A voracidade das lagartas é atroz. Se é folha, tornam-se
folha, se é fruto transfiguram-se em polpa e cor. Avançam em visco e rastejo
mas se pisadas são ranho.
O senhor da sapataria perguntava, quer a caixa ou um
saco? A mãe dizia, saco, eu respondia, caixa, para os bichos. Da seda. As
amoreiras já eram árvores em vias de extinção. Andávamos quilómetros até à
quinta dos gafanhotos, puxávamos a corda e o sino tocava. Descansávamos então
sentados na berma da estrada, porque o caseiro era coxo e levava muito tempo
para chegar da horta ao portão. O seu nome era Serafim, mas as pessoas diziam,
Serafim o coxo. Hoje diríamos o senhor Serafim, o que tem um defeito numa
perna. Não gostaríamos mais dele do que então gostávamos, seríamos apenas mais
corretos. A correção pode ser também um enorme defeito, porque sendo falsa, é
só por si uma imperfeição. A mim chamavam-me espirra-canivetes por ser alta e
magra, o que é incorreto, pois esta expressão significa uma pessoa irritadiça,
nervosa, coisa que nunca fui. As poucas vezes que andei à bulha foi de uma
forma perfeitamente calma, fria e distante. Bati para defender alguém e quando
me batiam, caía sempre, porque tinha peso a menos.
A mais leve, pesa zero vírgula três gramas e a mais veloz
pode percorrer mil e quinhentos quilómetros no sentido sul-norte e passar desapercebida.
As mais coloridas são diurnas, sofrem o stresse da competição, têm de ser as
melhores, as mais belas, as únicas. As noturnas pacificam-se, dispensam o
brilhantismo das cores, atraem-se, desenvolvem os outros sentidos e assim se
perpetuam.
Serafim deixava-nos subir às amoreiras e apanhar apenas
as folhas maiores. As mais tenras e pequenas tinham de ser protegidas para
atingirem a maturidade. Depois dos sacos cheios, o ritual repetia-se, Serafim chamava-nos
para debaixo da latada e colocava sobre a mesa de madeira um enorme melão. Com
a sua faca afiada cortava as pontas, em redondo, a seguir abria-o no sentido do
comprimento, retirava as sementes para um balde de lata e dividia connosco as fatias sumarentas. O sumo doce, ligeiramente
picante, escorria-nos pelo queixo e matava a sede e a fome de merendar. Lanchar
era a fala das cidades onde jamais se encontrariam melões ligeiramente picantes
e alaranjados.
As asas são formadas por escamas. Seriam dorso de peixe,
barbatana. A longevidade de um ser mede-se pela intensidade da sua vida e um
mês pode ser eterno. A Monarca vive nove meses, quatro fases de vida e só se
alimenta em duas delas.
A pele dos bichos-da-seda era suave e macia. Devorar era
o seu objetivo e a sua cegueira confundia-me. O cheiro a cartão da caixa
misturava-se com o cheiro das folhas de amoreira, dos ovos, dos casulos, das
borboletas a acasalar. Nauseava-me. Andei quilómetros, subi à amoreira e
larguei os bichos e as folhas e a caixa dos sapatos.
Um dia somos partículas de Deus.
metallic butterfly desenho a lápis de mb
26 comentários:
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.
. a Criação habita aqui . e por aqui coabita a mais bela escritora que poderá tão bem e também [ser] a nossa "espirra-canivetes" também e tão bem como epíteto .
.
. esta é uma partícula da Sua história e de [mais] uma história Sua .
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. esta é tão bem e também uma partícula de uma história minha .
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. esta é também e tão bem uma partícula daqueles e daquelas para quem "A correção pode ser também um enorme defeito, porque sendo falsa, é só por si uma imperfeição." .
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. partículas . de deus . e de Deus .
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. e deixo .
.
. um outro . a.deus . entre.a.deuses .
.
. e saio .
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. f_________e_________l_________i_________z .
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seja como for, uma espirra-canivetes, também é uma partícula
de Deus!
e Deus, uma Inspiração Superior!
a Manuela está em alta e não é por ser alta, de certeza absoluta!
belíssimo, Manuela!
um beijo
nandinho
Auf!
Queira Deus que não espirres partículas para dentro da frigideira...
Auf!
Béu, béu!
A última vez que espirrei, a terra tremeu...
Foi cá um chega pra lá!!!
Béu, béu!
Por tudo isso
e mais o omisso
é que designo
qualquer poema meu
por METAMORFOSE...
Nem sei
porque nunca me nauseei
MANUELA BAPTISTA
Espirra canivetes!?
Ainda bem que nunca me acertaste com nenhum!!!
Partículas de Deus!?
Sempre em cima do acontecimento!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 8 de Julho de 2012
-Vais para o melhor colégio do país, vou fazer de ti uma verdadeira Senhora. Dizia-me o meu pai, com tom austero.
Eu Maria rapaz, obstinada, teimosa, justiceira, com vontade de salvar o mundo.
Anui. O colégio sugeria-me novas aventuras. Como no livro das gémeas.
Era um colégio imponente, com dois claustros lindos, frescos e verdejantes.
O claustro da Moura, povoava-me o espírito, sentia-me princesa, no meio das árvores seculares, colunas que sustentavam as heras que passei a adorar.
Também batia para defender alguém e raramente me batiam. A minha insuspeita coragem, provocava receio.
Todas queriam ser minhas amigas, porque eu era a fonte da alegria, do divertimento e da aventura iminente.
Nunca havia tédio, porque o meu pensamento ardia em alternativas de felicidade.
Mas a nostalgia chegou.
Faltava-me o afago da mão carinhosa e protectora da mãe meiga. Entristeci.
-Tenho que ter um bichinho! Da seda naturalmente. Os únicos que nos eram permitidos.
Arranjei uma caixa de sapatos, forrei-a de papel com florzinhas pequeninas cor de rosa e azul bebé (tipo papel de parede Laura Hasley).
Fiz uns furinhos para respirarem. Respiravam, cresciam, engordavam.
E sem o hiato da minha memória, lembro-me que tocava nas suas peles suaves, macias e dóceis e aqueles momentos eram o único reduto da minha ternura.
Porque num colégio interno a vulnerabilidade ecoa por todos os poros. E facilmente somos seduzidos pela música das palavras, quando nos falam de afectos.
E em silêncio recebia o carinho de uns seres pequeninos, indefesos que se preparavam para voar.
Adoro Seda!
Ainda aguardo a suavidade da sua textura para poder dela desfrutar.
Obrigada Manuela, por me recordar os meus 11 anos.
Os seus bichos da seda e o Serafim que escorria as pevides do melão para dentro de uma lata, puxaram-me num repente até à minha infância. Obrigada por isso, Manuela!
Os seus textos são também eles uma partícula de Deus, como só o pode ser a beleza!
Beijos
Olá, Manuela!
O meu obrigado pela visita e palavras simpáticas.
Um abraço amigo
Vitor
Eu era a trinca-espinhas, por ser muito magrinha e tal como a lagarta, transformei-me.
Todos nós somos uma metamorfose, a vida encarrega-se disso.
Um abraço.
O mundo inteiro é formado por partículas de Deus...por isso, não foi assim tão difícil encontrá-la...Querida Manuela, fui tão longe com este teu conto...mãos lambuzadas de tantas amoras colhidas, bata suja de manchas cor de vinho e a caixa esperando no chão que descessem as lagartas e...eu!
Quem é que nunca teve o seu bichinho de seda e acompanhou a sua metamorfose? Talvez seja por isso que eu gosto tanto de borboletas e...de amoras!!
Beijos
Graça
Vinha dizer-te adeus ...
Agora e sempre, sei que não consigo.
Volto mais logo para reler, como sempre gosto.
Beijo
Ná
O seu texto são lindas partículas para a alma. Também tive bichos-da-seda e gostava, mas a transformação para mim era um problema. Adorei as suas partículas de Deus. Beijos com carinho
Nessa inigualável história, volto à infância reconheço um monte de partículas de Deus!
Você conseguiu me levar de volta ao tempo da simplicidade quando dizer o que pensava não era um defeito e s correta era justamente dizer bobagens sem que as palavras tivessem um peso demasiado. Ando com saudades desses dias mais lentos - calmos e lúcidos...
Bacio
Um texto cheio de partículas de Deus!
Beijinhos
Querida amiga
Desenhos maravilhosos.
Partículas de Deus, amei, o texto nos transporta para a natureza e é lá que Deus nos mostra a beleza que existe.
Com muita alegria BJS.
Nunca guardei bichos da seda em caixas de sapatos... mas tive uma amoreira enorme que nunca deu amoras ou eu não lhas vi.
Aprendi aqui hoje que a Monarca é a menos efémera das borboletas, belas, sempre...
e essas sim, eu cruel e inocentemente guardava vivas entre as páginas dos meus mais belos livros.
Agora venho cá e encontro-as vivas entre as letras que compõem mais este maravilhoso conto.
Um beijo
Pois a Manuela além de escrever
maravilhosamente bem, é uma mulher
sensivel e actual.Nunca dei grande
importância aos bichos da seda...
Mais uma história que me encantou.
Beijinho
Irene
Minha Querida:
Tão lindo, tão ternurento, tão comovente, como sempre!
Aprendi sobre os bichinhos da seda e acompanhei esse seu delicioso retorno à sua meninice, aquela fase da vida que nos deixa tanta, mas tanta saudade... E a saudade desenha um sorriso com lágrimas...
Um grande abraço.
Minha querida
Voltei atrás no tempo, quando tinha que descobrir amoreiras, para alimentar os bichos da seda dos meus filhos.
Como sempre uma viagem imensa ler-te.
Um beijinho com carinho
Sonhadora
Auf!
Gosto da Hanaé Pais, apesar dos seus "outros encantos"!
Auf!
Béu, béu!
Tens cá um Faro, Fézada!
É perto do Algarve, Faro, não é?
Béu, béu!
Partículas de Deus e muita arte.
Parabéns.
Manuela,
Estou aqui e ali,
com saudades.
Beijo grande aos queridos
Linda Simões
memórias e partículas.
um beij
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