III - como uma pele fina e macia




Quando nasceu ouviram-se três gritos de uma ave e ninguém soube explicar porquê. A mãe olhou-o, sentiu-lhe o peso, contou dez dedos das mãos e outros dez dedos dos pés, admirou a perfeição das orelhas e a força do choro. Por fim observou que no lugar de cada sobrancelha, pairava uma nuvem branca. Não se assustou, não ouviu os presságios dos falsos magos nem tão pouco as dúvidas das outras mulheres. Chamou-lhe Li e disse, vai ser feliz este meu filho. 
Li cresceu robusto e ágil e as nuvens-sobrancelha cresceram com ele. Nos dias de mercado estendia um tapete azul no meio da praça e fazia acrobacias, saltos, cambalhotas e riam as crianças que faltavam à escola só para o ver. Li mimava os trejeitos do governador, a vaidade da mulher do chefe da aldeia, a avareza do mercador, a imponência do juiz. E quem o via aplaudia e os mais fracos sentiam-se mais fortes e os injustiçados menos carentes de justiça.
Nas tendas comentava-se a coragem de Li, mas o rancor que criava no palácio e no tribunal ia aumentando, surdo e viscoso.
Li, alheio à verdadeira maldade dizia-lhes, esta é a minha arte, eu imito o que vejo fazer.
Uma noite sem lua quando todos dormiam e calados estavam os cães porque nada havia a temer, chegaram dez homens armados e arrancaram Li da sua cama e a mãe temeu pelo filho que desejava feliz e as nuvens brancas de Li escureceram e choveram lágrimas e água doce do céu.
Nos dias de mercado os homens estendiam um tapete azul no meio da praça e as crianças eram a ausência triste do riso e das palmas.
Mas Li era robusto e ágil e não cedeu ao medo nem à solidão e ao completarem-se trinta dias de cativeiro ainda nenhum juiz ousara acusá-lo de crime algum. Na madrugada do trigésimo primeiro dia uma ave gritou três vezes e quando os guardas abriram a cela, encontraram-na vazia. O governador disse, deixem-no, já deve ter aprendido a lição. Mas a verdade é que temia a inocência de Li e sabia da vacuidade do poder.
Li sabia muitas coisas e intuía outras tantas, mas não sabia viver sem as suas histórias na certeza de que representando fazia girar a aldeia e com ela as montanhas e os barcos e a profundidade do rio.
Juntou então pedaços de madeira escura, cartão preto, varas, fios, tachas, e com uma tesoura recortou as figuras de todos os habitantes da aldeia, da mãe, do governador, do juiz, das crianças, das aves. Depois pegou numa pele de peixe fina e macia, esticou-a até à máxima tensão e colou-a sobre os seus bonecos. Guardou-os cuidadosamente numa caixa pintada de flores e só os soltava nas noites escuras, a fonte de luz por detrás de um pano branco e ele ajoelhado no tapete azul, invisível na subtileza das sombras.
E já não era ele mas sim os bonecos que falavam, contra luz, que é uma outra forma de ser amado.
As crianças tresnoitavam e riam e aplaudiam e adormeciam na escola só para o sentir.




contos de palco, o último






23 comentários:

Benó disse...

Li é feliz fazendo os outros meninos rirem. Eu gostei muito de passar por aqui e conhecer a história do Li.
Li - liberdade para viver.

Rogério G.V. Pereira disse...

Senti o que há muito não sentia e te agradeço por mo fazeres sentir

Senti-me Li, o herói desse teu conto de palco

Vitor Chuva disse...

Olá,Manuela!

Lindo menino, este Li; corajoso na sua inocência, afrontador dos poderosos, cantando o hino à liberdade, divertindo grandes e pequenos.

Bonito!
Abraço amigo; bom fim de semana.
Vitor

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

Li

soltou o sonho e o medo e saiu herói

um beijo

Isa Lisboa disse...

As pessoas que têm assim o dom de ser felizes e distribuir essa felicidade, também têm o fado de encontrar a inveja dos infelizes...

Um bonito conto, sempre aqui.

Beijo, bom fim de semana

Kika disse...

Kriu?

Cruzes, credo! Anda tudo de muletas por aqui...

Não me digas que foram também vitimas das duas tardes que têm morado dentro de algumas "poetisas"...

Ou então foi da pintura que visava reproduzir aquele quadro da paisagem do costume, que costumam oferecer nas feiras ambulantes quando cedemos e compramos o cobertor de papa com o tigre desenhado ao meio...

Quando foi ao forno, o papel de prata, que era da loja do chinês, não prestava e incendiou-se...

Teria sido melhor a escolha do menino da lágrima... essa, a lágrima, pelo menos, teria apagado o fogo!

Kriu!

Anónimo disse...

Ah, ah, ah, Kika, fizeste-me lembrar o ex-blogue da outra bajuladora nortenha, aquela que tudo o que "escrevia" ou vinha ou ia parar irremediavelmente dentro dela...

Silenciosamente ouvindo... disse...

Um Li criado por si e com um texto
para nós o entendermos como quisermos.
beijinho e bom domingo, apesar
da chuva.
Irene Alves

Nilson Barcelli disse...

Mais um excelente conto.
E muito bem ilustrado, como é hábito da casa.
Manuela, tem um bom resto de domingo e uma boa semana.
Beijo.

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


E és sempre tu, tu e o teu contracenar, contra luz com as palavras, que é uma outra forma de seres ainda mais amada.


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 27 de Janeiro de 2013

mz disse...

Assim deveria ser na vida de todos nós. Saber dar a volta aos obstáculos e continuar com os nossos objectivos.

Um sonho de conto! Tu levas-nos a viajar pela fantasia, Manuela. Obrigada!

Abraço grande.

Rita Freitas disse...

Gostei muito do Li, também eu o senti.

Beijinhos

. intemporal . disse...

.

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. entre sensíveis pressentimentos e bons presságios . entre o antes e o depois . o momento é o de agora .

.

. porque reina neste espaço uma escrita . que sendo renda . é tempo . o tempo integrante de um momento único . também ele intemporal .

.

. a imagética é cada vez mais e também . um indício . um augúrio poético e pictórico . que faz desta grande Senhora . uma CRIADORA inigualável .

.

. inteligent.íssima . e singular .

.

. bel.íssima . e sempre tão discreta . até modesta . muito modesta . até .

.

. a qual . muito me honra com a Sua amizade sincera . a qual . não está minimamente preocupada em "conquistar" adjectivos não "merecíveis" como tantas outras . todas elas perecíveis . que deambulam por aí .

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. e que cacarejam a eito e depois dizem: "poema" . :) .

.

. aplausos . muitos . muitos .

.

. íssimo feliz .

.

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Kika disse...

Kriu?

Encontro sempre aqui um "momento alto", sendo ave, é natural, mas não de rapina, com 150 kilos, como outras que "esvoaçam" por aí...

Kriu!

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

reler....e desejar

bom final de semana.

beijo

:)

Egas Branco disse...

Gostei! Textos muito poéticos e que nos fazem pensar em alguns aspectos da vida e da nossa experiência. Parabéns à autora!

Nilson Barcelli disse...

Reli com agrado.
Manuela, tem um bom fim de semana.
Abraço.

rosa-branca disse...

Maravilhoso como sempre amiga Manuela. Adorei e ousei sonhar...beijos com carinho

Anónimo disse...

A austeridade também chegou aqui?

Faz tempo que não publicas nada...

E eu que gosto tanto, tanto, mas tanto, tanto, tanto de te ler, claro que, muito mais em prosa do que em poesia, mas gosto, gosto, gosto!

Tens agora mais de cinco horas para reagir!

Graça Pereira disse...

Sabemos bem o que acontece a quem sabe tudo e observa bem as pessoas...pois, claro que sabemos!
Mas o Li era um menino esperto e as suas sobrancelhas brancas como nuvens, inspiravam-no e tenho a certeza que foi o Li quem inventou o teatro das marionetas!
E os meninos continuam a delirar e as pessoas grandes também!
Adorei a história do Li e os desenhos? Ainda não falei de todos eles...Lindos com muita imaginação e o livro está completo para a impressão!! Pois então!!
Beijo carinhoso.
Graça

ki.ti disse...

Venho por último,

estava com medo que esses bonecos andassem atrás de mim.

Lunna Guedes disse...

Fiquei aqui a pensar a realidade e o imaginário minha cara. Li se parece tanto com certas figuras que se ocupam do outro para fazer o sorriso existir. Adorei.
Foi um belo passeio, mas agora preciso ir porque infelizmente o dia me chama. bacio
Até breve

Vander Fenelon disse...

Conto de rara beleza! Admiro muito teus textos...
Abraços