável para navegar contra o vento e enfolar, recortou-o em triângulo, ligou-o ao mastro e por fim desenhou um sol e pintou-o de amarelo.
Quando a escola terminou e as hortênsias ganharam flor, a mãe preparou-lhe quatro fatias de pão com queijo da serra, duas garrafas de água, três maçãs, um chocolate, um frasco com sal e outro com azeite. Meteu tudo num saco térmico e juntou um canivete. Coseu-lhe na camisola de lã uma medalha da senhora da boa viagem e disse-lhe, se tens de ir, vai, pequeno será sempre o homem que não sai do mesmo lugar e não alcança mais nada do que a cobiça e a inveja.
E o rapaz partiu naquele desejo secreto de encontrar os golfinhos e as baleias, as ilhas desertas e os atóis que lhe enchiam a imaginação e os sonhos. Na noite mais curta do ano descansou ao largo de um mar calmo de estrelas, a lua a minguar no céu e ele deitado, a cabeça pousada nos braços cruzados, as pernas e os pés mergulhados na água.
Ela deslocava-se por ali, silenciosa, etérea, volátil. Observou a jangada a balancear, os pés descalços do rapaz adormecido. Num impulso tocou a pele do rapaz, epiderme contra derme, mas resistiu à tentação de ejetar um espinho venenoso, de o marcar. O rapaz acordou, recolheu as pernas que tinham crescido cinco centímetros e deitando-se de barriga para baixo, colou o nariz à água e abriu os olhos assombrado. A medusa volteava, o véu a dançar, os tentáculos a dançar também. E muitas medusas se juntaram à primeira e ele não sabia dizer se eram da lua ou se para elas seria justo inventar um nome mais leve ainda. 
A jangada, o rapaz e as medusas seguiram para sul, esse lugar onde habitam as tartarugas. Há viagens que empreendemos sozinhos, outras não.
























conto segundo de "o peixe, a medusa e a estrela"







19 comentários:

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


- só vamos sozinhos se não formos -


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 19 de Maio de 2014

Rogério G.V. Pereira disse...

Não sei como sabes tanto de mim
parti numa viagem assim
e ainda não cheguei

nem sei
se chegarei

mas que importa, se o que conta é a viagem

Graça Pires disse...

Tinha um mar por descobrir dentro da alma e não queria a calma de ter cais... Por isso foi com as medusas para o sul mais quente, mais azul...
Belíssimo, Manuela!
Um beijo.

Penélope disse...

Manuela, mudei de espaço e se desejar me visitar poderá me encontrar em

www.euflordealfazema.com

O Infinito está FINITO, depois de quase 5 anos por muitos motivos tristes... mas agora estou de casa nova!!!

Beijinhos!!!

Penélope disse...

Gostaria tanto de receber suas atualizações de postagens, pois nesse novo espaço não coloquei seguidores... seria possível?

Agostinho disse...

Os corajosos embarcam confiantes. O mar povoa-lhes os sonhos de medusas coloridas.
Bonito conto Manuela.

Graça Pereira disse...

Quantas vezes não desejamos partir...subir outros mares sabendo que poderemos colher alegrias sem medos? Com medusas ou sem elas..mas à procura de dias diferentes...
Mais uma bela história com desenhos que são um encanto.
Beijo
Graça

mz disse...


Nem que sejam apenas sonhos e desejos de crescer por esse mundo fora,

a coragem de querer aventurar-se a desenhar a sua própria embarcação

já se considera mais do que um sobrevivente.

Será um lutador pelos seus objectivos.


Aurélia
é um nome adequado,
também me soa leve,
etéreo
e transparente
como as medusas

:)


Um abraço para si, Manuela.

Gostei muito.

Vitor Chuva disse...

Olá, Manuela!

Que bonito!A história dum sonho que se cumpriu;rumo a Sul, lugar mítico e indefinido, destino onde sonham rumar almas errantes e vagabundas.

É bem verdade que há viagens que se fazem sozinhas, e outras que sozinhas não fazem sentido nenhum...

Boa semana e um abraço
Vitor

Kika disse...

Kriu?

A Aurélia foi amiga da minha mãe durante anos a fio, morava no Largo do Mastro, mesmo por cima dos Supermanos, depois amantizou-se com um hóspede que tinha lá em casa e a minha mãe deixou de ser amiga dela, situação com a qual nunca concordei pois a senhora, coitada, tinha o marido longe pois era embarcadiço.

Kriu!

Anónimo disse...

Não sendo biodegradáveis, as pessoas não as deviam deitar ao mar...

Rita Freitas disse...

Acho que às vezes precisamos de uma viagem assim, rumo ao sul, sozinhos ou não :)

Adorei!

bjinhos

Guiomar Lobo disse...

Gostei, como sempre, destas fantasias que buscam o longe , a aventura, o decorrer do sonho que viajava dentro e fora de um personagem, não tão imaginado quanto parece...
Quem não sonha ser encantado por coleantes medusas e demandar o sul com um destino sonhado?...Ou intensamente desejado'

. intemporal . disse...

.

.

. très bien écrit . mature . :) .

.

.

. baisers heureux .

.

.

Beatriz disse...

Ah, as medusas.....sabem como ninguém dançar flutuando no mar....que saudades tenho de mergulhar.....E todos os caminhos levam ao sul, terra de tartarugas e também de gente valente!!!

Um beijinho Manuela

Bia

www.biaviagemambiental.blogspot.com

Olinda Melo disse...


Mãe corajosa e sábia...

Uma viagem ao fundo dos tempos.
Um texto que nos envolve.
Consegue-se ver e idealizar tudo.

Bj

Olinda

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Minha querida

Por vezes temos que fazer essa viagem ao fundo de nós e dançar ao ritmo dos sonhos.
Como sempre...a minha admiração.

Um beijinho com carinho
Sonhadora

Linda Simões disse...

Manuela, Manuela!

Ah! Vir aqui é sempre bom, bom...
E gosto tanto dos teus contos...
E gosto tanto dos meus amigos... E por anda a Dulce?

Abraços que são três


Beijinhos,

Linda Simões

Américo do Sul disse...

Bravo!