I - Ernesto




Tenho memória de cão. Não é de espantar, somos em tudo semelhantes. Ladro de alegria, rosno se me pisam a cauda. Não fiquei muito bem no retrato, mas isso explicarei depois.
O meu nome é Ernesto. Vai bem comigo, este nome. Tudo depende do tom de voz com que me chamam, se me disserem meigamente: cãozinho tolo, fico danado. Agora se me gritam: Ernesto! Sobressalto-me, mas é o meu nome, sou eu na cabeça do outro. O outro pode ser um puto, o carteiro, o homem do talho.
Durante muito tempo andei aos caixotes. Não era fácil, sou pequeno e as tampas são exatamente o que a palavra indica. A seguir andei aos caídos, uma espécie de caixote sem saída. Esperava à porta do restaurante da esquina, o focinho de lado, as orelhas espetadas e babava-me todo só de pensar em pedaços de carne estufada. Quando a cozinheira apanhou uma pulga nas meias, foi um desatino. A mulher gritou, que assim não podia ser e a inspeção talvez atue e eu não aturo isto. Eu, era ela. Isto, sou eu. Meti o rabo entre as pernas, fiquei triste como um cão de água, escondi-me debaixo de um banco do jardim. Passou uma noite e um dia, sentaram-se cinco pessoas sobre a minha cabeça, não deram por mim. À tardinha apareceu um homem com uma pasta na mão, sentou-se, parecia cansado. Olhou distraído as folhas dos plátanos que começavam a cair, tirou um papel do bolso, acho que o leu, dobrou-o novamente. Colocou os cotovelos nos joelhos, apoiou a cabeça nas mãos e fechou os olhos. Ninguém deu por ele. Fez-se um silêncio de pássaros, eu gani baixinho e o meu estomago roncou de fome. Ele mudou de posição, olhou para baixo e pousou a mão direita sobre o assento, os dedos a espreitar nas traves. E eu ali entalado entre o chão, o banco e o homem, e num impulso dei-lhe uma lambidela nos dedos. Ele riu-se, atirou-me um pauzito e disse, busca. Rosnei um bocadinho. Ele disse, esquece, vem cá.
Eu esqueci-me de tudo e vadiamos agora os dois de manhã cedo e à tardinha. Nunca mais comi carne estufada, ele prefere croquetes, mas dou pulos de contente quando ele chega a casa e quase me mata com festas no pelo. Pela minha parte compenso-o, roo-lhe os chinelos e as meias e adormeço no sofá com o focinho nas suas pernas.
retratos quase vadios
parte primeira: Ernesto

16 comentários:

Vitor Chuva disse...

Olá, Manuela!

Está uma delícia de historia, a deste Ernesto - para os conhecidos.A quem a sorte dos que a não têm marcou encontro num banco jardim com alguém igual a ele.E teve assim a história um final feliz - como convém...

E também acho, estou quase certo, que este é o texto de que mais gostei.

Bom fim de semana, com um abraço.
Vitor

Unknown disse...

Como sempre uma linda história com carinho de cão.
Só mesmo que tem cão sabe sentir as suas lambidelas criando laços que lhes dão mais dignidade.
É triste ver os animais abandonados.
É lamentável ver pessoas com fome.

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


Ernesto!!!

Ai, ai, ai ...

Lindo!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 5 de Outubro de 2013

Anónimo disse...

Auf?

Eu, na cabeça do outro, contrasta claramente com tantos e com todos os outros, na minha cabeça, como é tão comum por aí... ou por aqui...

Auf!

Kika disse...

Kriu?

"um silêncio de pássaros"... pois, o PEC 33 acabou contigo...

Kriu!

Nilson Barcelli disse...

É preciso muita arte (e sorte) para que os pequenos se safem na vida.
Mais um excelente conto. Gostei muito.
Manuela, minha querida amiga, tem um bom fim de semana.
Beijo.

mz disse...

Que deliciosa e ternurenta descrição de um canito vadio e um homem solitário. Ambos se confortam assim numa espécie de intercãmbio emocional.


Adorei.

Boa semana para si Manuela.

Isa Lisboa disse...

Adorei conhecer o Ernesto!!

Um abraço

http://odeclinardosonhos.blogspot.com disse...

Manuela...hoje não sei que dizer...
Sei sim que as lágrimas tentaram sair dos meus olhos... porquê? talvez pela tua enorme sensibilidade que de uma maneira tão linda te fez escrever...
beijo
anacosta

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

não é a primeira vez e penso não ser a última que as lágrimas rolam dos meus olhos quando leio as estórias da Manela.

oxalá muitos tenham a sorte deste Ernesto e do seu dono.
muito comovente...

uma boa semana!

beijo

Em Tempo: gostei da imagem do Ernesto condiz mesmo com ele.

Rita Freitas disse...

Muitos Ernestos existem neste mundo, sejam de duas ou quatro patas, com menos ou mais sorte que este:)

Adorei

Bjs

ki.ti disse...

o cão meteu o nariz na torradeira?

Silenciosamente ouvindo... disse...

Simplesmente maravilhosa e cheia
de ternura...Adorei.
Bj.
Irene Alves

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Minha querida

Uma estória muito emocionante e quantos Ernestos não andam por aí, apenas querendo um pouco de carinho.
Como sempre faltam-me as palavras para comentar o Belo.

Um beijinho com carinho
Sonhadora

Unknown disse...

Passei ara desejar bom fim de semana

. intemporal . disse...

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. como um cão de água . embora triste . sente.se a aproximação de um final feliz . porque é de dentro.para fora que se constrói o mundo . neste adro que somos . ou que podemos ser . e que devemos ser . em roda da mais bela igreja . a que chamamos coração .

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. íssimo . sempre feliz .

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