Era manhã. A cidade aquecia. Ela passava a correr, o saco
a tiracolo, as havaianas a dançarem nos pés, os pés a dançarem na calçada, as
sardinheiras a espreitarem nas varandas, os gatos a ronronarem sonos. O
carteiro misturava os códigos postais e as faturas adiadas e o monte de cartas
rosnava-lhe, vais-te lixar, baralhas tudo, até a vida. Não faz mal, é tão
bonita aquela rapariga.
Depois fazia-se um silêncio de rua antiga, de lojas
fechadas, de ferro forjado, de janelas de guilhotina. Os velhos no abandono das
casas saíam para o pão nosso de cada dia, café já não, um cigarro enrolado e um
dedo de conversa a cada esquina. O outro dedo guardavam-no, era um dedo mágico,
porque às vezes sem darmos conta as coisas ganham outra face e quem somos nós
para negar a esperança e a alegria.
Mais umas horas e a cidade arrefecia. Ela regressava e
quando todos fechavam as janelas, ela abria-as. Primeiro as pessoas
desconfiaram, estranharam, mas recordaram o tempo das laranjeiras em flor nos
pátios e nas vilas da cidade, quando os vizinhos sabiam os nomes uns dos outros e
emprestavam-se dois ovos, um pé de salsa ou uma chávena de farinha. Arriscaram
então, ganharam a coragem de um gesto terno e convidaram-na para o chá e as
mulheres fizeram biscoitos em forma de estrelas e corações e ela disse, eu
tenho um sonho, gostava de ter uma loja de portas sempre abertas, o sol a
atravessar os vidros e o passeio lá fora e desenhávamos vestidos de seda da
China e de algodão do Egipto, sapatos pretos para ir dançar. Pintávamos as
paredes de cores quentes e as contas e os colares poderiam ser de flores para
variar. E abriu muito os seus olhos desmedidos, porque medir ela apenas o fazia
só de olhar. Os biscoitos deram um pequeno salto em cada prato e os corações
colaram-se-lhes ao peito numa aceitação daquele entusiasmo, daquela paixão que
os arrebatava.
Ninguém murmurou, que fútil, que inútil pensar em trapos
e colares neste tempo de hienas. Então os seus dedos mágicos poupados a dois
dedos de conversa, procuraram os pés-de-meia mas não os encontraram, e
disseram-lhe, fica com a loja abandonada na casa térrea, o número 7 da rua das
flores, dá um abrigo ao teu sonho e desabriga-nos da tristeza, da frieza deste
verão.
Nós sabemos costurar os desenhos que inventares, pintar
as paredes negras de fungos e fuligem, colocar vidros, consertar os móveis
partidos, lustrar e encerar.
Nos olhos da rapariga formaram-se duas conchas de água
que ela apanhou para fazer um colar.
Pela noite dentro moldou um tronco, deu forma a um rosto
em pasta de papel. Pintou-o de cores fortes, enfeitou-o de flores e muitas contas.
Chamou-lhe, Camila.
quem disse que já não podemos sonhar óleos de mb
agradeço a Amélie au Théâtre
18 comentários:
Querida Manuela, já li e reli o seu conto vezes sem conta, estou simplesmente encantada e emocionada com a beleza e sensibilidade das suas palavras e desenhos...
Lindo demais!
Bem-haja, por desenhar tão bem sentimentos e por partilhá-los connosco...amei...
Um grande beijinho e um abraço com amizade e carinho BFS
MANUELA BAPTISTA
Abrem-se todas as janelas e ficamos cheios de expectativa!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 15 de Setembro de 2012
a avaliar pelo tamanho dos olhos de Camila, este sonho tem pernas para andar... força, rapariga! :)
bravo, Manuela!
um beijo
Nandinho
Lindo!
É melífluo o seu texto Manuela.
Eu diria : "sem açucar".
Porque é mais doce do que o mel.
E na verve do meu observar eu limito-me a olhar e a sonhar.
Um campo silvestre florido com o aroma da erva príncipe, para aromatizar.
E esquecendo-me do tempo e com tempo,apenas ficar...
É disto que precisamos : de pôr os sonhos estendidos ao sol...
Obrigada por nos trazeres a Camila!
Cá para mim, ela consegue mais que este governo que há muito deixou de sonhar e deixou que as ideias do povo ganhassem bolor e caruncho como a loja do nº 7 da rua das flores...
Perfeitas as imagens e perfeita a "ordem de marcha"
Beijo
Graça
.
.
. camila é o fruto de muitos dias que desde cedo aquecem para que mais tarde possam então arrefecer .
.
.
.
. e abre.se então a janela .
.
.
. da Criação .
. e da Criação emerge a raiz de uma escrita endémica . exclusiva . e hoje é já uma árvore muito maior do que eu .
.
. que de pé se eternizará .
.
. íssimo . feliz .
.
.
A cidade mais do que aqueceu!!!
Eu que o diga e nem digo mais nada...
Se valeu...
Tantas Camilas com sonhos e tantas outras à espera que as laranjeiras dêm flor e depois frutos.
São sonhos destes que dão vida e geram futuro.
Que maravilhosos são estes teus biscoitos de letras escritas.As tuas histórias lindassssss!
Beijos
Regozijo com a prosa e parabenizo-a pela forma quase delicada de o dizer...
Um beijo
Olá amiga, saio sempre deliciada e a sonhar. Sou do tempo em que os vizinhos se conheciam todos. Emprestavam uma chávena de farinha, um pé de salsa, dois ou três ovos e santo Deus! Até cuidavam dos filhos uns dos outros. Sabe Deus por vezes sem nada que dar de comer. Não havia aquela ganância de se pisarem uns aos outros e a palavra era validada num papel pardo. Amei o seu texto como sempre. Beijos com carinho
Manuela!
Lindo conto de amizade no feminino... se todas as mulheres fossem assim...
Beijinho a saber a primeiro dia de aulas
Filomena
Quando os outros apoiam os nossos sonhos, a realidade fica a dois dedos de distância...
Texto soberbo, muito ao teu estilo. Já te disse, mas repito, tens fôlego para o romance...
Um abraço, Manuela.
Precisamos mesmo de abrir todas
as janelas e de colorir a vida...
Mesmo que nos queiram trocidar...
Mesmo que nos queira "empurrar"...
nós precisamos de sonhar e de
querer a vida com cor e magia...
Beijinhos amiga.
Irene Alves
Minha querida
Que os sonhos sejam sempre embalados na brisa suave das tuas palavras...saio sempre daqui sem palavras para dizer algo que esteja à altura do que escreves.
Deixo um beijinho com carinho e agradeço a tua presença no aniversário do meu blogue.
Sonhadora
quase que as palavras saem coloridas, e é assim que se chega ao fim, com as cores a dançarem.
camila foi um nome bem escolhido!
beij
Querida amiga
Estou um pouco atrasada, [mas antes tarde do que nunca] aliás não ia me perdoar por ter perdido a Camila,
cheia de personalidade, atraindo a todos.
A pintura a óleo ficou linda.
Como todos os contos uma beleza.
Com muito carinho bom fim de semana BJS.
Manuela, lindo lindo lindo..
vou levar.
um beijinho grande de saudade, melhor..dois beijinhos
dulce
Ainda bem que há quem ainda sonha, e quem persegue os sonhos.
Palavras que me dizem esperança, lindas...!
Beijos
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