Peça em um só ato, acto, para que se me desate o nó de
recontar. A época é distante, ou seja, esta que vivemos ou uma outra qualquer,
tanto faz. O que existe de melhor e de mais horrendo em cada um de nós permanece
imutável. Eu sou eu neste momento aqui e teria sido eu no século XVII e serei
eu no ano 2055. Sobre um palco tudo isto é real, os paradoxos desfazem-se, as
ilusões refazem-se.
Três personagens caminham por uma estrada. Um rapaz
chamado Zapa, António, o pai, ainda muito jovem e o senhor Teodoro, um velho viajante.
O sol acaba de nascer. O rapaz, descalço, corre à frente do pai com uma gaiola
na mão. O viajante, mais atrás, carrega um saco de veludo azul.
Zapa: Mais depressa pai! Assim nunca mais chegamos.
António: Tem calma, não agites tanto a gaiola. Vais
mareá-lo.
O senhor Teodoro: O seu rapaz tem cá uma energia! Perdoe
a intromissão, mas é tão triste viajar sozinho. O meu nome é Teodoro.
António: Eu sou António e esse aí é o Zapa, o meu filho. Está
ansioso por chegar e soltá-lo.
O senhor Teodoro: Onde…?
António: Não sabemos bem. Tanto pode ser um monte, uma
praia, uma floresta, um sentimento. Tem apenas de ser o mais longe possível da
cidade dos homens-lâmina que nos laminam também.
O senhor Teodoro: Oh.
António: Já os encontrou?
O senhor Teodoro: Há muito tempo. Por isso carrego este saco.
Zapa pára de repente e coloca a gaiola no chão: Tenho
sede, pai.
António: Então vamos descansar junto daquela laranjeira e
depois continuamos.
O senhor Teodoro: Parecem-me doces as laranjas, um pouco
pálidas talvez.
O rapaz, o pai e o senhor Teodoro sentam-se no chão. O
velho viajante percebe que a gaiola está vazia e o rapaz diz-lhe, é o meu
sonho, vou soltá-lo. E fecha os olhos ao colo do pai.
As luzes diminuem de intensidade até focarem apenas o
saco de veludo azul.
O senhor Teodoro abre-o, tira uma agulha, as linhas de cor.
Entoa uma ária velha como ele e vai pousando sobre os joelhos o guarda-roupa das
cenas ainda sem falas, os vestidos brancos, os calções de príncipe, os chapéus
de caçador.
contos de palco, o segundo
18 comentários:
Uma peça de um só acto, ato o argumento que ia deixar. Deixo o pano cair para só então te dizer que no ano de 2055 eu não serei o mesmo. Eu, sou eu e a minha circunstância e, assim, eu só seria o mesmo se em 2055 ainda houvessem os homens-lâmina... e os homens-lâmina estão condenados pelo sonho que o Zapa soltou...
MANUELA BAPTISTA
Mareado, o sonho, aos homens-lâmina os afoga!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 19 de Janeiro de 2013
Manuela,
Está muito bem encaminhada
a desfiada de contos de palco:
desta feita,
neles mergulham ricos personagens
unidos por um desejo comum:
a fuga aos homens
que laminam!
Gosto muito da metáfora,
tão adequada aos tempos que correm!
Sonhos e afectos,
afectos e sonhos
é o que vale
no palco da vida!
Bom fim de semana
Grande abraço de amizade
.
.
. do saco . toda uma vida que fora e que por ora viaja consigo .
.
. comigo . e com qualquer pessoa que vá soltando os sonhos ao vento . pela vida fora .
.
. na demanda do alento . cada vez mais urgente nestes que são os dias de tantos finais . talvez .
.
.
. íssimo . sempre feliz .
.
.
Kriu?
"Zapa" é nome de desengordurante em spray para o forno...
Kriu!
És a melhor e a maior rainha dos vestidos da era da mão à frente e da outra atrás!
Ou atraz?
Frank Zappa?
Que sonhem os melros
que nunca se arrependam
do seu inestimável contributo
Adorei este palco, que tanto pode ser o palco da vida.
Beijinhos
Olá, Manuela!
Três viajantes juntos por um motivo comum, a caminho de lado nenhum...ou uma história do absurdo contada com arte e engenho, num texto virado do avesso...
Abraço amigo.
Vitor
Minha querida
O teatro da vida escrito e encenado por quem sabe dos sonhos que as lâminas cortam pela raíz.
Um beijinho com carinho
Sonhadora
Kriu?
ki.ti, se o Teodoro é tio do Isidoro, logo, o Zapa é sobrinho do Frank.
Francamente...
Kriu!
Não há como fugir dos homens-lâmina, que nos laminam... Só mentendo-os numa gaiola e não soltá-los mais...
Ler-te é ter a certeza de percorrer o teu enorme talento inscrito nas palavras.
Manuela, querida amiga, tem um bom domingo e uma boa semana.
Beijo.
A pressa de chegar a um lugar para que os nossos sonhos se soltem passam também por parar em caminhos que nem sempre são claros.
Vamos então aguardar as falas e saber se a docura combina com as pálidas laranjas.
Bj**
Que agradável surpresa a gaiola estar vazia, mas cheia de um sonho que ia ser liberto. Espero que Zapa tenha encontrado um lugar bem longe dos homens-lâmina.
Poder ler estes contos encantados é sempre um privilégio para mim, Manuela!
Beijos
Sonhar para realizar, beijo Lisette.
Sempre haverá uma linda peça, conto, para a gente aplaudir, abrigando-se bem distante, nos sonhos possíveis...
no teatro somos eternos...
Beijo, bravo!
Com laranjas, sem elas...com homens-lâminas (sempre existirão...) os sonhos não acabam e acompanham-nos sempre. Se eu vivesse muito tempo, em 2055 seria igual ao que sou hoje e como era quando tinha sete anos!!
Há coisas que não mudam...será a alma? Deve ser!
Beijo carinhoso
Graça
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