A casa é térrea, todas as janelas viradas para o mar. Sólida, pintada de branco, fresca no tempo quente, quente no tempo da chuva, uma parreira sobre a porta de entrada que não é simultaneamente a de saída, porque quando entramos não saímos, mesmo se muito confusos ou entontecidos pela insónia. Quando a encontrei era pouco mais que uma ruína, eu também. O meu trilho era tão estreito, escuro e solitário que eu pensei que seria ali que eu gostaria de ficar, monte de ossos que já não procurava nada e a quem o nada atraía como uma vertigem encantatória.
No que tudo indicava ter sido a cozinha, permanecia quase intacto um enorme fogão a lenha e aquela presença insólita e inteira perturbou-me. Um desejo de refazer à sua volta o cenário que lhe seria familiar, o fogo, a panela, o assado no forno, o perfume do alecrim e da manjerona, as vozes, o tilintar dos garfos e das facas de serrilha.
O bom senso ditava-me cautela, mas o ouvido nunca foi o mais forte dos meus sentidos. A vista sim e o tacto. Sem perspectivas de emprego e uma conta bancária de fazer inveja a uma formiga anã, propus-me comprá-la perante um jovem e incrédulo proprietário que na melhor das hipóteses, demonstrou ter sentido de humor. Vendeu-ma por um preço simbólico, não a queria, mas desejava-a reconstruída. Eu disse, não lhe posso dar nada em troca, apenas entendo de plantas, não possuo bens para além de um herbário que é para mim uma riqueza. Será, respondeu. E estendendo-me a mão, acrescentou: o meu nome é Santiago e o meu pai também nunca possuiu nada para além das estrelas. Eu na meia-idade, ele no começo da vida.
Foi assim que dei uma volta à sorte e ao fogão a lenha. O ruído da cidade, arrumei-o no canto mais denso da minha cabeça, os mercados internacionais perderam a razão de ser, porque como já disse, não oiço bem e a televisão é um aparelho que não cabe nas portas de entrada. Levanto-me cedo todos os dias, abro as portadas de madeira e deixo entrar o silêncio da manhã. Na aldeia compro pão fresco, queijo, sal, azeite e peixe acabado de pescar. O mel trazem-mo à porta, eu retribuo com salsa e batatas da horta e os meus ossos deixaram de fazer aquele ruído de coisa quebrada e inútil.
Nos dias frescos, calço as botas de subir os montes e pisar os campos e dirijo-me para norte, o lado oposto ao mar. Continuo a minha busca de plantas e ervas, recoletor de espécimes, comparo, registo, adiciono informação. Quem imagina um herbário um livro morto, engana-se. É da análise comparativa das espécies e dos períodos históricos que fundamento o exame das variações que ocorreram no tempo. Desta forma recuperamos vegetação quase extinta e descobrimos outra, resistente às pragas. A solidão e o medo são as maiores pragas que encontrei, mas aqui, neste lugar, crise é aquilo que me fez mudar.
Santiago vem muitas vezes conversar comigo, faz-me lembrar os jovens que foram meus alunos, a sua inteligência interrogativa, a sua fé nos homens, a sua generosidade. Graças à sua força e ajuda, atrevi-me a iniciar online uma comunidade de biólogos e de professores que estudam as plantas em herbário, trocando experiências e trabalhos, mas ao mesmo tempo aberta às linguagens e às pessoas comuns.
É nas traseiras da casa, do lado sem janelas nem portas, refrigerado por um sistema natural, que guardo os imensos herbários que fui criando e assim cuidados poderão durar centenas de anos, muitos mais do que eu.
Sou um caule frágil, cruzamento de outros caules, variação no tempo. Lá dentro no fogão, ferve a sopa de beldroegas a que adicionarei um fio de azeite e queijo de cabra meio curado quando a hora chegar. Aqui fora, bebo um sumo de melancia, fresco, vermelho como o sangue e a seiva a circular.
do encantatório nada às variações de um tempo
herbarium desenhos a carvão de mb
33 comentários:
As crises são sempre pontos de mudanças... e essa velha casa, teve um novo início assim como quem nela habita. Posso ir para aí? Quero uma casa em que a televisão não caiba pela porta, onde não chegue o ruído da cidade e tenha por companhia as plantas dum herbário... :) Lindos esses desenhos a carvão manuela. Beijo e bom fim-de-semana!
Uma casa que é um portal de entrada apenas para alguns, para aqueles que procuram o sentido das coisas...
Beijo :)
Também trocaria o ruído pelo silêncio, o conforto do fogão a gás pelo de lenha, a certeza do incerto pela paz... de espírito.
Beijo
MANUELA BAPTISTA
Eu, cá para mim, este não é senão o início de mais uma história a desenvolver-se por capítulos e capítulos recheada de caules e de seiva ...!
Será!?
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 10 de Setembro de 2011
voi che sapete ~~~~~~~~
Não percebo nada de botânica, mas os teus contos são plantas raras que colecciono.
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. quando a memória descritiva é também sangue . e seiva discretiva .
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. quando a memória visa a imprescindível mudança . no impulso da palavra promotora da continuidade da vida e do espécime da espécie .
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. e quando . a memória se des.prende do dinheiro cunhado e a troca é o mote da difusão humana .
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. podemos dizer . que se escreveu um conto . de.dentro . talvez na primeira pessoa . em prol da Pessoa . em primeir.íssima instância .
. desde a infância .
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. bel. _________________ .íssimo .
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. e deixo um beijo . terno e feliz .
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100 palavras que possam expressar toda a beleza que há neste saber responder às "tempestades" que nos atravessam por dentro nos dias que correm...
é uma belíssima e inteligente metáfora - assim entendo este conto!
e é tanto o silêncio que aprendo nesta casa sua, Manuela!
um beijo
Walter
Ai,
Que a minha saudade aumenta a cada conto...
Abraço-te, querida.
Desde este lado do mar !
São dois abraços apertados :-))
Linda Simões
A aguardar o seguimento do conto, que já me parece lindo!
Beijinho,
Ana Martins
Bom dia
Perdi-me no meio de tantas ervas, cheiros e segredos.
Gostei tanto que me parece ter entrado nesse recanto da casa onde o fogão de lenha é a chave da vida de todos os que se vão reencontrando cada dia.
Uma reconstrução aliada ao bom gosto e à arte de saber viver.
Beijinhos cá de casa.
Talento para a narrativa não te falta. E o teu fôlego dá para o romance.
Mais um excelente conto, gostei muito.
Manuela, desejo-te uma boa semana.
Beijos.
"Santiago vem muitas vezes conversar comigo, faz-me lembrar os jovens que foram meus alunos, a sua inteligência interrogativa, a sua fé nos homens, a sua generosidade. Graças à sua força e ajuda, atrevi-me.."
numa fé assim, porque também interrogativa, virei sempre aqui..
Que o seja, o princípio do mais que virá..beijinho grande de saudade, porque o tempo, esse, preenchido por tantos momentos, é vida em nós..(:
dulce
Eu gostava de ser o homem deste conto, de viver apenas com a natureza dos dias e colher plantas, tratar delas e imortalizá-las em folhas finas de papel
beijinhos
Filomena
porque não tenho outra forma de falar com a Dulce
e com a Filomena,
eu também gostava de ser o homem deste conto
e pela fé, que me continua a interrogar
beijinhos
Querida amiga
Estou totalmente impregnada de cheiros, contruí uma história cheia de lembranças da qual ainda não sei como sair, talvez porque espero a próxima, e assim continuar sentindo todo o amor contido nesta fortaleza.
Obrigada por mais esta linda mensagem.
Com muito carinho BJS.
Ah, como eu queria uma casa assim....aberta para o mar e cheia de vida! Uma vez trabalhei como bióloga com um grupo de pesquisadores em alto mar, e nossa casa ficava no meio de uma ilha pequena, cercada pelo mar da Bahia. Ah que saudades de lá me dá....
Um beijo Manuela
Bia
www.biaviagemambiental.blogspot.com
Belíssimo conto!
Bjs dos Alpes
Manuela, começo pelos desenhos soberbos.
Sou fã da cor sépia e fazia muitos negativos. Adorei mesmo.
O conto vai enchendo a vontade de entregar a alma ao vento, o corpo ao espaço e onde fosse possível ouvir a relva a crescer.
Beijinho
Ná
De seiva sabem os homens, ervas, plantas e árvores... embora os primeiros, às vezes, se esqueçam disso.
Em cada trabalho seu, Manuela, a confirmação do seu talento.
Eu, só sei da enorme gratidão que sinto por esta sua partilha.
Um beijinho
Minha querida
Como sempre envolvo-me no perfuma de cada palavra...de cada cheiro...de cada recordação.
Fico apenas sentindo o silêncio dessa casa...de tantas casas de que somos feitas.
Deixo um beijinho e agradeço o carinho de sempre.
Rosa
Segui caminhos e aqui me aconcheguei pelo tempo que me levou este conto e não só.
Quem possui uma estrela só que seja, é rei.
Ana Sofia
Vim reler estas tuas palavras, sua forma de descrever é sempre ímpar...
Abraços
Manela
um texto que é uma delícia ler.
tens um inegavel talento para a narrativa.
obrigada!
um beij
Auf!
Ganda litania lá no blogue do... ai, agora cãosci-me...
Auuuuuuuuuuuuuuu!!!
Fézadinha,
podengo Alentejano de cepa,
tens faro de cãoperdigueiro
obrigada pela cãopista!
Mééé!
Seria mais justo se dissesses quem te ensinou acerca das ervas...
Inclusivé daquelas que tanto te faziam rir entre outras coisas que agora não posso dizer!
Ai Maltese, Maltese, tão injustiçada és!
Mééé!
Manuela, por momentos, viajei nos alinhavos de nisa, nas colchas de castelo branco, o herbanário de mim menina, a botânica uma ciência ainda por descobrir, as folhas, as nervuras e o lápis, a reprodução que tentava, grosseira, claro, mas tão igual aos meus olhos...
há um mundo em cada texto seu a que retorno, copio e imprimo e levo comigo ao rio onde o leio como me merece
um beijo e o meu carinho
gratidão, Manuela
bem-haja
Mel
a todos,
um abraço!
Nem para o céu nem para o inferno... escritores, quando morrem, vão para a eternidade.
Maravilhosamente lindo...medo e solidão...essas sim, são as coisas que nos tiram o chão, mas basta umas ervas frescas, um herbário ou uma pequena horta e nossa vida fica, assim, plena de companhia, adoro te ler! beijos,
As expectativas são elevadas! Adoro a tua narrativa, sobretudo o modo como tão intensamente expressas as emoções... aguardo ansioso novo texto!
Abraço Manuela!
AL
Esta é uma história que começo a ler em silêncio e em que cada linha me disse tanto de um tempo pleno de sentido.
Avanço para a página seguinte consciente de que senti cada momento da conquista de uma nova vida neste Herbarium e que cada linha me disse da paz de estar vivo em comunhão com a natureza.
Beijos, Manuela
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