No tempo em que eu media a distância entre os cais de chegada e os de partida, afectos partilhados em milhas submarinas num mar espesso e alto, sonhava acordado com a vida das tartarugas.
Sei que existem centenas de ilhas assim denominadas, das tartarugas, mas esta tinha para mim o maior dos sinais pois era aquela que eu habitava.
A casa construída em pesada madeira, de portas e janelas sempre abertas numa circulação nem sempre pacífica de vento, mosquitos e lacraus, não possuía energia eléctrica, tudo funcionava com um velho e cansado gerador que empestava o ar com um antipático cheiro a querosene. Calava-se ao anoitecer e nesse instante o silêncio e o escuro eram tão densos que podíamos segurar as estrelas que nos caíam na testa e nos olhos.
Quando nadávamos eram muitas as vezes que nos víamos face a face com estes seres pacíficos, amistosos e curiosos, capazes de nos seguirem até à beirinha das rochas ou da areia. Era aí que desovavam e quando chegava a hora de os filhotes nascerem, faziam-no aos berros, quase dentro e já fora da casca e o som atravessava a areia e a água.
Era de manhã muito cedo com uma caneca de café bem quente na mão, que me sentava cá fora no alpendre, um bloco e um punhado de lápis e desenhava-as, reinventando-as no seu vaguear, o corpo achatado, a carapaça verde-azeitona e preta, as possantes barbatanas e imaginava-me a entender-lhes a linguagem dos ruídos e as vocalizações, sete tipos diferentes, numa tradução inexacta e lírica do que poderiam falar.
Estava zangada.
O enjoo que ainda sente da sua longa e oscilante viagem ecoa nas paredes do tanque, pequeno, limitado, uma coisa de nada comparado com o oceano, a sua casa.
Os companheiros de cativeiro intimidam-na e os humanos que se aproximam falam-lhe mansamente mas insistem para que coma as couves e os brócolos que ela não deseja tragar. Quer as ervas marinhas, quer estender as grandes barbatanas dianteiras, quer ondear a sua enorme carapaça em forma de lágrima e nadar rumo a outro lugar.
Deram-lhe um nome que ela não entende e os seus olhos têm as perguntas do princípio do mundo.
Mas há sempre uma hora em que todos se vão embora e apesar das sombras da noite, é nesse instante que os seres mais sensíveis esticam a cabeça para fora do medo e escutam os sons da terra e do mar.
A mulher vestida de negro desliza pela varanda, inspira o odor dos vasos regados, do alecrim, da manjerona, todas as cidades se assemelham quando doce é o mês de Junho. Lança a voz num canto narrado de contos, fala dos barcos da chuva loucura estranha forma tem esta vida.
Do outro lado dos oceanos, o homem descobre o oitavo dos sons que eram apenas sete, não fosse a barreira da água e da areia porque em cativeiro ninguém sabe contar.
A lua projecta no tanque uma luz plasmada e ela aquieta-se à flor da água.
É preciso fazer silêncio para escutar uma tartaruga.
este é um narrar efabulado numa encruzilhada de vidas como se reconta aqui
Mariza a tartaruga e Mariza a fadista, desenhos de mb
36 comentários:
Olá, Manuela
As tartarugas são uns animais extremamente simpáticos que, em mim, despertam uma enorme ternura.
Recordo-me sempre de um docomentário que vi há muitos anos, que mostrava a postura dos ovos das tartarugas, e o esforço que faziam era tão grande que lhes escorriam lágrimas dos olhos.
Ainda hoje, passados tantos anos, mantenho viva essa imagem.
Gostei imenso desta postagem.
Bom fim de semana. Beijinhos
MANUELA BAPTISTA
Para escutar uma tartaruga é preciso ouvir todas as estórias, Histórias com Mar ao Fundo!
E ao ouvir-se o mar ...!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 3 de Junho de 2011
Há sempre uma hora em que os seres sensíveis esticam a cabeça para fora do medo e escutam os sons da terra e do mar...nesta estranha forma de vida... Duas marizas que entrelaçaste nas notas musicais, e nas vidas paralelas e nos relembraste o silêncio que é preciso para ouvir o fado, e para ouvir uma tartaruga... :) Tão bonita esta história e os quadros, tão bonitos, especialmente o da mariza/fadista, está mesmo especial! A minha alma curva-se perante o teu talento. :) Beijinho meu
Auf!
Auf!
Hoje sinto-me o cão mais baralhado do mundo! Entro aqui e dou de focinho com o Rasteirinho a imitar uma tartaruga dançante ou esvoançante, sei lá!
Depois vejo a Mariza com "z" que só poderá ser então a Zariza, a fadista!
E para o cúmulo dos cúmulos cliko ali onde diz "Paulo" a azul e vou dar a um sítio e o que é que eu encontro?
Encontro-te novamente a ti! A ti e à tua lenga lenga! Que praga!
Auf!
Auf!
Ó minha praga (en)Fézada
a Mariza, escreve o seu, dela, nome com um Z!
a tartaruga, não escreve
nada
eu, ando por aí
mas aceito reclamações e tu aceitas tudo: croquetes, fiambre, bolo, pão com manteiga, cachupa...
oh Manuela, todos os teus contos transpiram uma ternura tamanha.
... vi-me na ilha sem energia eléctrica e senti o cheiro do quirosene...
mergulhei nesse mar de tartaruguinhas até ser manhã para não perder uma nota daquele cantar gritante na hora do parto...
do lado de cá da barricada do tanque senti, de pele arrepiada e alma encolhida, que muito mais que fazer o reconhecimento aos cantos da nova casa, Mariza procura a saída para a liberdade, o seu oceano... para esbracejar, e quanto ar não lhe faltaria para poder respirar...
senti-me a tartaruga Mariza na minha "precisão" do silêncio..., por vezes.
que fábula maravilhosa.
sempre saio a sorrir e de olhar alagado.
é contagiante essa tua ternura.
beijinho, Manuela.
Desenhado este silêncio,
A negra tinta com que se pinta,
A voz que se abre livre
Na garganta do mar...
Mar de (Mar)izas - errante fado.
O sal à flor da pele sussurra:
Mágoas, amores, luz e sombras,
Casa que espera - ninho d'água,
Com telhado de luar,
Para navegar o destino.
Manuela,
Um beijo de parabéns, pelo seu conto e pelos desenhos lindos...
e boa sorte à verde Mariza das barbatanas, na esperança de um dia poder voltar à sua casa com telhado de luar...
Walter
Vi há 2 ou 3 horas uma reportagem feita em Cabo Verde, onde as tartarugas que dão à praia feridas são tratadas e depois devolvidas ao mar.
Mas nem todos as devolvem...
O teu conto é magnífico. Gostei imenso.
Querida amiga Manuela, bom fim de semana.
Beijos.
Querida amiga
Seus desenhos estão perfeitos, lindos. Conheci a Mariza, encontrei com ela por acaso na porta do hotel Copacabana palace, magrinha, muito simpatica.
Mais uma vez estou encantada, belo conto.
Bom fim de semana cheio de alegrias.
Com muito carinho BJS.
Gostei muito deste como dos anteriores. A beleza das metáforas.
O caminhar lento entre a partida e a chegada.
O esticar do pescoço para fora.
Será que um dia entenderemos vidas presentes, passadas no sonho dos dias.
Muito bom Manuela.
.
.
. "podíamos segurar as estrelas que nos caíam na testa e nos olhos." .
.
. tal como podemos escutar uma tartaruga .
.
. e assim nos rodearmos do mundo e no mundo .
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. porque a terra . essa . a.penas nos hospeda e somos nós que teimamos na permanência da permanência breve . tantas vezes sem casa .
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. en.quanto o poema e.terniza este tão breve respirar .
.
. íssimo .
.
.
. sempre . feliz . e no dia de hoje também especial .
.
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... afinal não cumpri o prometido para ontem, é que... desatinei :((!
... acabei por... ir dormir para serenar...!
mas todos os dias dias são dias para dizer: bom dia Manuela, adoro as tuas tartarugas e gosto muito de ti também!
beijinho, num sorriso amigo.
L
I
N
D
O
!
°º♫✿
°º✿
º° ✿✿♥ ♫° ·.
Brasil
Pois é regressei...E aqui estou no
seu blogue e fico impotente no reagir perante a riqueza de conteúdo e imagens. Obrigada pela
excelente qualidade do seu blogue
e aqui vir silenciosamente é muito
bom e absorver o que escreve, o que
pinta.
Um beijinho
Irene
Manuela adorei sua história. Vou a partir de agora ouvir as tartarugas.bjs
Brilhantes, perfeitas, as suas imagens poéticas, amiga. Sob o encantamento de suas letras é possível, sim, escutar uma tartaruga.
Bjs, querida. Uma boa semana. E inté!
Estou em falta, desculpa amiga Manuela!
Apetece-me dizer "aquela frase batida" "eu contigo, eu consigo" tudo. Até ouvir as baleias.
Ler o que escreves é um prazer imenso.
Hoje gostei muitíssimo dos desenhos.
Volto para reler este e o ler o anterior.
Beijo doce
Ná
eu gosto do "mar ao fundo", talvez porque o mar é tão profundo, podemos mergulhar nele e respirar dele e dentro dele, como peixes.
também gosto deste mar aqui, onde o que começa por nos aquietar é "humility".
mas não é por acaso que aqui chegamos e sim porque, pelos caminhos que percorremos (com aparente ligeireza)nos deixamos seduzir por quem consegue olhar as "coisas" apenas com os olhos do coração.
e isso é tão raro quanto irresistível.
obrigada Manuela.
abraço-te.
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. [.________2________0________.] .
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. vin.te ver :)))))))))))))))))) .
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. e celebrar esta amizade séria . pura e genuína que ninguém conseguirá beliscar .
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. porquê? porque sim .
.
. íssimo . íssimo . íssimo .
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.
. paulo .
.
.
Manuela,
Fiquei a saber por si que tinha aqui tão perto uma "Mariza", nome ridículo para tartaruga, enjaulada...
Apesar de perto, nunca fui ao SeaLife, é um recinto relativamente recente por onde passo às vezes, na orla marítima, mas que curiosamente ainda não me despertou interesse.
Talvez um dia destes vá visitar a Mariza e lhe fale do seu conto e do silêncio que aqui nos ensina para a ouvir...depois mando-lhe notícias dela.
Se não fosse uma tartaruga e precisasse de água para viver, eu mudava-a para o Parque Biológico de Gaia, onde os animais vivem no seu habitat natural e que é um conceito premiado internacionalmente, muito interessante e superior em beleza e sensibilidade a qualquer Jardim Zológico do mundo, para quem quiser perder-se por quilómetros de trilhos e observar a vida natural, vegetal, zoológica, incluindo animais de outros habitats, mas que ali encontraram um micro-clima ideal, bem como actividades quase extintas, desde moinhos a funcionar e casas de lavoura com os seus animais domésticos e todas as actividades subjacentes. Esquilos à solta, zonas de coelhos bravos, hectares de terrenos deslumbrantes, tanto que já não me lembro.
Nessas condições deveriam estar todos os animais, há outras em que me parece que mais que a apregoada salvação e tratamento, existe sim a mira do lucro e da exploração, através da notícia mediática.
Adorei passar por aqui.
Volto breve.
Beijos
Branca
Branca
a cara zangada da tartaruga fala por si ou seja, por ela!
para mim, todos os nomes dados a qualquer animal, podem ser ridículos fora de um contexto afectivo
e o lugar de todos eles é, e deveria sempre ser, o seu habitat natural
onde também continuam a ser vítimas das lixeiras em que se transformaram os oceanos, onde as tartarugas morrem às dezenas, sufocadas pelos sacos de plástico que deitamos fora
ignoro as condições do sea life, não sei se a tartaruga será alguma vez devolvida à sua casa no mar
mas é exactamente por tudo isto, que eu considerei esta notícia uma boa notícia, não no sentido de bondade, felicidade, mas boa, porque nos faz pensar
desde a minha infância que eu tenho nas minhas narinas, o cheirete do fosso dos ursos do Zoo de Lisboa! está melhor? estará...
por isso, esta é uma história paralela
num paralelo ao Equador, onde as tartarugas são livres,
aprisionada, zangada e só
e o fado, destino, o silêncio que é necessário para entender todos os seres e a canção que consola quem está mortalmente assustada
não farei aqui uma cruzada "libertem a Mariza!", não sou ruidosa, não faço a menor ideia se a Mariza fadista adoptou a tartaruga,nem é isso que me interessa
mas se alguma coisa abanar, terá valido a pena
um beijo
manuela
É isso mesmo Manuela, eu sei muito bem qual o sentido da sua história e qual a sua sensibilidade, por isso fiz coro e realmente a primeira ideia que me surgiu foi devolver a Mariza ao mar, vou mesmo vê-la e inteirar-me se esse é um objectivo futuro do SeaLife.
Segui o link que deixou para a notícia do jornal, aquela que o Paulinho lhe (nos) deixou de forma oportuna e pertinente, sabendo como faria dela uma bonita história de reflexão e alerta.
Parabéns aos dois pela ideia e pelo desenvolvimento da mesma.
Beijinhos
Branca
Hoje sim, li tudo. Tinha que abrir o link, amiga Manuela.
A Mariza tartaruga agora tem por companhia tubarões, raias e outras espécies marinhas num tanque "grande" ... mas ao mar não volta mais.
Protecção de espécies em vias de extinção??? será uma boa razão???
Pobre tartaruga-verde que jamais virá à costa depositar os seus ovos!
Beijinho
Ná
será, Ná
uma boa causa!
o regresso ao lugar onde fomos felizes
um beijo
manuela
Manuela
Há "desenhos" assim, capazes de reescrever a vida, de algum modo - quiçá "paralelo" - fingir a ressurreição, a vitória! Afinal, é também de uma vitória que se trata, apesar de tudo!
Mas a "Mariza" continua com a sua "carapaça em forma de lágrima"!...
Beijinho e... obrigado!
Manela
Gosto das tartarugas desde sempre...do tempo em que me espantava como é que uma tartaruga conseguiu vencer uma lebre ladina e veloz! Pronto! Fiquei fã! De um das minhas viajens trouxe uma tartaruga minúscula feita de conchinhas e, para cúmulo, com uns pequenos óculos encavalitados no nariz...pû-la junto ao Atlas para ela navegar sempre que lhe desse vontade! Vou chamar-lhe Marisa e talvez ponha um fado da outra Mariza e, no silêncio, hão-de entenderem-se porque o fado das duas é sempre triste!
Belissimos desenhos que encantam!
Beijo
Graça
Mais uma bela viagem
de cabeça levantada
As imagens são lindas. Adoro tartarugas. Com certeza temos que fazer silêncio para escutar uma tartaruga. Adorei! Um abraço!
Gosto de escutar os oceanos e as tartarugas,
e tudo o que me fale da vida e do silêncio,
como a Mariza o faz....
e a Manuela também!!
Um beijinho
Olá Manuela,
Sempre teces prosas/poéticas encantatórias, onde apetece estar e permanecer!
Está aqui bem perto a tartaruga inspiradora, mas eu ainda não a vi, confesso que o sealife, ficou aquém das minhas expectativas...e seres presos, sejam eles quais forem, mete-me bastante impressão!
Beijos,
Manuela
.
.
. un bacio qui .
.
. :))) .
.
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e é mesmo qui
porque ainda está a piscar, como uma estrela!!
olá, Paulo!
um beijo
manuela
mais um texto bem "desenhado" que gostei muito de ler.
beij
Minha amiga, como já li e comentei, desejo-te "apenas" um bom fim de semana.
Beijos.
obrigada a todos!
um beijo
manuela
Ah, de que forma grada eu viajo por aqui!
Beijo :)
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