Seria estranha a casa, como o homem que a habitava. Quase
ruína mas sólida como uma rocha, paredes de pedra, janelas altas, uma torre incompleta,
uma cisterna de três naves abobadadas e um pátio onde cresciam duas oliveiras.
A nascente, assemelhava-se a uma fortaleza com uma enorme
porta de madeira e ferro, os muros altos por onde amarinhava a hera verde o
musgo e os lagartos ao sol da manhã. A sul virava-se para o mar e as duas
chaminés eram um sinal para os pescadores que remavam ao cais, confuso o
acinzentado da estrutura principal, brancos os cones por onde sairia o fumo das
lareiras se lá estivesse alguém que as acendesse.
Descobrem-se outras passagens e túneis e arcos e uma
senhora da consolação pintada na pedra com um cão manso deitado aos pés. Muitos
dizem, não pode ser santa, não é ela, é apenas uma mulher com um cão. Ele ria-se.
Esta disputa é tão importante como discutir o tamanho das favas novas em tempo
de seca ou das promessas por cumprir ou do desengano. A casa é como a vida, um
empréstimo. Lá mais para o princípio devolvemos tudo e o que nos preocupa deixa
de fazer sentido.
Ao entardecer ele acendia as luzes da biblioteca e
continuava o seu trabalho de tantos anos. Selecionava amostras, organizava-as,
caracterizava-as, registava. As pedras eram o objeto do seu estudo e o silêncio
colava-se à imobilidade da sua natureza aparentemente dura e sólida. O homem
amava as pedras e estas deixavam-se observar assim como quem constrói uma
história individual e coletiva. Nas estantes os livros calavam-se. Os romances
de amor encostados aos de aventuras, os históricos, zangados com as farsas e as
cantigas de maldizer, os de poesia, virados para a jarra das rosas encarnadas.
Os livros de contos nunca permaneciam no mesmo sítio, mudavam de prateleira, de
capa, de contracapa e de personagens a cada duas horas. Os de banda desenhada
estavam pintados no teto e o homem-aranha caía no teclado do computador sempre
que fazia vento. E, finalmente invisíveis, os que falavam de minerais e de
pedras, guardados na cabeça do homem.
Quando o cansaço o invadia ia à cozinha, fervia água e
fazia chá. Pousava a caneca na mesa de madeira, enorme, velha e gasta, sentava-se e mergulhava línguas de veado no chá. O
biscoito derretia e queimava-lhe a língua e as duas, a do veado e a dele eram
uma só.
Foi numa dessas noites que ele apareceu. Pequenino,
tímido, o nariz levantado a cheirar o bolo, a cauda longa e cor-de-rosa. O
homem não se assustou, não se enojou e muito devagar esfarelou um biscoito em
cima da mesa. Ele aproximou-se, ergueu-se nas patas traseiras, os olhos
brilhantes de prazer e começou a comer. O homem lavou a loiça, arrumou a sala,
apagou as luzes e dirigiu-se para o quarto. Ele seguiu-o.
E todas as noites regressava. O homem esperava-o e
dava-lhe migalhas de bolo e pedaços de queijo e falava-lhe do seu trabalho e da
fiabilidade das pedras. Depois pegava num livro e lia-lhe a lenda de Despereaux
Tilling, um rato apaixonado por uma princesa chamada ervilha.
A senhora da consolação sentava o cão ao colo e o rato adormecia
no cesto da roupa lavada. Um dia falou.
26 comentários:
Mais um belo texto.
Difícil tecer um comentário. A magia e a ilusão sentam-se à mesa e partilham a leitura e as migalhas.
MANUELA BAPTISTA
Ratinho lindo, o que nos prometes tu por entre o cheiro a alfazema ...!?
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 28 de Abril de 2012
.
.
. dulcíssimo o timbre da Sua escrita . insígnia e sinal . que cifra e decifra o milagre de uma existência que assim se pereniza à margem de tantos títulos que se arriscam por aí ... .
.
. titilantes e titilosos . e que nos titilam . quase sempre . até às lágrimas . :))) .
.
. assim se faz uma escritora . porém . no desdém de todos os letreiros . e permanentemente no apreço pela designação particular na universalidade da Criação .
.
. essa sim . como capa e contra.capa . da asa . onde reside a palavra .
.
. re.encontro sempre aqui uma escrita sábia . sem lados e sem espelhos . desde sempre fiel ao perfil inscrito da autora . escritora . poeta . poetisa . artista plástica . pintora . mulher . irmã . amiga .
.
. sempre una e indivisa . nunca vã .
.
. esta é a Luz . pela qual . há tanto ansiávamos .
.
.
. íssimo . sempre . feliz .
.
.
Mais um conto excepcional.
Gostei muito, como sempre.
Manuela, querida amiga, tem um bom fim-de-semana.
Beijo.
Manuela,
Às vezes engasgamo-nos de contentamento. É nessa altura que as sombras se escondem, receosas das palavras vindas da alma. Como as suas.
Beijo :)
O ratinho um dia falou. e que disse ele? Que gosta de estar deitado en roupa lavada.
Desta vez, li e não resisti a deixar um desejo ---Que tenhas um bom fim de semana passado entre roupa lavada.
Um abraço.
Olá, Manuela!
Quando um texto tem tanta qualidade como este, que nos encanta e a ele nos prende à medida que o vamos descobrindo,comentá-lo é um acto de atrevimento.
Por isso apenas digo: adorei; é uma delícia, um docinho temperado com imenso talento.
Abraço amigo, bom fim de semana.
Vitor
Consolados ficamos nós manuela. Os teus contos encantariam qualquer rato enrolado em cesto da roupa lavada... espero um dia, estarem merecidamente numa prateleira encostados aos romances e aventuras... :) Beijinhos
Estranho e belo. E nostálgico. E ambíguo.
O fim (Um dia falou) abre todas as hipóteses: Teria sido a senhora? Ou o cão? Ou o homem? Ou o rato? Ou o livro? Ou a pedra?
Acho que foi a pedra. Nos teus textos, as pedras falam...
Manuela,
Se encantas até um rato...
...
Eu, de minha parte,digo:
Bravo!
Muitos beijihos,
Linda Simões
Belo conto...Espectacular....
Cumprimentos
Querida amiga
Mais uma vez este maravilhoso conto me fez andar nas nuvens.
Com muito carinho uma linda semana BJS.
Olá, amiga!
¸¸.º°❤ °º✿
Passei para uma visitinha.
Bom 1º de Maio!
Bom feriado!
Beijinhos.
Brasil.¸¸.º°❤
°º✿
Caríssima, senti saudades de aqui estar. Como faz-me bem ler-te. Fui lendo e me percebendo em suas palavras, como se me descrevesse junto aos meus livros, aos meus rascunhos, em meus dias e horas inteiras...
Não tenho um rato, mas sim um cão e este dorme no canto do sofá a espiar meus movimentos e as vezes, quando tarde da noite, leio para ele um verso ou outro. Essa semana, estamos lendo Baudelaire. rs
bacio e grazie por essa combinação deliciosa de palavras...
Fico impressionada como consegue tanta inspiração abraço Lisette.
Mais uma bela viagem
Quando as pedras falam
as palavras voam
interrogam-nos
mesmo no corpo de um rato
a magia de um conto a fazer-me cócegas nos sentidos; a beleza da comunicação a unir vários mundos!
Olá, Manuela... de volta a casa com um ratinho no estômago! :))
beijo
Nandinho
mau, mau...
Chego tarde e cansada, peço desculpa Manuela.
Li um belo conto.
Nada mais me espanta vindo de ti... a não ser a constante criatividade e as palavras que sempre bebo sofregamente.
Vou partilhar
Volto para reler.
Beijo
Ná
"A casa é como a vida, um empréstimo. Lá mais para o princípio devolvemos tudo e o que nos preocupa deixa de fazer sentido."
Obrigada por esta frase, linda!
Era uma casa muito engraçada.....mas com um cheiro bom no ar, e uma vida inteira a lhe habitar......
Um beijo Manuela
Bia
www.biaviagemambiental.blogspot.com
Um conto lindíssimo, nostálgico, cheio de intensidade e magia, com mensagens bonitas e verdadeiras.
Adorei
Beijinhos
Se falou, algo disse...
E a Srª da Consolação, achou bondade tamanha que logo, logo se viu numa história tamanha!
Bjs
Correcção:
Se falou logo disse...
E a Srª da Consolação achou bondade tamanha e logo, logo se viu numa história façanha!
Assim está melhor :)))
tamanha
está melhor, façanha :)
delicioso de ler.
e apetece-me ser criança...
um beij
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