Victor e a laranjeira


Tinha uma marca, uma diferença, uma letra a mais no seu nome. Muda, inútil. Quando pensava nisso ficava zangado, com os pais, os padrinhos, o funcionário do registo civil, com a professora que o obrigava a escrever o cê antes do tê e ele queria trocar o cê pelo quê de porquê. Outras vezes inventava nomes para si e perguntavam-lhe, como te chamas? e ele respondia, Juno! ou Oceano e corava feliz, da ousadia ou da mentira, tanto faz.
Depois cresceu e fez silêncio sobre este assunto. Dir-se-ia conformado, mas era apenas uma aceitação, um desvio que fazia, uma trégua.
Um dia o pai deu-lhe um laranjal e ele aceitou. Um terreno quadrado, solarengo, abrigado. E as laranjas cresciam doces nos dias de sol e sumarentas depois da chuva. Mesmo no centro, uma laranjeira amarga. Mas era bela e o pai dizia, com esta tem cuidados redobrados, porque é única e se troçarem dela, defende-a. Se compreenderes a sua resistência à frutose, crescerás mais dez centímetros na escala da vida.
O pai falava assim, na escala da vida. Na escala da morte. Na escala dos homens. Era a sua dimensão, o cais onde o seu barco aportava. Victor aprendeu a tratar das laranjeiras, a podá-las, a limpar o terreno à sua volta. Depois deitava-se no chão a cabeça encostada ao tronco de uma delas, os olhos abertos em direção ao verde das folhas.
Outras vezes abria um livro e ficava horas a ler, costas com costas, as suas e as da árvore. Quando alcançava a página trinta e cinco, se o livro era pequeno ou a página cento e vinte e sete, se o livro era volumoso, Victor dava um salto na escala do tempo e entrava na história. Da primeira vez que isso lhe aconteceu ficou sem fala, a tremer e lá estava ele e a fada azul, um em frente do outro e ela a dizer, pede um desejo e ele calado, indesejado. Ficou apenas dez minutos e o livro cuspiu-o. Não contou a ninguém, mas imaginou que o cê do seu nome poderia ser a expressão de um benefício.
Nesse dia colheu as laranjas amargas da laranjeira mais bela, a que habitava o centro e pediu à mãe que o ensinasse a arte das compotas. Coisas de rapaz, pensou a mãe e jantaram muito tarde nessa noite, pão acabado de fazer no forno de lenha e doce de laranja amarga com requeijão.
Foi por esta altura que deixou de usar calções e ficou apaixonado pelas ilustrações dos livros, pela magia das imagens que o faziam saltar páginas e alcançar rapidamente a página trinta e cinco, mas isso era batota e não funcionava assim. Quando estava irritado entrava numa história de tempestades e medos, de poderes ocultos e estranhos, de seres terríficos e assustadores. Apaziguado, permanecia cavalo branco asas de luar e nunca mais foi cuspido de uma história. 
O cê do seu nome tornou-se uma necessidade premente, Oceano desapareceu num mar de vida e Juno era o rapaz de quem ele teria saudades um dia.
Passaram já muitos ciclos e estações, tantas as flores de laranjeira. Mas há um momento, em que longe do laranjal que o pai lhe deu e ele aceitou, Victor sente as costas sem o apoio de outras costas e chegado à página cento e vinte e sete, deseja do mais profundo da sua raiz de laranja amarga, entrar numa história bonita e viver lá para sempre.



I love you Maggie Taylor 
de mb 





28 comentários:

Unknown disse...

Como das anteriores histórias vi-me no meio do laranjal e senti o seu carinho. Afinal o Victor não estava sozinho. Pareceu-me sermos muitos.

Não houve tempo para me sentar, costas com costas, mas houve um tempo para retribuir carinhos a todas as árvores. Podar os ramos secos e alisar a terra tornando o pomar num espaço familiar.

Obrigado por me dar sonhos doces nestas manhãs frias a valer.

Unknown disse...

Manuela, me encanta el dibujo! He visitado la página de Maggie Taylor, me gusta mucho su trabajo.

Y todavía no he leído el cuento :) ahora lo leo.

Un abrazo

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


Costas com costas mas ... de frente!

Acridoce!!!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 11 de Fevereiro de 2012

Laços e Rendas de Nós disse...

Manuela

Lindo, lindo, lindo!

Acho que e repito sempre quando comento os seus textos.

Obrigada pelos belos momentos que me proporcionou. Obrigada pela sua escrita.

Beijo

Beatriz disse...

Acho fantásticos teus desenhos Manuela!!!

...E a dimensão de Victor, a partir de seu barco, faz toda a diferença e dá sentido à vida....

Um beijo
Bia

Unknown disse...

Victor, em que página das histórias com mar fundo, estás?

não te oiço, mas sei que estás, esse livro é muito volumoso, labirintico, tem a paixão dos sonhadores e perdemo-nos com a maior das facilidades, e depois, as capas são muito grossas, não deixam que os sons dessas histórias, desses mundos, se misturem com os sons de outros mundos, porque cada mundo tem as suas particularidades, os seus cês e porquês, por isso são únicos

Victor, não te oiço mas sei que estás, sinto a contacapa do livro em que te enfiaste, a dar de si, é o pulsar do teu coração, contra o título da capa do livro que [também] eu sou, bem mais magricela, porque não tenho assim tanto que contar, mas sou como quaquer um, tenho pricípio meio e fim e a minha história resume-se em apenas dois capítulos, com algumas páginas amargas, outra doces e sonhadoras...
se passares por mim, não faças batota, não saltes as páginas amargas, se não as leres, se não as viveres, nunca perceberás o verdadeiro sentido do capítulo final

Victor, eu estou aqui, na mesma prateleira, estou no meio, entre as histórias com mar ao fundo e o fabuloso livro de imagens de Maggie Taylor, gosto do lugar que me deram, sinto-me bastante amparado, talvez tenham pensado na fragilidade da minha capa, da magreza das minhas páginas, da história que conto

Victor, gostava tanto de saber, porque cheira sempre tão bem a flores de laranjeira nesta biblioteca, não havendo laranjal algum nas redondezas!?

Hanaé Pais disse...

Olho com um olhar calmo e absorto.
E leio a sua mão calma que fala de paz, da perfeição.
Vislumbro uma luz infinita, uma paz intocável.
E sem ânsias, relei-o as páginas quando são relidas, em simultâneo. Sem batota.
E permito dizer a mim própria que a sua escrita é uma jóia.
Como uma verdadeira relação de forças entre si e si.
"Se troçarem dela defende-a". "A escala dos homens".
Alternadamente...
"Encostar ao tronco da laranjeira ou de olhos abertos em direçãoao verde das folhas".
E na doce/amarga raiz da laranja, entrar numa história bonita e viver lá para sempre...
Sigo-a e observo-a. Sublimemente.

AC disse...

Manuela,
Podemos fazer da vida um mar de correrias sem nexo, mas também nos podemos sentar à sombra duma qualquer laranjeira e, aliados ao tempo, tentar perceber o seu respirar, o nosso respirar.
Encanta-me sempre!

Beijo :)

Kika disse...

Auf!

Victor Vapo Spray com flor de laranjeira! Gosto muito!

Auf!

Isa Lisboa disse...

Gostaria de ter conhecido o Victor e entrar numa história com ela, vê-la pelos olhos dele...

alegria de viver disse...

Querida amiga

Acho que estou com a tendência de me repetir, mas amiga só sei dizer a verdade, é belo e gratificante ler seus textos, fico sonhando junto.
Vamos combinar ficar debaixo de uma laranjeira lendo e sentindo o perfume das lindas flores, [estas são da minha história]é muito bom.
Viu amiga já estou sonhando novamente.

Obrigada, sua alma é luz.

Com muita alegria BJS.

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Minha amiga dos contos maravilhosos, Manuela,

Um dia, não distante, quero ter estes contos guardados, para reler sempre que me sinta desiludida com a vida ou simplesmente para que as mesmas me devolvam o sorriso que tenho agora no rosto.

A diferença não é defeito mas virtude, como no cê do Victor ou na laranjeira amarga (que faz a melhor compota).

Saio sempre daqui mais rica. Bem hajas.

Obrigada ainda por estas telas sublimes.

Beijo

Rafael Castellar das Neves disse...

Excelente sua escrita...gostei muito!!

[]s

Virgínia do Carmo disse...

Uma fusão perfeita da vida com a imaginação.
Uma fusão perfeita de sons e imagens.

Um beijnho, Manuela. Grata por poder lê-la.

Nilson Barcelli disse...

Mais um excelente conto.
És única na maneira de contar e no conteudo de cada história...
Encantas-me, por isso.
Beijo, querida amiga.

Silenciosamente ouvindo... disse...

Realmente é única a contar-nos
coisas da vida...CONTOS...mas é
uma mistura de ficção com realidade
que transpõe nas suas palavras sempre acompanhadas de um desenho.
É sempre motivo de ficar silenciosamente lendo e lendo...
Depois comentar é mais difícil...
Um grande beijinho
Irene

Mar Arável disse...

Belíssimo

Na verdade não existem laranjeiras amargas

Graça Pereira disse...

Senti o perfume das flores de laranjeira e compreendi a teimosia do Victor, firme, a querer conhecer os mistérios da vida, saltando de páginas, recuando outras e apoiando-se como uma bengala, no cê do seu nome...Tenho a certeza que, sem esquecer a raiz da sua laranja amarga, ele será o herói de uma história feliz!
Estou encantada com os teus desenhos e desejaria ser o Victor para apoiar as minhas costas na laranjeira mais perfumada deste laranjal.
Beijo
Graça

Anónimo disse...

Olá, Manuela!

Sou Vitor, ainda que sem C,e muito gostaria de ter trocado o meu lugar com o dele, encostado a essa laranjeira, viajar nesse mundo da fantasia, coisa que a mim nunca me aconteceu - talvez por ser mais pobrezinho no nome..., não sei.

Parabéns para tanta imaginação!

Um abraço.
Vitor

Insana disse...

Profundo...

bjs insanos da Insana

. intemporal . disse...

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. uma dádiva de ouro coberta pela inteligência que nos aprisiona em momentos cíclicos . como este .

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. associar a qualidade da escrita a um raciocínio que nos acorrenta e encadeia ensina.nos a amar a palavra . e dela e com ela construirmos a espiritualidade dos dias . tantos e todos . unos e inteiros .

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. íssimo . sempre feliz .

.

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mz disse...

Em toda a dimensão das nossas vidas, quantas vezes desejamos fazer muitas trocas pelo "quê" de "porquê"
Quermos saltar páginas, principalmente as que nos apoquentam no dia a dia...

Tudo faz parte da aprendizagem e do nosso crescimento, é o nosso "laranjal" plantado e cuidado por nós, ainda que outros contibuam.
E sobre a "a batota" :) não funciona... acho que apenas nos vai atrasar o enevitável.

Uma bela mensagem que nos ddeixa aqui neste conto doce/amargo e muito bem cuidado.

Bjo

Mariazita disse...

Manuela, não sei se alguma vez estiveste debaixo de um laranjal em flor... Eu já estive muitas vezes, e posso dizer-te : o perfume é inebriante!
Talvez isso ajudasse o Victor a "saltar as escalas".
Belíssimo conto!

Obrigada pelos parabéns à minha «CASA».

Beijinhs

ki.ti disse...

I love you too, Maggie Taylor!

Anónimo disse...

" (...)O cê do seu nome tornou-se uma necessidade premente, Oceano desapareceu num mar de vida e Juno era o rapaz de quem ele teria saudades um dia..." - só não acredito que o Victor pudesse ser "cuspido" de qualquer história, independentemente do tamanho do livro... nem por ter um "c" a mais no nome!...
Beijinho
Quicas

Hanaé Pais disse...

Victor foi "cuspido" da história, porque, não escreveu o "C" do seu nome. Estavamos em 2011 e ainda não existia o acordo ortográfico...

Silenciosamente ouvindo... disse...

Amiga aqui estive mais um pouco,
silenciosamente com as suas
palaavras, sua música, seus
desenhos.Tudo fantástico.
Beijo.Irene

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

gostei muito deste conto em particular, tambem eu me sentava de costas contra uma pedra (alta) também eu entrava na historia dos livros da biblioteca...

uma ternura de texto....

obrigada!