Excertos dos diários de Ana de Almeida nascida no dia 1
do mês de agosto de 1853 na cidade de Lisboa, encontrados por acaso, entre
outros documentos, no sótão da casa da minha avó materna. Dizem respeito a um
período da sua vida em que, por razões que descobrireis, Ana permaneceu na
cidade de Leiria desde o dia do seu décimo sétimo aniversário, até maio de
1871.
Dado o seu interesse histórico relativamente a esta
cidade e a sua pura invenção, passo a relatar aquilo que não nos dizendo
respeito nos irá decerto apaixonar.
Leiria, 1 de agosto de 1870
Faço hoje dezassete anos e este foi o dia mais triste da
minha vida. Os meus pais, a quem muito amo e estou certa me amam de igual
forma, perderam a paciência comigo e enfiada numa desconjuntada diligência, com
três mudas de roupa, dois livros e a gaiola do meu canário chamado Zico, aqui
vim parar a esta terra que desconheço, a casa da minha ama Isabel. Sei que lhes
devo obediência e que quando eles me dizem que não posso namorar determinado
rapaz, eu não teria outra opção senão acatar. Mas o meu avô António sempre me
ensinou que todos devemos pensar pela nossa própria cabeça e que as raparigas
devem ser educadas como os rapazes. Acrescento que o meu avô é um sonhador e o
meu pai chama-lhe lunático, o que não me impede de achar que ele tem razão. Mas
nem o meu avô, nem os meus irmãos, nem o meu desgosto, demoveram o meu pai de
me desterrar para esta cidade, que desde já prometo odiar. Sou
orgulhosa, por isso engoli as lágrimas e não olhei para trás, mas apenas aqui
chegada já tenho saudades de Lisboa e não imagino viver longe daqueles de quem
eu gosto.
Abraçou-me a mãe Isabel, a ama que cuidou de nós quando
éramos pequenos e a quem já não via há mais de dez anos. É pequenina, gorducha,
alegre e bondosa. No entanto, ao atravessar estas ruelas escuras e estreitas
até chegar à Travessa da Tipografia onde é a sua casa, deu-me uma angústia e um
nó no coração. As velhas fiam às portas e os seus olhos mortiços seguem-nos, as
crianças seminuas brincam pelo chão e as galinhas à solta picam imundícies.
Eu morro aqui.
10 de agosto de 1870
Tenho dezassete anos e dez dias. Pensei que não sobreviveria
a apenas mais um dia, mas enganei-me. Isabel é dona de uma pensão e aqui habitam
um médico, um funcionário público, o dono da farmácia e uma cantora lírica,
Madame Gigi, linda, coberta de pó de arroz, folhos e sedas. Contando com uma
cozinheira e duas criadas, somos nove pessoas e eu ainda não tive tempo de me
aborrecer. Estou encarregue de limpar o pó aos quartos, esta tarefa não se
entrega a qualquer um, pois no dizer de Isabel, os pertences dos hóspedes são
sagrados e devem ser cuidados com perícia e responsabilidade. Não mexer na
correspondência privada, nos papéis ou outros documentos, é a regra.
Os senhores estão todo o dia fora e eu mal os vejo, mas
Madame Gigi sabendo que eu toco piano e sei ler as pautas, convidou-me para a
acompanhar nas árias e solfejos. Ensaiamos ao serão no velho piano da sala.
Isabel borda uma toalha de linho, o cão uiva às notas mais agudas, Zico acorda
na gaiola e as velas estremecem de susto. Antes de nos deitarmos bebemos chá e
comemos bolachas de manteiga.
Lá fora, cresce alecrim nas floreiras da janela do meu
quarto e eu aprendo a palavra consolação.
26 de agosto de 1870
Sufoco. A cabeça dói-me, massajo as têmporas com alfazema
mas não adianta. Resolvo então ir à farmácia no Largo da Sé comprar extrato de
valeriana. Vou sozinha, a criadagem aborrece-me e se as minhas pernas são
saudáveis seria um crime não as usar. O senhor Paiva, o boticário, faz-me uma
festa. Ao que vem menina? Está pálida, sente-se aqui.
As mulheres presentes sussurram qualquer coisa umas com
as outras e eu sei que falam de mim. Não têm nada que fazer decerto, e assim se
entopem de má-língua e escárnio. O senhor Paiva dissolve um pó branco num copo
de água fresca e eu bebo, conversamos um pouco, sobre o calor, sobre Lisboa e
eu digo-lhe, gostava de aprender este ofício da farmácia. Os olhos dele
abrem-se muito e, incrédulo, responde, hum, hum, minha menina.
A dor de cabeça passou, ele acompanha-me à porta e
indica-me a Sé, ao longe a torre Sineira, aponta-me o último andar de um
edifício, ali trabalha o administrador do Concelho, hóspede da senhora
Isabelinha, acrescenta. Mas será melhor regressar a casa, não estejam em
cuidados com a ausência. Não estão.
E eu vou por aí. Entro na Sé, assustadora, enorme, fria.
Velhas senhoras desfiam rosários, cantilenas, pagelas, confissões. Rezo duas ave-marias
e saio. Entardece, o calor amainou e eu sigo em direção ao rio. Uma alameda
velha coberta de árvores, plátanos talvez, avista-se o castelo lá no alto. Parece-me
que estou perdida. Não me interessa. Tenho saudades do meu rio e do meu
namorado Afonso. Esta noite não saberei distinguir um fá sustenido de um dó de
peito. O meu.
7 de setembro de 1870
O meu coração dispara. De medo, emoção, vergonha, espanto.
Uma das gavetas da secretária do senhor administrador estava entreaberta. Na
intenção de a fechar, abri-a por completo. Uma centena de folhas manuscritas
saltaram de repente para as minhas mãos e eu numa curiosidade doida, as mãos a
tremer, uma voz a dizer-me, para! outra a incentivar-me: lê.
“Dois meses
depois soube-se em Leiria que estava nomeado outro pároco. Dizia-se que era um
homem muito novo, saído apenas do seminário. O seu nome era Amaro Vieira” e continuo,
“Amélia
tinha parado um pouco embaraçada, olhando para os degraus de cima, onde o pároco
ficara, encostado ao corrimão. Respirava fortemente de ter corrido; vinha corada;
os seus olhos vivos e negros luziam; e saía dela uma sensação de frescura e de
prados atravessados.”
E mais adiante,
“Saltou, foi
cair-lhe sobre o peito com um gritinho. Amaro resvalou, firmou-se – e, sentindo
entre os braços o corpo dela, apertou-a brutalmente e beijou-a com furor no
pescoço.”
“Todo o seu
ser se abismava n’uma abstração:
-Gosta de
mim! Gosta de mim!”
Terminava ali. Alinhei as folhas, ajeitei-as e fechei a
gaveta. Saí a correr para o meu quarto e sentei-me na borda da cama. Só pensava
na rapariga do manuscrito, Amélia, tão nova, tão magra, tão bonita.
para continuar a ler devagar aqui
ideia original e fotos de Fernando Pedrosa
caricatura do escritor enquanto jovem de mb
28 comentários:
.
.
c
o
n
s
o
l
a
ç
ã
o
.
.
. e tanto alívio . e esta honra que me invade .
.
. aplausos . entusiásticos .
.
. íssimo . mais.do.que.feliz .
.
.
MANUELA BAPTISTA
Ai que lhe cairia o monóculo ao Eça só não sei se pela devassa dos seus documentos se por ter encontrado em ti uma sua par ...!
E quanto à ideia e às fotografias do Fernando, a elas somadas as tuas caricaturas, que mais dizer:
Bravo!!!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 3 de Novembro de 2012
Eu não gosto de ler devagar, podem bater à porta!
Kriu?
Achas que o tempo está assim tão bom para me obrigares a esvoaçar de blogue em blogue?
já fui ao Paulo.
gostei muito.
beijo
:)
ora Eça, Manuela... avancemos então!
Devagar ou com curiosidade pouco contida, não podia deixar de ler!
Gostei muito de conhecer a Ana, espero que tenha conseguido também ser farmacêutica!
Beijo
Uma delícia.
Gostei de ler, aqui e no Paulo.
Bom domingo.
Beijinhos.
Olá, Manuela!
Requer algum folgo para não ficar a meio ... mas lê-se com imenso gosto.
Passado feita tempo presente, por duas histórias que se encontraram num tempo muito diferente deste...
Bom restinho de Domingo; Abraço
Vitor
Olá,Manuela!
(Adenda ao comentário anterior):
- Corrijo "fôlego", não vá alguém pensar que estudei numa dessas escolas manhosas...
Boa semana!
Vitor
Eu acho que todos os diários são preciosidades. Sou apaixonada por romances de época e adorei ler o que partilhaste aqui.
Vou continuar.
Um abraço, Manuela.
Minha querida
Gostei como sempre de ler e agora vou passar no Paulo para me continuar entre as palavras.
Um beijinho com carinho
Sonhadora
Minha cara, eu nao sei lei devagar, quando deito meus olhos aqui eu quero devorar tudo de imediato para conhecer os caminhos do "delírio". Que leitura deliciosa e agora estou cá a mergulhar nessa curiosidade impar...
Bacio
Gostei do avô António, por ter ensinado a Ana, a pensar pela sua própria cabeça... e também, do dia 2 de Maio de 1871 em que a Ana voltou para Lisboa e o canário - Zico - voltou a cantar...
É um enorme privilégio passar por aqui e poder apreciar a arte e o enorme talento da Manuela, quer seja na forma escrita ou desenhada!
Parabéns também ao Fernando, pelas magníficas imagens!
Um beijinho, agradeço o carinho e boa semana :)
E como é que eu posso ler devagar se tenho pressa de chegar...??
Uma leitura que nos prende e nos encanta.
Gosto muito de histórias de época.
Adorei ler.
Bjs
Voltei para ler mais...
Manuiela, tem um bom fim de semana (o que resta dele...).
Um abraço.
Manuela,
Aqui ou Lá, é sempre bom ler.Viajar no tempo,imaginar cenários,vidas.
Está tudo tão bonito,tão bem escrito...
Obrigada pela partilha.
Saudade dos amigos,
Linda Simões.
Querida amiga
Muito lindo, vir aqui é sempre benéfico, saio com a sensação de quero mais, ler ainda é uma das coisas mais agradaveis, isto enquanto existirem pessoas como a Manuela.
Linda semana, com muito carinho BJS.
Amiga Manuela, li aqui e no Paulo e achei deliciosamente belo. Beijos com carinho
Já fui ao Paulo e comentei este belo reviver Eça!
Venham mais textos assim que nos deixam deliciados.
Beijo
Graça
Kriu?
O que está a fazer a Amália Rodrigues agarrada ao D. Januário Torgal Ferreira, quando era novo?
Não é a Amália Rodrigues, é a Hermínia Silva, antes do tratamento da Herbalife!
é
eu também já os acho parecidos,
ao fim de 15 dias começamos a ver coisas...
vim deixar o meu sorriso :)) e um obrigada!
bom final de semana.
beijo
Eça sempre actual. Gostei de ler
e de seguida irei visitar o blogue
do Paulo. Tenha um bom fim de
semana.Bj.
Irene Alves
obrigada Fernando, pela sua Leiria amada!
Só uma palavra:
Fantástico!
Beijinhos Manuela
Enviar um comentário