II - noite


Seria uma loucura o que estava a fazer, mas quantas não tinha já cometido no fio de uma linha que o sustentava, de um lado o rio do outro o mar, escolher escolhemos sempre e o risco é aquilo que desenhamos no chão.
Parou o carro no sopé do monte e começou a subir em passadas largas. Sem lua, o céu cerrava-se quebrado o canto das cigarras e um restolhar de bicho. Foi um pulo, de lobo seria se não fosse homem.
Empurrou a porta com toda a força acreditando que àquela hora não estaria aberta, na atitude pueril de um desejo intenso e neste caso, ruidoso.
E esvoaçaram morcegos assustados, mochos não se viam.
Pelos vitrais a luz derramava-se fraca, cor de tijolo, gémea da escuridão nocturna, cheirava a cera, a que acariciava os bancos corridos de madeira, dando-lhes corpo, brilho, alma e perfume, da outra não, das velas das promessas, das mãos pequeninas, pés, cabeças, coração. Deu sete passos e ficou ali parado na nave central. À direita trespassado de setas, o mártir S. Sebastião de quem tinha tanto medo quando os seus pés ainda não chegavam ao chão e ele sentado incapaz de desviar os olhos daquele sofrimento, a mão da mãe na sua mão e ela dizia “filho?” e ele acordava para o sinal da cruz e para os risos escondidos dos irmãos que troçavam das senhoras que vestiam os vestidos de passear domingos e o apertavam contra o peito, sufocando-o de beijos e alfazema.
À esquerda, uma imagem de Nossa Senhora. Das Graças, das Dores, da Consolação, da Conceição, de Fátima, da Boa Nova, da Boa Hora, dos Aflitos, dos Navegadores, do Bom Sucesso. A mãe dizia “filho” e era dela que ele gostava.
E sentou-se, como se sentava, a simultaneidade do tempo, a complementaridade. Disse “mãe…”, colocou os cotovelos nos joelhos e escondeu o rosto com as mãos. Ficou assim e dobrado desdobrou-se.
Do bolso das calças caíram-lhe as chaves, do carro, da casa, da arrecadação, do correio, do amigo a quem prometia regar as plantas e não regava e da casa de cá, para lá do monte e do rio.
Foi então que se lembrou do sino. Era de bronze e possuía o timbre magnífico das ondas sinusoidais puras. Deu um salto, correu para a porta das escadas em caracol que conduziam à torre, talvez até já não existisse destruído pela incúria ou pelo abandono, rodou a maçaneta, nada! Estava fechada. “Ridículo! As portadas da igreja estão abertas e esta portinhola, trancada…”. Lembrou-se das chaves no bolso, alguma serviria, da casa, do amigo, nem que fosse do cão. Serviu. Galgou os degraus, dois a dois, bateu com a cabeça numa trave e o sino ali estava, intacto e perfeito.
Puxou a corda, fê-lo balançar e lançou-se com ele. Vibrou, percutiu, ecoou na noite o sino, espanta pássaros nocturnos, espanta corvos e agoiros. O tempo parou, continuando a voar.
Foi este o desígnio que encontrou para dar a entender que já tinha chegado.
Depois, sem a mínima pressa iniciou a descida.
O brilho dos pirilampos era um manto aveludado de luz.


esta é a página segunda em que se experimenta o tempo como um simples e complexo ressoar




27 comentários:

Rogério G.V. Pereira disse...

Veio do já não se usa para onde já se não vê. Veio sem saber porquê, mas chegou a tempo. Chegou a tempo de o ouvir dizer “mãe…” e colocar os cotovelos nos joelhos, escondendo o rosto com as mãos. Chegou a tempo de lhe apanhar as chaves caídas do bolso das calças.
Não fora chegar a tempo, como abrir-se a porta de acesso ao sino? Como ve-lo, ouvi-lo, vibrante, ecoando na noite? Vinha na minha direcção, sem a mínima pressa depois da descida.
O brilho dos pirilampos era um manto aveludado de luz, único agradecimento ao facto de eu ter ído, partindo do já não se usa para este local onde já se não vê. Vá-se lá saber porquê?

(brincadeira à parte, os textos seus são lindos quadros de surreal)

Graça Pereira disse...

Manela
Esta é uma história que poderia contar o meu "regresso"... Era já noite. Sem horas. O rio, já não me dava "sinais"...antes esboçava uma trança de saudade! Atravessei a avenida e, do outro lado, era já passado! Subi as escadas gastas pelo tempo, pelas vidas e pelo vazio!
Foi fácil entrar...a luz de um lampião entrava pelo vitral partido iluminando o NADA..Subsistia apenas o eco da Palavra, como uma sílaba do vento e a frescura da primavera.
A escada em caracol, de madeira de umbila que dava para o côro,
gemeu com o meu peso e talvez com a minha vida toda...
Sentei-me no chão e, como antigamente, meti a cabeça entre as colunas do gradeamento, tambem em madeira, esperando que tudo voltasse...Senti que uma mão me puxava, enquanto dizia:
-Gracinha, quase que caías lá em baixo!
-Eu só queria ver...
No silêncio das lágrimas reparei que já não havia sinos...Como avisar que já tinha chegado?
Nos suspiros dos sonhos, apenas Ele continuava...
Atravessei de novo a avenida e entendi que não se pode voltar ao passado mas que alguem, com uma alma muito grande, advinhou como seria o meu regresso...
Comovidamente, Manela, Obrigada!
Beijo
Graça

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


Better and better, also my reading ...

Let's wait and see!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 27 de Junho de 2011

Branca disse...

Manuela,

Esta é uma história que adivinho num crescente de emoção, espelho dos tempos mais longínquos de cada um de nós, de tempos que já não existem e tão bem grava a letras de "ouro".

Como diz um amigo nosso no capítulo I, esta pode ser muito bem a escrita de um romance. Quem sabe esta divisão é um treino para capítulos maiores e grandes histórias de vida?!.

Parabéns
Beijinhos
Branca

Eva Gonçalves disse...

I've got to admit it's getting better... it's a little better, all the time, :))I mean it was always excelent... :) fantástica a capacidade que tens de nos transportar e também a nós, fazer diminuir as mãos, as pernas, os pés, com que galgamos sofregamente os degraus até ao sino e somos também pêndulos esvoaçantes, anunciando a viragem da página, com expectativa :) Go on!!! :))And then what happens when he arrives???? XX

ju rigoni disse...

Fazer vibrar "o sino que espanta pássaros nocturnos, espanta corvos e agoiros". Se a hora é de chegar que o tempo passe sem passar...

Bjs, querida. Uma boa semana. Inté!

antonio ganhão disse...

Ui. Esta escrita promete.

Gostei da descrição pelas ausências, pulo de lobo se não fosse homem, mochos não se viam.

Num mundo vazio de espiritualidade como uma igreja abandonada, o som de um sino... crescemos a partir do chão que fomos.

Mariazita disse...

Olá, Manuela
Como esta é a parte segunda... fui ler a parte primeira:), que não tinha lido.
Cada vez que te leio confirmo a impressão primeira, da primeira vez que aqui vim (nem eu sei já quando - como diria Guerra Junqueiro):
Ler-te é um enlevo para a alma!
Não vale a pena dizer mais nada.

Um semana cheia de Luz. Beijinhos

António Gallobar - Ensaios Poéticos disse...

Excelente texto, que nos deixa quase suspensos esperando

Muitos parabens
Beijinho

Unknown disse...

espantada que foi a noite, em duas se quebrou; a de ontem, tem um sino que adormece um menino; a de hoje, tem um homem que o acordou!

este homem comove-me!

deixemo-lo então, prosseguir a sua viagem... tantos são os sinos ainda por acordar!

Manuela, prossiga sff...!

um beijo

Walter

ps: e comoveu-me a Graça!

Graça Pires disse...

Quando o tempo pára continuando a voar é porque há na lembrança uma planície imensa, onde através da infância se regressa à casa que acoita todas as memórias...
Um texto muito Belo, Manuela.
Beijo grande.

António R. disse...

As suas histórias são cada vez mais surpreendentes e difíceis de comentar.
À noite tudo é possível, até dizer a palavra " mãe..." quando o tempo pára numa igreja despida de gente
Um abraço.

Kika disse...

Auf!

Auf!

Auf!

Hás-de dizer-me que graça terá o "brilho dos pirilampos"...

Temos a EDP - a energia que nos dá vida!

Para que queremos os pirilampos?

Viva a nossa energia!

Sabias que os vaga-lumes ou pirilampos são insectos coleópteros (pois voam sempre de helicóptero) das famílias Elateridae, Fengodidae ou Lampyridae, notórios pelas suas emissões luminosas (para mim puns gaseificados à pala da EDP) e que as larvas alimentam-se principalmente de vegetais e de outros insectos menores?

A espécie mais comum no Brasil é a Lampyris noctiluca, na qual apenas os machos são alados.

E cãolado fico eu! E mais não te digo pois tu és cusca até à quinta casa e amanhã já é sexta!

Auf!

Auf!

manuela baptista disse...

ó meu lampyris noctiluca gaseificado!

os pirilampos estão em vias de extinção

tal como as energias não-renováveis

das outras não falo, por enquanto...

Glorinha L de Lion disse...

Quem dera todos os retornos tivessem sinos a repicar! Às vezes voltamos e nem nos damos conta de que nem saímos do lugar...quanto aos ipês cor de rosa, aqui está um link para que os veja, há tb os roxos e os amarelos...todos, igualmente lindos....mais uma vez viajei sem sair do lugar, beijos Manuela,
http://www.jardimdeflores.com.br/ERVAS/A47iperoxo.htm

manuela baptista disse...

lindo Glorinha!

aqui, os ipes são uma espécie de via rápida

um beijo

manuela

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

fico sem palavras para comentar tão belissimo texto.

cito "e o risco é aquilo que desenhamos no chão."

faz tanto sentido, aqui!

beij

. intemporal . disse...

.

.

. esta é uma "história" continuada . e continuante deste espaço de LUZ onde se faz história . e se elege a glória .

.

. porque clássica é a palavra que fica . perene . para a posteridade .

.

. e para a posteridade . para as gerações vindouras . descenderão aqueles que . abençoados pelas Mãos de Maria . encontrarão aqui uma espécie de bíblia . de um livro sagrado que constitui por ora o testamento futuro . e que substituirá decerto o actualmente novo .

.

. sabendo dos promotores e de quem assim os traduz . agradeço a Nossa Senhora - Mãe de Jesus - pela graça de os ter re.colocado e também neste meu caminho térreo e efémero . breve .

.

. faço votos . para que na eternidade . estejamos como hoje aqui nos encontramos .

.

. unos .

.

.

.

. íssimo . sempre feliz .

.

.

Beatriz disse...

Manuela querida

Também continuo por aqui voando e viajando nas suas histórias....

Beijinhos e bons ventos!!!

Bia

www.biaviagemambiental.blogspot.com

Mª João C.Martins disse...

Sem chaves, de portas e janelas abertas, sentei-me no banco corrido com o aroma a cera de abelha a inundar-me a alma de recordações tantas.
Ouvi o silêncio e " mãe.." ganhou a grandeza de todos os céus.
Escolhas, tantas escolhas...
Estremeci com o sino. Imaginei que os mochos não estremecessem com o ressoar de todas as noites.
Ah... encontrei há dias alguns pirilampos. Afinal o que julgamos extinto, pode apenas estar à espera de chegar.

O que escreve e o que descreve, a cores ou a preto e branco, nesta ou em qualquer outra tela, é tão belo, Manuela.. tão belo!!

Um beijinho meu

Magia da Inês disse...

ჱܓOlá, amiga!
。°✿

Amei...
Somente seu talento!...

Bom fim de semana!
Beijinhos.
Brasil

✿✿♪

♫° 。✿ ✿ჱܓ

Nilson Barcelli disse...

Melhor anunciar a chegada... porque os sinos também anunciam a partida...
Gostei da continuação do teu conto.
Querida amiga Manuela, bom resto de sábado e bom domingo.
Beijo.

Penélope disse...

Fiz como a Mariazita e fui ler a primeira parte...
Ter aos nossos olhos tua forma de contar histórias e abraçar as mais pungentes emoções...
Uma forma intensa e tão delicada e suave de se dizer da VIDA que nos acontece o tempo todo às nossas voltas...
Abraços, sempre

OutrosEncantos disse...

... o brilho dos pirilampos era um manto aveludado de luz...

ainda existem pirilampos?!
como eu gostava deles :)

... e vou relendo, desde o principio a tua história, a cada capítulo..., decompondo e recompondo... até ao fim :).

beijo, Manuela.
até logo.

Unknown disse...

Mais um texto cheio de um tempo de sonho e saudade, de presente e passado.
Um tempo carregado de santos que se dobram e que a noite transforma num manto aveludado de pirilampos.

Pelo tamanho do texto parece que desistimos logo no início, mas logo nas linhas seguintes já se atingiu a alma do tempo e é difícil parar.

Finalmente, é difícil parar o tempo, ficamos numa espera de mais um pouco. Parece que tantas coisas ficaram incompletas....

manuela baptista disse...

do sino se faz canto

que vos canto


um abraço a todos

Anónimo disse...

E agora Manuela?
Agora choro mesmo...
nó desfeito, agora engulo-o vários vezes, enquanto tento encontrar as palavras.

No caminho, a chegada, as memórias, as vivências, as crenças, as santas... tantas, a mãe que ele amava e a vergonha de ser tido pelos irmãos como medricas...

O galgar o monte, o subir a escada em forma de caracol, o cair sobre os joelhos e perder todas as chaves da casa do outro lado... quando a sua está aberta aos morcegos.
Acordei com o toque do sino e sorri pendurada na corda.

Felizmente há mais...

Beijinho