Era um coelho triste. Gostava de cenouras e de poemas
satíricos. Morava no último andar de um prédio antigo de frente para o rio e do
outro lado a banda de lá onde já não existem os estaleiros e a linguagem perdida
dos guindastes é apenas a memória de um livro que se leu.
Ninguém entendia como é que sendo ele triste, não
preferia os poemas de amor, profundos, impossíveis. Um coelho apaixonado pela
filha de um rei daria um poema épico e ele poderia chorar desesperado e
chorariam com ele as senhoras sós que saíam à rua sós, os lábios desenhados
sós, as rugas a espreitar enganos sós. Ou os jovens fumadores cigarro após
cigarro, os dedos amarelados, a tosse no sótão, o veneno engolido em desespero
de causa, o passado sempre o passado. Não. O coelho era mordaz, sentia o riso
difícil, labiríntico e em tempos de complexidade, melhor será sermos complexos
do que simplistas, ter graça requer mais talento do que fazer chorar.
Na varanda plantava coentros, cenouras e couve-galega.
Pelo meio cresciam papoilas. Não podia tocar em alface, fazia-lhe mal e no
inverno agasalhava-se em si próprio e ia para o jardim das amoreiras roer a
casca das árvores. Sempre aos saltos e isso aborrecia-o, o coelho desejava
saber andar.
No primeiro direito morava um rapaz que tinha um aquário
com um peixe-palhaço e eram amigos os dois, o rapaz e ele. À tardinha o rapaz
batia-lhe à porta com o aquário debaixo do braço, o gato branco e preto sempre
atrás deles alucinado com o peixe, o peixe a fazer glu. Depois sentavam-se na
beirinha do telhado, o rapaz com as pernas para fora, o aquário em equilíbrio e
o gato agora distraído com o voo das andorinhas a fazerem raseiras na cabeça
dos anjos. Tirava duas cenouras do bolso das calças, dava uma ao coelho e
dizia, lê-me os poemas. E o coelho lia. O rapaz sorria e a seguir ria e dobrava
o riso, mordaz e perdido. Às vezes ficavam com soluços os dois e as pessoas
vinham à janela ao entardecer e o riso contagiava as varandas e os olhos dos
velhos.
O coelho prendia uma papoila ao peito e dizia, um dia vamos
viajar.
a rapariga sonha com o coelho e o gato vai atrás
pastel continua negro de algodão
27 comentários:
.
.
. "ter graça requer mais talento do que fazer chorar." .
.
. e em cada frase encontro a dureza de cada pedra da uma só calçada que percorremos na vida . metaforica.mente perfeita . poetica.mente sublime . e cada palavra revela e releva e eleva uma curva labiríntica . odorífica .
.
. e cada arremesso que sendo de cada pedra de uma só calçada . flui . a.penas e só perceptível pela boniteza da arte de quem sabe ler . o que alguém soube . também . ao tão bem escrever .
.
.
. íssimo . sempre feliz .
.
.
Volto à toada do meu comentário anterior... Enleias-me nesse mundo onde as palavras andam de braço dado com o insólito, com a surpresa de uma realidade que passa a ser convincente. Ainda ando às voltas à procura de uma moral... não sei se a encontrarei...
Já me repetindo, digo que a magia destes contos enche-me a alma.
Beijinho
Auf!
Tens jeito para criares fotografias com animais, tipo passe, ou à la minute!
Auf!
Auf!
Béu, béu!
O gato está apertadinho...
Deixa-o lá ir!
Béu, béu!
MANUELA BAPTISTA
Eriçado, também eu vou atrás do sonho da rapariga, atrás ou à frente com um coelho na cartola que de sensato apenas se sabe que não come alface ...!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 26 de Maio de 2012
Registo.
Finalmente um gato nestas histórias sempre a meter água
e tem bom gosto, é do Sporting.
Olá, Manuela!
Os guindastes que já se calaram, mais a varanda feita terra de cultivo onde coelhos encontravam a subsistência,parece história, já coisa do passado, mas que bem poderá retratar o tempo presente.
E quanto ao resto do que aqui está dito, em tudo eu acredito piamente...
Abraço amigo.
Vitor
em abstracto lhe digo, que, o coelho e o gato neste sonho não vi, mas, sei que humanamente estavam, na invisibilidade de uma curva apertada do tempo, da vida...
e o que vi, foi o vermelho incandescente das papoilas, teimosamente incendiando o cinza dos dias
bravíssimo, Manuela!
um beijo
nandinho
Mais um belíssimo conto.
Para ler e reler...
Manuela, querida amiga, tem um bom fim de semana.
Beijo.
A magia de uma grande escritora.
Beijo :)
Minha querida
Sublime...é a única palavra que me ocorre...e retiro-me em silêncio saboreando a magia deste momento.
Um beijinho com carinho
Sonhadora
Belíssimo conto, prezada escritora!
P.S.: O blogger não tem atualizado minha conta no painel, mostrando suas recentes postagens!Por isso me ausentei daqui por algum tempo!
Muita paz!
mestria na arte de narração.
o coelho tem mesmo cara de triste, o gato acho tem cara de traquinas com um olho meio malvado.
boa semana!
um beij
Acordei com vontade de ler algo belo e lembrei-me da uma das minhas escritoras de eleição, Manuela.
Este coelho, tal como alguém que bem conheço, precisa de mudar de casa e ler outros poemas.
Fantástico o conto.
Deve ser partilhado.
Beijo
Excelente narração....
Cumprimentos
Olá Manuela, li e reli não sei quantas vezes, não que não entendesse, mas porque é delicioso. Mesmo sem papoila ao peito, quase que viajei. Adorei. Beijos com carinho
Uma fábula encantadora...
Sempre aprendemos, com esses nossos irmãozinhos.
Beijos, Manuela
A partilha é justa. Uma cenoura, alguns poemas e muito riso.E pela satisfação não estariam eles já na fase da viagem?
Manuela, eu já viajei por este lindo conto e até senti o cheiro dos coentros!
Beijos
Era e sempre o será, amiga Manuela. Um cenourinha a quem (um gato/a - no Zodíaco chinês) lia poesia e contava histórias. Ele gostava mais dos contos fantásticos, tal como a "gata" ...
Um dia no conto inventado a sereia cantou e o cenoura não mais adormeceu senão ouvindo o mesmo conto... rigorosamente igual e ai se a gata se enganasse... ele corrigia-a e lembrava-lhe o canto e o feitiço. Só então dormia.
Comentário deixado na quinta dos gatos (este aqui lembra-me o meu Tokinho ((com olhos rasgados e um ar de lince)) embora tenha também o Malato, preto com umas manchas mínimas brancas) e onde já houveram coelhos que saltavam livremente por todo o jardim e se escondiam debaixo da sebe a fugiam aos gatos, mas isso foi antes do cão.
O Groo era um Serra da Estrela poderoso que não sabia brincar com os felinos, nunca aprendeu até se ir embora também pouco depois do Cenourinha partir.
Hoje acordei e vou adormecer com este conto.
Beijo
De Flor do Jasmim
Adorei o conto, a frase "uma papoila ao peito e um dia vamos viajar" mexeu comigo, fez-me recuar no tempo, coisas minhas, saudades, sabes.
Beijinho e uma flor
Querida amiga
Sonhar é delicioso, obrigada.
Hoje vou ficar quieta senão estrago todo o encanto.
Com muita alegria BJS.
Além dos textos tem os desenhos
sempre muito especiais. Um
bálsamo para os dias tristes vir
aqui e encatar-me com os seus textos.
Bj.
Irene Alves
Espero que um dia viajem...eu pelo menos vou viajando um pouco de cada vez que venho aqui... Obrigada por esses momentos!
Beijos.
Imagina só se o meu cão inventa de ler poemas. Porque eu os leio pra ele, independente do que digam por aí sobre cães serem isso ou aquilo. Enfim, quando criança gostava de coelho, mas deixei de gostar depois de servirem coelhos num jantar na casa de amigos de meu pai.
O que tudo isso te a ver com o seu conto? Fiquei a delirar e a pensar em coisas minhas, apenas isso, tomei para mim. Como sempre a leitura de tuas palavras faz comigo. Invade-me...
bacio
Sempre encanta ler...
Beijo Lisette.
Manuela
Saudades de te ler...
Um coelho que era triste porque olhava o passado que só o encontrava na memória de um livro.
Mas era um coelho inteligente, fez face à crise e, na varanda, plantou coentros, cenouras e couve-galega...
Tinha amigos diferentes e curiosos com quem apetecia viajar um dia de papoila ao peito, talvez para não voltar a ser triste.
Beijo carinhoso.
Graça
Enviar um comentário