Era uma rua sossegada, quase triste. O empedrado desenhava
labirintos pretos, cinzentos, brancos sujos, numa esquadria desajeitada, tosca.
As casas colavam-se às portas, as portas às janelas, as escadas por ali acima e
os telhados subiam ao céu. Se chovia, fechava-se uma cortina espessa e os
habitantes diziam, que saudades do verão. Se o sol regressava, os olhos
ganhavam outro brilho e assim alternavam sentimentos de ganhos e perdas e a
vida corria devagar ou depressa consoante a esperança de cada coração.
Às vezes apareciam uns sapatos perdidos, ou uma frase
incompleta caída no chão, tudo o mais era monótono, repetitivo, baço.
Quando chegou, ninguém deu por ele. Levantou a tampa das
águas pluviais, esgueirou-se até ao passeio, sacudiu as enormes orelhas e
sentiu o estômago roncar de fome. Ergueu o nariz e como não lhe cheirou a nada,
engoliu em seco e suspirou. A seu lado as botas verde alface deram um passinho
de riso, um tudo ou nada saturadas de água. Ele fingiu que não as conhecia, o
que era verdade pois nunca tinha visto umas botas. E por esta ordem passou por
ele um polícia, dois rapazes, uma freira, um professor, três raparigas aos
gritos, uma senhora gorda e uma sombrinha azul. Não o viram.
E da manhã veio a tarde, os pássaros agitavam as folhas
verdes como se fora o vento e as pessoas apressadas calavam o cansaço e o suor
e chegou a noite, um pouco mais escura do que ontem, talvez.
Ele permanecia no mesmo lugar. Uma orelha para cima outra
para baixo, a cauda virada a sul, as manchas brancas no pelo castanho, a cabeça
vigilante.
Foi então que apareceu o rato. Acostumado aos seres das
profundezas, à solidão dos subterrâneos, à humildade de quem se cala porque tem
muito para falar, não o estranhou. Pé ante pé, cheirou-o, sentou-se a seu lado,
pata contra pata, a cabeça vigilante. E permaneceram os dois no mesmo lugar.
o estranho caso de Leonardo Zê, parte primeira
Rolando, o rato
Zê, Leonardo
19 comentários:
Por ele passei também... não estranho que ele não desse por mim, mas tu? E porque me excluíste da cena final?
É que permanecemos os três no mesmo lugar...
Acho que é tua, a incapacidade de olhar.
As cores e os sonhos que a vida nos oferece em comparações que nos enchem a alma com o estômago a roncar de fome.
Passos perdidos na indefinição do tempo e nas gargalhadas vazias de silêncio.
Gosto muito dos seus textos que me deixam a navegar sem barco nem remos.
ROLANDO E ZÊ, LEONARDO
Façam uma parelha impossível a ver se o mundo aprende!!!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 6 de Abril de 2013
Kriu?
E o Rolando Ratton fez das suas no seu palácio! Bem feita!
Kriu!
A "senhora gorda" nunca mais apareceu, por isso, "Demissão JÀ"!
Ninguém deu por ele como ninguém dá por tanta coisa mesmo ali ao lado.
Haverá alguém para além do rato, haverá alguém!
Miminhos para ti peludinho, até amanhã.
Abraço,
Mz
"Acostumado à solidão dos subterrâneos, à humildade de quem se cala porque tem muito que falar"
Adorei ler.
Bjs
Fico na expectativa da segunda parte! :)
beijos, boa semana, Manuela!
=> Instantâneos a preto e branco
=> Os dias em que olho o Mundo
=> Pense fora da caixa
Olá, Manuela!
Tristinho,e também estranho,este lugar.Ou talvez não...Onde os mais pequenos passam despercebidos, e o muito que têm para dizer não é dito nem escutado.
Realidade tantas vezes disfarçada de metáfora, como nesta história que mete um rato...
Bom Domingo;abraço amigo.
Vitor
.
.
. uma lufada de ar fresco . no momento preciso em que arrefecidos estão os nossos corações . Por motivos mais do que cálidos . E até grotescos . esta lufada a que me refiro . refere.se a uma brisa . Que nos aquece .
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. um beijo feliz .
.
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Enviado do meu iPad
Mais um belíssimo conto.
Gostei muito, como sempre.
Manuela, querida amiga, tem uma boa semana.
Um beijo.
Eu fixei-me no final. No silêncio cúmplice de quem conhece e nada diz. Porque ambos... simplesmente estão.
beijo amigo
Estranho, estranho
é não sabermos se o orelhudo é cão ou caso
mio para saber
Aguardo a segunda parte. A solidão abraça a indiferença de quem passa...
Aguardo também a 2ª. parte, veremos
se continuam juntos e quietos e
ninguém os vê. Há muito quem
assim esteja. Beijinhos
Irene Alves
Manuela, acabo de postar o texto dos sapatos de vento que havia lhe pedido. Espero que goste. Dei crédito as fotos, coloquei o link do teu blog e também o in.temporal.
Veja se gostou,pois ele me tocou muito... vai ficar gravado para sempre... tão delicado e doce que é.
http://semolharescriticos.blogspot.com.br/2013/04/sapatos-de-vento.html
Abraços e linda tarde!!!
penso que isto tem continuação...
escreves muito bem...
beijinhos
:)
...desta vez comecei pela primeira parte...
...porque quase sempre começo por ler as primeiras publicações que são as mais recentes
(tontices de andar pelo facabook. e a perder leituras mágicas daqui e doutros lugares azuis:-)
Será que eu também tenho a incapacidade de olhar? Impossível...os teus desenhos são por de mais luminosos...A história bem, a história, eu que já li a segunda parte, como fazia com os romances quando era adolescente e me agarrava à última página para saber se tudo acabava bem... é no mínimo, surpreendente.
Julguei estar a ver um filme de Walt Disney ...daqueles que encheram de magia os meus dias de criança...O que tu escreves, Manuela, também é mágico e, quem ainda o não compreendeu, é porque não tem alma de criança.
beijocas
Graça
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