É o meu coração que vai por ali assustado. E colocou a noz-moscada
no parapeito da janela no exato ponto onde há muito tempo tinha desenhado um
círculo. Fez uma pausa, contou até três e de repente largou a janela de
guilhotina. De um só golpe desfez-se em pó. Um cheiro a almíscar espalhou-se
pela sala. Os vidros aguentaram.
Um dia trocara o coração por uma noz, mais dura, mais
fria, distanciada. Quando saltava, ouvia-se clac, clac, clac e ficava com
soluços. Se era preciso temperar o caril, bastava sentir a ausência de coração
na boca e ranger os dentes. Quem se rala deixa sempre cair alguma coisa.
Lá fora a moscadeira crescia e a chuva começou a
engrossar. Entre a berma e a estrada formaram-se regos de água arrastando
folhas, insetos, sementes e um ou outro peixe mais pequeno. Assim como veio,
parou. Os sapos encheram-se de ar e alguns subiram até à copa das árvores
confundindo-se o canto dos pássaros e o coaxar das rãs. Outrora sentiria um
arrepio de prazer pelo céu a descobrir azuis e verdes, pela paz depois da
tempestade, mas a noz não sentia nada. Pensou então engoli-la inteira com meio
copo de sumo de laranja e depois esperar a alucinação dos olhos e dos ouvidos,
os braços e as pernas a tremer e perguntarem-lhe, o que foi? e ela não saber, o
que foi? não sei quem sou.
Levei o coração ao cais da terra e passei os dedos pelos
bordos de uma cicatriz. Veio uma semente engoliu-o.
O esquecimento é um ato premeditado, esquecemo-nos de
abrir a boca porque não queremos falar, de sair do comboio quando desejamos
continuar viagem. Ela esqueceu-se do que tinha dentro do peito, mas o coração
lembrou-se do caminho de volta. Seduziu a semente e a folha, vagamundeou numa
ausência de exclamações e interrogações, abominou as reticências, entrou pela
janela de guilhotina. O círculo fechou-se.
Nessa noite os elefantes aprenderam o caminho do mar e
vieram tomar banho à praia.
semente com coração dentro a viajar numa folha
28 comentários:
As suas construções literárias são tão finas e entrelaçadas que por vezes se torna quase um sonho chegar ao fim da leitura com uma imagem clara.
Uma viagem no sonho e no tempo até ao tempo em que os elefantes entenderam a necessidade de um banho na praia.
MANUELA BAPTISTA
... e às baleias, a essas nasceram-lhes dentes de marfim!!!
( estive quase para por reticências mas como as abominas, substituí-as por três exclamações )
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 21 de Abril de 2012
Ter uma noz no lugar do coração é muito frequente. Mas quem não sente não é filho de boa gente.
Mais um excelente conto. Para ler e reler. Gostei muito.
Manuela, querida amiga, tem um bom fim de semana.
Beijos.
Teu conto me encanta.
A música me eleva.
Sinto algo dentro de mim a flutuar sempre que aqui venho te visitar.
Me deixo ficar, de olhos fechados a sentir o momento.
Meu carinho e meu beijinho
Tão simples e inequivocamente teu...:) Quando os círculos fecham, há sempre menos reticências. Eu ralo-me com tanta coisa hoje em dia, que a poeira me circunda e a montanha de pó, aos pés, tolhe-me os movimentos.. Talvez me tenha esquecido propositadamente onde pus o pano do pó, por temer andar para a frente...Beijo
Olá, Manuela!
O desejo de conseguir o melhor de dois mundos é quase sempre meta inatingível. A fazer lembrar um princípio bem simples mas muito verdadeiro: Quando se ganha num lado, perde-se no outro ... Ou "não se pode ter tudo", que também não ficaria aqui mal.
Bom fim de semana.
Abraço amigo.
Vitor
Manuela,
aprecio e sinto a sua forma de escrever, (única), como se estivesse com olhos mergulhados numa pintura, tentado compreender, a cor, a forma e o conteúdo
às vezes sinto-a totalmente Expressionista, pela intensidade com que se olha a si, aos outros, às coisas, sempre de dentro para fora
será o caso deste magnífico e enigmático texto?
outras vezes, deambula por mundos abstractos, onde se insere numa realidade muito própria, que a um "olhar" menos atento, menos fundo e preparado, pode tornar-se num excitante e demorado exercício de compreensão, e a tudo isto se somam piceladas de pura poesia
parabéns, Manuela!
apenas mais um, de tantos textos magníficamente escritos!
um beijo
Nandinho
Manuela
O coração às vezes salta-nos do peito e vai vagabundear.
Mas mais tarde ou mais cedo encontra o caminho de regresso, e, mesmo que se tenha partido, volta para o seu cantinho.
Feliz Domingo. Beijinhos
Pudéssemos nós, pobres humanos, constatar o abrir e o fechar dos círculos como quem respira, como quem assobia. As auroras e os ocasos fariam todo o sentido.
(Há tanta harmonia e tanto equilíbrio no que escreve!)
Beijo :)
Querida amiga
Tenho certeza do seu bondoso coração, aberto como uma flor como pura poesia.
Obrigada pelas belas palavras.
Com muito carinho BJS.
Auf!
Escreves tão bem... Olha se tivesses caído na armadilha daquela editora pirosa?
Bem, eu sempre te poderia arranjar uns grilinhos para pores na capa, porque as borboletas, essas, voaram, espantadas de todo...
Auf!
Béu, béu!
Eu hoje digo, tal qual costuma dizer, a maior graxista da blogosfera:
"Obrigada pela partilha."
Béu, béu!
E o meu coração aí ficou aquietado,esperando a volta para o abraço.
E o esquecimento não aconteceu,nem o sonho adormeceu.
Um beijo grande,
Linda Simões
Tal como os elefantes busco o caminho do mar.
Cadinho RoCo
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. a premeditação é então entendida como um momento de reflexão . e outro . e ainda outro . e mais outro ainda .
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. a premeditação é também sentida em cada página que se constrói . aqui . como ancoradouro de uma estação futura . que se designará como ponto de partida para todos os destinos .
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. mais do que bel.íssimo .
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. íssimo . sempre feliz .
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Manuela,que saudades da tua poesia linda de viver.bjs
Na forma e no conteúdo
uma viagem que apetece repetir
na memória dos elefantes
Carismáticamente tão teu, amiga Manuela.
Não tenho palavras para tanta beleza, excepto talvez dizer-te que saio daqui com os aromas, sons, cores e sabores tão díspares quanto doces... a moscadeira, o coaxar das rãs, o copo de sumo de laranja, e como sempre ... com arrepios de prazer.
Obrigada
Beijinho
Ná
Tão belo, tão sutil, tão delicado e, a um só tempo, tão profundo, filosófico...
Beijinhos,
da Lúcia
Bom dia, a encontrei em Nelson Barcelli e a vim visitar e me
deslumbrei ao chegar.
A sua forma de dizer metafórica,
complexa, mas tão linda...
E me assombrou por não a conhecer e
tanto tempo, foi o tempo perdido.
E a verdade está escrita nas entrelinhas.
E pergunto, quem és tu?
Maria Luísa
E escrevo poesia!
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. e,,, .
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. madrugo.me aqui .
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. na alvorada do dia dos cravos .
.
. (grato) .
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. feliz vinte e cinco de abril .
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Manela
por vezes eu leio, e depois releio, acho que há certas passagens que me tenho mesmo de fazer isso, para pensar e sonhar.
cito esta:
esquecimento é um ato premeditado, esquecemo-nos de abrir a boca porque não queremos falar, de sair do comboio quando desejamos continuar viagem. Ela esqueceu-se do que tinha dentro do peito, mas o coração lembrou-se do caminho de volta.
é uma escrita limpa e bela muito bela.
um beij
As sementes crescem conforme a mão que as semeiam e se mais tarde os corações se transformarem em algo diferente do normal, nessa altura teremos um grande elefante para combater.
O mar é um local óptimo para reflectir!
Bjs
Li e voltei a ler, e fui onde me levou o coração.
Lindíssimo
Beijinhos
(leio e releio e viajo nessa folha com o coração cheio de sorrisos semeados)
Um abraço
O coração sempre mostra o melhor caminho, beijo Lisette.
Manuela,
vou ali e não demoro:))
até já!
um beijo
Nandinho
Mais um post de muito interesse e
que terá várias leituras consoante
quem lê.
Quem é você já se pergunta por
aqui...eu respondo:
alguém com uma profunda sensibilidade
e uma capacidade de utilizar as
palavras e compor histórias
de grande interesse.
Beijinho
Irene Alves
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