Foi a primeira a chegar, não que tivesse pressa, talvez
porque ouvisse melhor. O gelo estalou no cabeço dos montes, os lobos gemeram
fomes de galinheiros, as sementes de papoila desenrolaram-se dois centímetros a
imitar os dias a crescer. O inverno é apenas um pulo que damos de mãos frias,
batemos as asas e já está.
Voa silenciosa, calma, deixa-se ir com as correntes de ar.
Planar é isto, um desprendimento impensado e voluptuoso.
Rasou as praças, as avenidas, as casas de janelas
abertas, os telhados, os beirais não são para ela, são das outras mais
pequenas, barulhentas, as que rasgam em bando o azul da cidade.
Volteou duas vezes e pousou no segundo pilar da ponte.
Quase chocou com uma gaivota gorda.
- Ai! – disse a gaivota gorda.
- Não te vi – disse a andorinha e ficaram as duas lado a
lado a olhar o estuário do rio.
- Pareces magra, estás com fome? Mergulho ali e volto com
uma tainha – disse a gaivota.
- Não como peixe – respondeu a andorinha.
A gaivota gorda virou ligeiramente a cabeça e observou-a
desconfiada, não lhe parecia correto uma ave não gostar de peixe. E continuaram
a olhar o rio. Um vento ligeiro agitava a água, um pouco mais longe o farol
começou a piscar.
- É bonita a tua cidade – disse a andorinha – mas agora
vou-me embora, procuro um palácio em ruínas onde à noite se ouve cantar. É aí
que quero construir a minha casa.
- És estranha – disse a gaivota. E pareceu ligeiramente
mais magra.
A gaivota não conhecia nenhum palácio em ruínas e muito
menos uma ruína cantante. Mas era viajada e sabia do canto das marés e do ruído
das caldeiras dos navios e do marulhar das ondas. E assim guiou a andorinha
para além da ponte e do rio, alguns quilómetros terra adentro. No seu
entendimento de ave marinha supôs que uma ruína apalaçada estaria mais para o
interior e decerto possuiria uma torre. Não saberia explicar porquê, nem era
necessário, a andorinha reconheceria o que buscava.
- Se te perderes, chama pela coruja das torres – disse a
gaivota. E deu meia volta de regresso ao rio, à cidade, às casas.
A andorinha articulou um pequeno guincho de agradecimento
e engoliu dois insetos que voavam por ali. Pareceu ligeiramente mais gorda.
Balsâmica era a lua e a noite um cheiro adocicado a
primavera.
o imperador e a andorinha, parte primeira
hirundo daurica e hirundo rustica, técnica mista embora não se note
20 comentários:
A Gaivota achou estranha a Andorinha e eu acho estranhas ambas. Te pergunto, a ti que sabes muito: Porquê apenas as aves têm asas?
imagino que consideres a pergunta infantil mas, acredita, ainda estou na idade dos "porquês"
(não vou perder pitada do seguinte, nem desses odores)
Começaram a chegar, não ainda em bando, para anunciar a chegada da primavera...Mas a tua andorinha é diferente! Veio sozinha, talvez solidária com as outras que virão depois...escolheu um palácio (ainda que em ruínas...) onde se ouve cantar e por certo, ouvirá lendas antigas para contar às suas companheiras em longos serões, enfeitados pelo luar de prata...
Adoro a tua imaginação e os teus desenhos...
Beijo
Graça
Chegam as andorinhas e as flores pelas beiras dos caminhos. O teu texto é lindo.
MANUELA BAPTISTA
... Balsâmica era a lua e a noite um cheiro adocicado a primavera ... como tudo o que tu escreves!
Doce és e balsâmica.
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 2 de Março de 2013
.
.
. pela primavera . franzo por ora . dedos de espera . :) .
.
. e,,, fico . com esta aroma . de consolação .
.
.
. íssimo . sempre feliz .
.
.
Kriu?
Eu também fui a primeira a chegar, talvez porque tivesse sido a que tivesse mais fome, porque para não ouvir, não há como eu!
Agora, já conto com mais oito, à minha frente, e o mais recente surgiu assim do nada e já tem a mania que é como tu... imagina!
Kriu!
A gaivota era uma visionária, mas se calhar usava lentes Carl Zeiss...
Ainda não vi andorinhas. Mas elas devem estar a chegar. A menos que as gaivotas lhes tenham mostrado um caminho errado...
Belíssimo texto, como sempre.
Manuela, minha querida amiga, tem um bom domingo e uma boa semana.
Beijo.
Olá, Manuela!
Depois do que aqui li, já me sinto mais confortado: com a certeza de que a chegada da Primavera estará por pouco ... trazida por estas andorinhas que por aqui esvoaçam, e que assim bonitas como elas confesso que nunca vi.Como também não fazia ideia de como seria o conversar entre uma anafada gaivota e uma escanzelada andorinha - e adorei!
Bom resto de Domingo, e um abraço amigo.
Vitor
E seria tão bom ter esta liberdade!
Gostei muito, como sempre.
Bjs
essa andorinha antecipou a chegada.
gostei da solidariedade da gaivota.
achei os pormenores que dedilhas com as palavras certas e adornadas de requinte poético
um beijo
;)
Gostei de conhecer esta andorinha! Voltarei quando ela voltar, para a conhecer melhor!
Beijo, boa semana
Manuela tu és perita a engordar-nos com os teus contos capazes de nos transportar para lugares mágicos.
Vou emagrecer de tanto esperar pelo próximo capítulo.
Até lá,
um abraço!
Também ainda não vi andorinhas, ando
sempre à procura delas, porque onde
resido, é uma zona que elas escolhem
para ficar...muitas!!!As gaivotas
também já deixaram o rio e andam
junto dos pombos ou sozinhas perto
das pessoas.Onde há um bocoado de
terra livre elas poisam...A conversa
entre as duas foi muito interessante
e houve solidariedade.Gostei.
Beijinhos
Irene Alves
Olá, Manuela
Como vivo perto do rio todos os dias vejo gaivotas, que muitas vezes se pôem em cima dos candeeiros. Já tenho tirado fotos porque acho as imagens lindas!
Andorinhas ainda não vi este ano...
Mas lindo, lindo, é o teu texto.
Poético e cheio de ternura.
Tenho que vir ver a continuação.
Beijinhos
O bom é que elas podem voar, assim como tuas palavras e a mim mesma que ganho asas quando aqui chego. Achei engraçado a gaivota achar a andorinha estranha, assim como nós achamos estranhos aqueles que são diferentes de nós. Humanos? rs
Eu amo gaivotas desde a infância - gosto do arrulhar delas por cima das coisas. rs
Grazie por esse escrito tão precioso. Bacio
Lindo texto, maravilha de escrita.
Parece que o tempo parou e nós sentimos o voar silencioso da andorinha em busca das suas razões.
O palácio em ruínas da última Primavera. Elas as anunciadoras da vida voltam sempre. Mais magras, talvez, mas transportando o sonho de um tempo de paz e amor.
Um beijinho neste dia da mulhere e um agradecimento por estes momentos de ternura e de sonho
Mais uma vez me deslumbrei com a sua escrita.
Caro queira dar-me a satisfação de usar alguma ou algumas das minhas fotos para ilustrar o seu maravilhoso trabalho, disponha.
Romão Machado
www.flickr.com/photos/machadoromao
www.fjromaomachado.blogspot.pt
Uma andorinha, desgarrada e sábia, em busca de pouso palaciano, onde se canta...
Eu, me encanto, com tão bela fábula!
Vou lá, a palácio >>>
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