Eram amigos. Sabiam exatamente o dia em que se tinham
conhecido, a chuva miudinha que lhes fechara as pestanas, a terra empapada a
cheirar a fertilidade. Segismundo vendia especiarias, Francisco vendia tecidos.
As duas lojas lado a lado na rua das naus que foram os
barcos que atravessaram o cabo das tormentas.
Segismundo tinha percorrido muitas terras em busca dos
temperos mais exóticos, da mistura de caril mais apurada, do chá cujo aroma
fizesse as pessoas felizes. Por isso o seu nome possuía o mundo, mas toda a
gente lhe chamava apenas, Gis. Simples, pequeno, como ele. Às vezes dizia, os
alimentos são como os seres humanos, têm o seu sabor, a sua especificidade, mas
se lhes acrescentarmos um grão de pimenta preta e um pouco de gengibre,
transformam-se, resplandecem. Segismundo tinha o olfato tão apurado que nunca
confundiria sementes de coentros com sementes de cominhos.
Francisco era alto, magro, vaidoso, e na vastidão do mundo
onde cabem tantos homens, ele conhecia o outro lado, os picos montanhosos onde
vivem as cabras, os campos de algodão, os vales das amoreiras, os poços do
norte de África onde se tingem os panos. A sua riqueza estava nas pontas dos
dedos, na sensibilidade das suas mãos e de olhos fechados sabia identificar
todos os tecidos. Quando olhava as pessoas, a cor dos cabelos, a postura, o
riso, dizia-lhes, para si escolheria a seda, o azul pervinca, ou o angorá por
causa do frio.
Os dois homens partilhavam a rua, os clientes, as dores,
os amores e as alegrias. Os filhos de um brincavam com os filhos do outro, as
filhas de ambos brigavam pelos segredos mal guardados e assim lhes corria a
vida.
Todas as tardes após o fecho da loja, Segismundo ligava a
chaleira e fervia a água. Depois escaldava o bule, esperava uns segundos,
escolhia as folhas do chá. Darjeeling, quando se sentia triste e ansiava a doçura.
Orange Pekoe para matar saudades do ar rarefeito das montanhas e dos primeiros
rebentos. Earl Grey e o seu odor a bergamota, porque era suave e frágil. E quando
o odor se espalhava pela rua, Francisco aparecia e sentavam-se os dois no pátio
das traseiras onde crescia uma figueira-brava. Se chovia, resguardavam-se
debaixo do alpendre, se a noite era gelada ali permaneciam a aquecer a
garganta, o peito, a conversar, a desfiar o fio das suas naus.
Muito tempo passou. A cidade modificou-se, destemperada,
sombria. As lojas fechavam, os tecidos já não iam bem com a cor dos olhos e
as pessoas sem tempo para moer a noz-moscada, picar finamente a cebola,
acrescentar o caldo pouco a pouco, para incorporar.
Segismundo aquece a chaleira, ferve a água, escalda o
bule, espera uns segundos, escolhe as folhas e o odor espalha-se pela rua. Francisco
chega com a chuva miudinha, a terra empapada, as pestanas pesadas de água.
São amigos e sabem exatamente o dia.
26 comentários:
MANUELA BAPTISTA
... sempre à espera das contas dos contos e desenhos coloridos, aromáticos, transbordantes que só podem ser os teus!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 26 de Outubro de 2012
Peço desculpa pelas minhas ausências que nem sei explicar. Parece-me que me deixo vagar por correntes diferentes e depois o tempo não faz retorno nem eu posso refazer leituras que ficaram fechadas.
Vou fazer novos programas para que possa ter a alegria de saborear estes textos sem nunca mais perder uma pitada dos cheiros e sabores que correm deste lado.
Bom fim de semana
não necessáriamente às cinco da tarde, pode ser já! :)
estenda então uma toalha de seda, com o sol bordado em cada uma das pontas e o bule branco ao centro, a desenhar rotas, cores e aromas de outros tempos...
para mim, chá preto, menta, jasmim...
bom dia Manuela, Segismundo, Francisco!
É tão bom ter uma amizade assim, que sobrevive ao tempo, envolta nos aromas da memória, no calor das recordações...
Vou fazer uma chávena de chá, fiquei com vontade...!
Beijos, bom fim de semana.
Minha querida Manuela
Ler-te é viajar pelo mundo da magia...pelas veredas da fantasia e pela sensibilidade das tuas mãos.
Um beijinho com carinho
Sonhadora
bules brancos, à espera do chá da ternura dos amigos...
tão bonito...
bom fim de semana.
beij
Hermoso.
Manuela
Viajei em teu conto lúdico e singelo como a chuva miudinha no final da tarde.....
Bjs e um belíssimo domingo!
Bia
www.biaviagemambiental.blogspot.com
Há amizades assim, como que complementares e erguidas à volta de uma chávena de chá.
Manuela, tem um bom domingo e uma boa semana.
Beijo.
Olá amiga, Uma chávena de chá para temperar uma pura amizade. Acho que ao lê-la ainda saboreei o chá. Uma história maravilhosa que adorei. Beijos com carinho
Com amigos assim
a vida seria menos deserto
Texto que esparge perfumes
Olá, Manuela!
História encantadora, que chega a ter sabor e também cheiro:ligação de tempos e hábitos passados em que o Ocidente rico e chique descobriu o sabor exótico das especiarias, até aos dias de hoje.Em que felizmente, depois de tanto que mudou, ainda assim o Francisco e o Segismundo continuam a beber o seu chazinho adoçado com amizade, como nos velhos tempos.
Parabéns; está lindamente escrito. Gostei muito!
Vitor
Muita coisa se perde e se modifica com o tempo, fruto do desenvolvimento, mas, apesar disso, existem amizades que sobrevivem, junto com os odores exóticos da natureza, infiltrados nos chás.
Mais uma vez, gostei muito.
Bjs
.
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. "Não deixes crescer a erva no caminho da amizade." .
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. porque nesta amizade . as ervas não crescem espontâneas . e representam assim todas as plantas . anuais ou vivazes . de caule tenro e não lenhoso . e que secam . após a frutificação .
.
. e renascem . como folhas e pétalas . sob a forma de chá . infuso .
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. filha das ervas . a amizade . é um prado sem fim .
.
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. íssimo . sempre e para sempre feliz .
.
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Neste magnífico cantinho, a amizade é tecida com mãos e fios de seda - da melhor qualidade - e o chá é tão aromático e bem servido (adorei o colorido das contas do bule) que aquece e reconforta a alma de quem o bebe :)
Bem-haja Manuela, pelo carinho e pela partilha de tão deliciosos condimentos...
Beijinhos e tenha uma boa e feliz semana!
Eu cá, para espalhar o odor, abano energicamente a cauda, deixo que se espalhe pela rua e finjo dormitar enquanto permito que me pesem as pestanas...
E ninguém desconfia!
Kriu?
Eram, dizes bem!
Porque eu ká, como tenho todo o tempo do mundo, prefiro dedikar-me aos inimigos...
Gosto de bergamota e do teu conto e, embora quase sinta o peso das pestanas pesadas de água, transmite-nos um calor humano delicioso.
E é esta partilha do seco e molhado, do quente e do frio, do doce e amargo que as pessoas escrevem a palavra amizade.
Abraço.
"Os alimentos são como os seres humanos, têm o seu sabo"...qué sabias palabras, Manuela, qué magnífico relato, uno de los mejores que te he leído, y...la AMISTAD, como muy bien dice Paulo...es un prado sin fin. ¡Ojalá esté yo en ese prado que disfrutas!
Un abrazo fuerte.
Imagens que tocam-me, profundamente, trazendo de volta o preparo do caril, o aroma do chá de todas as tardes...É saudade feliz, do meu companheiro goês, que partiu...
Essas histórias me embalam, prazerosamente, Manuela...Têm cheiro de ontem, contentando-me o hoje.
Um beijo.
Uma partilha gostosa e duradoira...
Há amizades assim...
E que bom o cheiro das plantas...
E o chá feito dessa forma...
E o deslizar dos seus dedos pelas
teclas criando magia e envolvendo-nos
nas suas histórias em que quando
acabamos de ler ficamos logo a
querer mais.
Beijinhos
Irene Alves
As amizades (boas) às vezes começam assim: saboreando um chá perfumado, com aromas escolhidos de acordo com quem se recebe. E o dia fica marcado nas folhas que lembrará sempre que se cumprir o ritual do chá.
Uma história que eu adorei, cheia de odores e sabores.
Beijo
Graça
Querida amiga
Fiquei bastante emocionada, o toque é profundo as saudades são para sempre.
Lindo texto.
Chá é algo que perfuma nossa alma, tem o poder de relaxamento ou de euforia, você escolhe.
Com muito carinho BJS.
"os alimentos são como os seres humanos, têm o seu sabor, a sua especificidade, mas se lhes acrescentarmos um grão de pimenta preta e um pouco de gengibre, transformam-se, resplandecem."
...ainda um dia hei-de saber
o que te faz resplandecer...
(isto aqui é para ti...)
E o dia...seja ele qual for, será perfumado de aromas de chás...e da amizade que permanece apesar da cidade fria e anónima.
Perdoa as minhas ausências...que me perco não sei onde, nem porquê...
Lindas a palavras assim escritas por ti...enchem-se de brilho e aroma...e bordadas a cores vivas ficam-nos na mamória ...
Bj em azul
"Memória"..
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