contos da cidade quando as aves se fazem ao mar







Nesse dia posou uma ave no mastro mais alto da embarcação, aquele que suportava a vela branca, a do meio, entre a vela cor de salmão e a da cor da areia fina.
Trazia no bico um ramo tenro impercetíveis os rebentos e as folhas delicadas.
E ficou ali calada enquanto as marés obedeceram às luas e os peixes trouxeram espadas, escamas brilhantes, lisas, prateadas e as gaivotas guincharam a ousadia da outra, frágil, leve, habitante da terra desconhecedora de correntes quentes ou frias.
O homem que amava o barco como se fosse a sua casa, a cama, a janela e a mesa da cozinha, olhou a ave, a nuca colada aos ombros, a mão direita sobre os olhos porque o sol ardia e estendeu o braço esquerdo e disse-lhe, se tens sede desce até aqui, se é fome o que sentes, reparto contigo os grãos que guardo no porão, centeio, milho, trigo-sarraceno. Ele dizia sempre, trigo- sarraceno, gostava da palavra, da ideia da palavra. Sabia que não era um grão mas a semente de um fruto, triangular, como o sinal da cruz.
E continuou, os olhos postos na ave, os olhos da ave postos no homem,

eu às vezes também fico assim suspenso como tu, com um objetivo preciso e sem que os outros entendam qual é ou imaginem sequer o que possa ser. Há muita forma de estar calado tendo tanto para dizer e eu tenho mais anos do que este meu barco e no instante em que percebi que a velhice é um sobejo da vida e reservada está apenas uma cadeira, sempre a mesma, para quem é velho e triste, fiz-me ao largo e jamais me arrependi.

Porque encantatória é a voz de um homem bom, a ave cedeu. Deixou o mastro, completou três voltas à roda do barco e o homem rodou com ela e disse, princesa! Ela cerrou as patas e as unhas e equilibrou-se no seu ombro, o ramo bem preso no bico anilado.
Ele lançou uma rede e pescou alguns peixes, dividiu-os entre si e as gaivotas enciumadas. Varreu e lavou o convés, estudou os mapas e as rotas e por fim descansou. No horizonte, vénus a estrela da manhã que é também a estrela da tarde e a ave ao ombro.
Então ela largou o ramo tenro impercetíveis os rebentos e as folhas delicadas. Ele colocou-o num copo com água fresca e ambas beberam, a ave e a planta e esta cobriu-se de pequenas flores brancas.
O homem sentiu saudades do cheiro dos pátios de uma cidade e disse,  

amanhã procuro-te terra firme nesse lugar do sul onde dormem as princesas, mouras, sarracenas, presos os cabelos com ramos tenros e flores de ameixoeira.  

Junto da quilha seguiam agora dois golfinhos e um cardume de peixes lua e anilado o bico da ave e esta piou.









ramo quebrado com ausência de pássaro óleo de mb






32 comentários:

Branca disse...

Mais um conto de encantar, embalado numa música tão suave e linda.
Um conto onde a partilha mais profunda e simples da vida se faz notar, a partilha dos homens com a natureza que os rodeia e a sua própria natureza, uma partilha que se perdeu em grande parte e por isso nos faz retornar às origens sempre que a sentimos por perto, como aqui.

Beijos

Anónimo disse...

Olá, Manuela!

Um homem sonhador que cansado de terra se quis perder no mar, mais uma pomba inocente que lá se perdeu. E dela ele tanto gostou que se dispôs a voltar ao lugar de onde partiu, só para a deixar em terra ...nesta história de ternura entre ele e ela.

Bom fim de semana; um abraço.
Vitor

Rogério G.V. Pereira disse...

Hoje não estou para ti, poeta.
Coisas que acontecem a um misero humano... Me embalaste e quase me comoveste e fizeste esquecer... reli. E quando reli teu poético conto ficou diferente. Onde estavam velas, vi panos. Onde estava um barco, li toscas tábuas de pobre e frágil jangada sem local algum onde por tais sementes... Onde li pássaro vi ave de rapina, e onde estavam mapas, vi rotas sem outro destino nem nem outro sentido que não o do fim do mundo...

Apenas uma coisa, nessa segunda leitura, me deu esperança: é que, no final, junto daquilo a que chamas quilha lá permaneciam os dois golfinhos e tal referido cardume de peixes luas. Apenas espero pelo piar da ave ainda na esperança que não seja a de rapina...

(lindo o teu texto, mas tinha de te dar esta mensagem minha)

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


Os teus contos são como ramos de ameixoeira.

Saciados de água, florescem alvos e de uma ternura sem par.

Entre o homem e a ave, aquáticos como o voo!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 24 de Março de 2012

Fernanda Ferreira - Ná disse...

O que dizer? sobretudo quando ainda persisite o nó na garganta e o olhar humedece ?!!!
Tão lindo, tão sempre teu.
Obrigada.

Gostava de te mostrar as minhas flores de ameixoeiras, tão efémeras quanto belas.
Imortalizo sempre algumas em fotos.
Talvez um dia nos venhamos a encontrar à sombra do seu aroma.

Beijo

. intemporal . disse...

.

.

. tão lindo . manu.ela.de.elo,,, .

.

. são tantas as razões pelas quais me regozijo . pelas quais me congratulo . em tê-la como amiga . séria . de dentro . e para sempre .

.

. em júbilo . saúdo esta afeição recíproca . entre dois entes .

.

. e os Seus contos . são todos eles . excepcionais . e não precisam de mais nada . porque são lidos com a mesmíssima paixão com que foram redigidos .

.

. adoro.A . e saio . rendido .

.

. íssimo . mais.do.que.feliz .

.

.

Kika disse...

Auf!

A humildade é aqui uma bênção, porque é inata e real e não é apenas aparente, porque a humildade aparente é uma falsa humildade, que não rasteja, na medida em que, é ela própria rastejante e visa apenas atingir propósitos individuais sem qualidade merecível.

Essa é que é essa...

Só por isso, convido-te para jantares comigo hoje: croquetes escalados com batatinhas assadas no forno e para beber teremos uma garrafinha de Lambrusco.

Auf!

Anónimo disse...

Béu, béu!

"Humildade vem do Latim humus que significa "filhos da terra". Refere-se à qualidade daqueles que não tentam se projetar sobre as outras pessoas, nem mostrar ser superior a elas. A Humildade é a virtude que dá o sentimento exato da nossa modéstia, cordialidade, respeito, simplicidade, honestidade e passividade. A humildade dos que vivem na pobreza, pode ser vista, pelos ricos, como uma fraqueza ou maneira de promover reverência e submissão das classes populares.
Diz-se que a humildade é uma virtude de quem é humilde; quem se vangloria mostra simplesmente que humildade lhe falta. É nessa posição que talvez se situe a humilde confissão de Albert Einstein quando reconhece que “por detrás da matéria há algo de inexplicável”.
Por humilde também se pode entender a personalidade que assume seus deveres, obrigações, erros e culpas sem resistência. Assim, se pode dizer que a pessoa ou indivíduo "assume humildemente"."

E na qualidade de "filho da terra" venho combater aqui aqueles e aquelas que sendo filhos e filhas... da terra não serão concerteza.

Béu, béu!

Unknown disse...

Manuela

é tão bonito e delicado este seu ramo de palavras, de afectos...!

mais um que aconchego ao peito!

para si,

um beijo, um sorriso, e uma flor de ameixoeira :)

Isa Lisboa disse...

Também eu por vezes preciso de ficar "suspenso como tu, com um objetivo preciso e sem que os outros entendam qual é ou imaginem sequer o que possa ser". Para falar com o que está à volta, para ouvir o que não se ouve em movimento.
Uma história de mar, de melancolia da terra, de como encontramos quando o precisamos.
Gostei muito de ler.
Beijos.

Hanaé Pais disse...

Indubitávelmente, o melhor blog, siga humildemente.
Coloque amor nas suas palavras, coloque amor nos seus pensamentos, coloque amor nas suas acções e eu sigo-o,incondicionalmente.

ki.ti disse...

Fui eu que parti o ramo,

a escalar uma ameixoeira.

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Minha querida

Não há palavras para comentar o BELO, remeto-me a um silêncio gostoso...apenas sentindo.

Beijinho com carinho
Sonhadora

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Querida Ná,
De minha casa vejo o mar.Fico muito tempo dos meus dias a contemplá-lo...de dia e à noite enquanto rezo o terço.De manhã são pequenos riscos brancos...De noite são focos de luz.Parecem estrelas.Imagino a faina, o frio e os perigos dos que andam naquela lida. Mas depois de ler o conto lindo que me mandou, vou tentar imaginar de forma diferente e aproveitar o privilégio que tenho de ver o mar.
Bom domingo Amiga.
LUZ
No dia 24 de Março de 2012 12:01, Maria Fernanda escreveu:
http://historias-com-mar-ao-fundo.blogspot.pt/2012/03/contos-da-cidade-quando-as-aves-se.html

Maria da Luz Machado Colaço [mariadaluz.macol@gmail.com]

Beijinho

manuela baptista disse...

tantas asas tem um conto

e Maria,

tanta Luz!

Nilson Barcelli disse...

Mais uma história de encantar.
Deliciosa e muito poética.
Gostei imenso, como sempre. Até porque já tive um pardal a comer na minha mão...
Querida amiga, tem um bom domingo e uma boa semana.
Um abraço.

Magia da Inês disse...

Seus textos são sonhos...
Boa semana!
Beijinhos.
Brasil

♫♫.•*¨*•♫♫¸

Virgínia do Carmo disse...

Eu fico assim, suspensa, sempre que leio a Manuela.

E às vezes somos, tão-somente, esta procura. À deriva.

Beijinhos.

Anónimo disse...

"Porque encantatória é a voz de um homem bom, a ave cedeu.(...) - encantatório, sem dúvida, também, este despertar de sonho, natureza em total comunhão e partilha de vida! E Vénus - "estrela" da manhã ou da tarde, que importa?! - a mais brilhante, estou certo, nessa paz que convoca os golfinhos para o descanso da viagem!
Bom Domingo, Manuela!
Beijinho
jc

alegria de viver disse...

Querida amiga

Na pureza de alma brotam os sentimentos mais lindos.
Um texto em sintonia, nos remete a pensar onde estamos e porque nos queixamos. Veja quem tem olhos de ver.A simplicidade é pura luz.

Maravilhoso.

Com alegria bela semana BJS.

Isabel Maria Rosa Furtado Cabral Gomes da Costa disse...

Querida Manuela:
Tão bonito! Que ternura! Perfeita a simbiose do Homem com a Natureza. Assim o Homem saiba dar corpo a essa sintonia.
Imagino as estrelas a acenderem-se e a ave
a encostar a sua cabecita na cara do homem, a afagá-lo e a sussurrar-lhe: "Descansa. Amanhã, será um outro dia. Quando o tempo mudar e vieres para Norte, eu voltarei contigo."
Um beijinho.

Rita Freitas disse...

Um texto belo e singelo, que traz paz e serenidade à alma...
Abraço

Hanaé Pais disse...

Venus?
Sotyis ou Sirius.
A estrela que mais ilumina entre as estrelas.
Com uma grande simbologia para os Egipcios, pois definiam o comecar do cultivos das terras, depois da cheias do Nilo.
Venus?

AC disse...

A harmonia à distância de um olhar e de um gesto temperados em determinação.
Tão bom, Manuela, embarcar com memórias e sonhos!

Beijo :)

Menina no Sotão disse...

Minha cara, eu confesso, me senti ali, na pele do homem a olhar o vôo, a si mesmo e a paisagem a sua volta. Me senti ali, na pele do homem, em busca de terra, do porto, do cais e com a ave aos ombros. Mergulhei nessa leitura como se narrasse a mim em meio as rotinas do meu dia.
bacio

mz disse...

Os frutos e os dons de chamarmos os outros para junto de nós.

Uma Primavera de bondade e entendimento entre o homem e os outros.

Um Abraço, Manuela.
Maravilhoso.

Elvira Carvalho disse...

Não conhecia este blogue. Vim por indicação da Ná e em boa hora o fiz já que gostei tanto do texto que me emocionei.
Um abraço e uma boa semana

Graça Pereira disse...

E floriu o ramo...e floriram as palavras neste teu conto onde a velhice não termina numa cadeira e volta com os elementos da natureza a ter uma nova esperança.
Mil beijos.
Graça

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Minha querida

Passando para ver se já tinha florido mais um texto.
Depois volto.

Beijinho com carinho
Sonhadora

Beatriz disse...

Procuro sempre a razão de tudo em terra firme. Mas lá está ela nas ondas e na quietude do mar. Por isso nunca acho.
O vai e vem das marés....
Ai que saudade da minha terra...
Ai que saudade do mar....

Beijinho Manuela

Bia

www.biaviagemambiental.blogspot.com

Silenciosamente ouvindo... disse...

Como diz a Rosa Solidao(Sonhadora)
estamos sempre na expectativa de
um novo texto, embora(para mim)por
vezes me seja difícil fazer o comentário, perante uma escrita tão
boa e uma imaginação fantástica.
O Vitor homem do mar, disse tudo.
Também gosto muito de Lisboa(tra-
balhei lá perto de 40 anos) e do
Estoril, sítio onde gostaria de
morar, se tivesse podido.
Assim, estou naquilo que chamam a
Margem Sul, concelho da Moita,onde
nasci e possivelmente irei morrer.
Tenha um óptimo fim de semana,
vai ser conm chuva.
Beijinhos.Irene

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

suspensa e maravilhada.

beij