II - as mãos de Haru

Apagou o fogo da lareira, fechou as janelas e a porta, soltou o búfalo e partiram, o homem e o cão. Às costas, sustentado por cordas de sisal, o cesto de vime, um pão, um peixe, uma esteira, uma manta de lã. Junto ao peito, o pássaro pintado num tecido de seda pura. Caminhava ágil, porque leve é a seda e o coração de quem procura e procurando está certo de encontrar.
Não olhou para trás uma só vez, mas sabia as casas e os campos a diminuírem de tamanho, o fumo nas chaminés, o aceno dos vizinhos. Passou os arrozais e as plantações de soja, escolheu o caminho da direita e o atalho da esquerda e chegado ao cimo de um monte descansou. Talvez nevasse nessa noite, sentia-o pelo cheiro da terra e do ar. Preparou um abrigo para ele e para o cão, acendeu o lume e assou o peixe.
O céu tinha a limpidez de um azul escuro profundo e abismal e em intervalos regulares era atravessado por cadentes estrelas. O homem deslumbrado calava-se, acariciando a cabeça do cão.
Tão pouco eu sabia deste mundo, murmurou. E eis-me diante de tamanha beleza e eu apenas procuro quem me desenhe nas sedas um pássaro como tu, para que eu possa partilhar com os meus amigos os sonhos que me dás todos os dias da minha vida. E colocava a mão sobre o peito e o pássaro desdobrava-se em piados de assentimento.
Assim atravessou três cidades, duas cordilheiras e muitos arrozais e já todos falavam do homem que transportava um cesto de vime em busca de um pintor de pássaros de seda.
Foram muitas as falsas pistas que lhe deram, umas por escárnio e malquerer, outras por inocente acreditar. Mas nunca o homem tirou do peito o seu pássaro, porque sabia da inveja de alguns e da hipocrisia de muitos.
Uma noite chegaram a uma aldeia e tinha sede o homem e fome o cão e entre bambus e magnólias, viram luz numa janela e tal era o cansaço que traziam que adormeceu o homem nos degraus da entrada e o cão ladrou de medo e inquietação.

Haru era o nome do homem.
Tinha um pátio onde crescia uma velha cerejeira, uma casa habitada pela límpida luz da manhã, tintas, pincéis e uns dedos mágicos que davam vida a tudo o que pintasse. Se ele imaginasse uma rapariga com brincos e túnica encarnada, pegava num pincel e criava as pérolas, as orelhas, a boca, os olhos, a túnica encarnada. A rapariga ganharia movimento e sairia da tela se ele desejasse.
O pátio, a casa e a cerejeira eram rodeados por três muros baixos porque Haru acreditava na ineficácia dos portões de ferro e das muralhas que escondendo nos escondem, tornando-nos vulneráveis e presas fáceis da cobiça e do ódio. Não era preciso tocar o sino para entrar, nem fechar a porta para sair. Aquele pátio chamava-se das cerejeiras, mas restava apenas uma, porque velhas eram essas árvores e Haru com elas, na sabedoria da natureza efémera da vida e dos rebentos na primavera. Quando brotavam, as flores duravam apenas sete dias e depois morriam e a cada ano Haru estava atento ao primeiro botão, que seria flor, esplendor e logo memória. E para que assim permanecessem, pintava-as, rosa forte e pétalas delicadas. Depois dizia, fiquem! e espalhava as telas pela casa.
Quando o cão uivou lá fora Haru assustou-se e acorreu à porta que permanecia aberta e arrastou o homem adormecido até à sua cama, afagou o cão e deu-lhe uma tigela de arroz com frango e ao ver o cesto de vime e os panos de seda pensou, é ele, o homem que busca um pintor de sedas.
E esperou pacientemente que acordasse.
Haru não sabia do tecido de seda pura guardado junto ao peito, mas ali sentado na quietude da noite olhou as suas duas mãos e desejou ter o poder de fazer voar os pássaros.


a casa de Haru com pátio e flor de cerejeira de mb






22 comentários:

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


Aqui te falo do desenho
de seda pura
e tal tamanho


Belo como a história, continua!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 23 de Janeiro de 2012

Unknown disse...

Manuela

o Jaime disse que é para continuar, será?:)

seja como for, estes dois capítulos encheram-me a alma, mas não me importo que transborde, por isso, vou ser tão paciente quanto Haru...ok?:)

o desenho é uma preciosidade, é dos mais bonitos que publicou... parabéns, Manuela!

um beijo

nandinho

manuela baptista disse...

é para continuar, Walter

o dono do pássaro raro pintado num pano de seda pura, ainda não acordou

:)

Unknown disse...

La casa, el patio,¡ y ese árbol con la flor!
Belleza, quietud, arte. Muy hermoso.

Rogério G.V. Pereira disse...

Tinha eu ficado desolado com a minha escolha de ser o cesto de vime, objecto útil, mas secundário. Pensava... mas aqui, percebo que sendo por mim que o homem que busca o pintor de sedas é conhecido, criei ânimo... para além da minha utilidade, faço parte da sua identidade.

Também espero, com Haru, que ele acorde...

alegria de viver disse...

Querida amiga

Amei o desenho.
Dentro deste ser tem um coração do tamanho do Mundo.
Obrigada pela criatividade.

Linda semana BJS.

Graça Pereira disse...

Manela
Quem sonha caminha sempre atrás dos seus sonhos, sem se cansar...como fêz Haru, apesar das dificuldades que encontrou pelo caminho...
Sento-me num tapete, talvez persa, numa sala onde há cortinados com os teus belos desenhos e penso que és sherazade e que, por muitas noites (mil?...) lerei histórias tuas com a mesma emoção com que li a primeira...
Quem duvida que vais continuar? Ninguem!
Beijos.
Graça

. intemporal . disse...

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. se [ainda] há blogues . em que a palavra é soberana e rainha de todos os contos . este é um deles .

.

. tal.vez o único . arrisco.me .

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. aqui . do pouco que sabemos do mundo . é sempre tanto o que aprendemos . e não esbanjamos converseta gratuita para compensar a solidão de todas as noites brancas . de total abandono . que decidimos des.prezar . in.condicional.mente .

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. aqui . afastamos ir.remediavel.mente as falsas pistas . de escárnio e de mal.nos.quererem . porque sabemos da inveja de alguns [algumas] e da hipocrisia de outros tantos .

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. há tanto sabemos .

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. porém . nunca tiramos o pássaro do peito . no meu caso . de fogo . em arco aberto .

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. ______________________ . e voamos .

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. deixo.Lhe um beijo feliz . e um "até breve" . e.terna.mente amigo .

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. sempre e para sempre feliz .

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Kika disse...

Auf!

Haru, diz-me tu, quantos croquetes comes tu, duma só vez?

Auf!

Auf!

Anónimo disse...

Béu, béu!

O Haru não gosta de croquetes...

Béu, béu!

manuela baptista disse...

ah! ah! Fézada,

"korokke" em japonês

bolinhas de carne, ou de legumes, fritas!

bora emigrar?

Linda Simões disse...

Manuela,

O dom de nos fazer voar e voar e voar tu tens...

Eita !


Beijinhos

manuela baptista disse...

eita!!!

Beatriz disse...

Haru, que homem sábio....
Saber pintar os pássaros não é fácil! Sentir a alma que voa dentro da gente tampouco....

Um feliz dia Manuela!!!!!

Bj

Bia

www.biaviagemambiental.blogspot.com

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Percebi agora que Haru ainda sonha.
Deixemo-lo sonhar
E tão bom ler-te, amiga Manuela.

Obrigada

O desenho está um espanto.

Beijo

AC disse...

Histórias com a marca inconfundível da Manuela, em esboços de serenidade e harmonia..
Parece que é uma saga para continuar, ainda bem. Fico-lhe muito grato.

Beijo :)

Hanaé Pais disse...

Os seus textos oferecem-me uma Paz inefável. Continue porque me trás, uma imensa tranquilidade ao meu coração e um bem estar supremo, como o aroma dos Deuses de Confucio. Brilhante, Supremo.
Beijo com muito carinho as mãos de quem os escreve...

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Minha querida

Como sempre os teus textos são sublimes...sonhos pintados com todas as cores do arco-íris...palavras seda para quem te lê.


Um beijinho com carinho
Sonhadora

Nilson Barcelli disse...

Para além da excelente narrativa, admiro a tua criatividade.
E os desenhos que fazes também são excelentes.
Manuela, querida amiga, bom resto de domingo e boa semana.
Beijo.

Anónimo disse...

Vou esforçar-me por não fazer barulho, Manuela! Não quero acordar o dono do pássaro pintado no pano de seda, para poder continuar a desfrutar do prazer de seguir, atento, estes contos maravilhosos, tão bem acompanhados!
Beijinho do Quicas

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

criativo e bem escrito...

vou ler a continuação...

beij

mz disse...

Que suavidade tem a seda dos teus contos...

Que pintará haru?
A magia da flôr de cerejeira que caindo em todo o seu esplendor, assim como o guerreiro que
luta até morrer mesmo antes de envelhecer?

Vou ler o resto...


Até já.