signatus




Uma pedra sobre outra pedra, entre elas, o barro e a lama. Construção arredondada, poço, dois metros de profundidade, a escuridão, o berro do animal aprisionado, a perseguição, a captura.
Há séculos que assim era, outro tanto assim seria. Era um direito dos homens, a batida. Na armadilha longamente preparada, um cabrito ou um cordeiro seria sacrificado, chamariz de um ser esfomeado, acossado, afastado do seu território natural exposto e despojado.
A crueldade dá a mão aos humanos, porque o medo não ajuda a distinguir a ameaça real, da imaginada.
A cabeça grande, as orelhas, curtas, rígidas, distinguem o som dos ribeiros e o balido das cabras; nos primeiros sacia a sede sorvendo a água, aspira-a ruidosa e sofregamente, nas segundas saciará a fome, se tiver sorte e a cabra não.
Os olhos ligeiramente oblíquos têm a cor de uma pedra preciosa. É belo, jovem, robusto. As fortes patas sustentando o dorso, formam o pulo numa ousadia calculada e uma lista negra no sentido longitudinal, é a expressiva marca que o torna diferente.
O pêlo espesso mistura os castanhos e os amarelos, o ruivo, a canela e o branco sujo e em breve começará a clarear, cumprindo o agasalho nos rigores do frio, alegrando-se com o Verão.
Uma noite perdeu-se dos outros e ficou só. Inexplicável este facto, porque nem ele sabia que era um facto e perguntas não fazia, na aceitação natural de todas as coisas.
O cimento das estradas assustou-o, o ruído dos homens confundiu-o, o queimado dos fogos fê-lo recuar. Desprotege-se, na medida exacta em que as cidades se pensam protegidas e os demónios são enviados para a dimensão de um cada vez mais pobre fazer de conta, ficção de mitos urbanos, veneno que se espalha para a falsa riqueza avançar.
Reconstitui-se livre, à solta nos vales e nas serras onde crescem os lírios brancos, os primeiros, aqueles que chegam com a Primavera, quilómetros vitais, área pretendida numa memória ancestral, agindo em grupo na defesa do princípio do mundo, caçando para comer, uivando para entender as estrelas.
Depois pára, cansado mas atento. Por baixo de si o chão gelado, atrás de si, o cerrado das árvores enegrecidas.
Um ruído de passos. Calmamente, o lobo olha o homem e o homem, manso, deixa-se olhar.
Não têm pressa, na busca do que nem um nem o outro sabem explicar. Ao longe uma voz de mulher chama e o coração do homem acelera o seu bater.
O lobo anseia pelos dentes pequenos e pontiagudos das suas crias exigindo brincadeira e luta na aprendizagem dos afectos, pela companheira de pêlo dourado na profunda toca escondida pela densa vegetação.
Por fim o silêncio. E quando ouvem o piar do mocho estão certos de que podem regressar. Primeiro o homem. Os olhos cor de topázio brilham na noite escura e seguem-no devagar, espreguiça-se, sacode o pêlo, lambe a pata direita.
Depois, ergue o focinho arruivado e engole inteiro o cheiro do vento.





se eu fosse bicho da terra, seria loba
defenderia o meu território e as minhas crias, fiel à minha alcateia
os olhos postos nas altas serras
onde crescem os lírios brancos, os primeiros
aqueles que chegam com a Primavera





36 comentários:

Mar Arável disse...

Texto para reler

nesta terra de homens lobos

dos homens

Grato pela partilha

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


Se eu fosse como tu somos bichos da terra, fiéis, ao nosso território o defenderíamos com unhas e dentes ...

... e à crueldade a largaríamos da mão na distinção clara entre a ameaça real e a imaginada.

Ao lobo o pintaríamos como tu e majestático lhe passaríamos dócil a mão, decidida, numa carícia firme pelo abundante e colorido pelo ...

... num desejo partilhado de Paz tão ansiada!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 2 de Abril de 2011

Anónimo disse...

Tenho um carinho especial por lobos.
Hoje só li. Preciso reler, preciso mesmo!

Volto
Beijo

Branca disse...

Manuela,

É concerteza pelo facto de nos distanciarmos dessa condiçao natural de sermos animais, embora recionais, que nos esquecemos que fazemos parte da natureza, que somos uma parte dela e não proprietários dela e nessa condição todos saberíamos ser lobos, defender o nosso território e as nossas crias, mas parece que o Homem vai desaprendendo o seu lugar no mundo.
Como diz o Eufrázio voltarei para reler, porque de certeza terei mais interpretações, para além desta feita num dia que já vai longo.

Beijinhos
Branca

Eva Gonçalves disse...

As lendas urbanas que fazem do homem a vítima e do lobo o predador mais feroz, não fazem justiça ao bicho-homem, predador incansável dos da sua espécie, indiferente à sua alcateia... nem ao lobo, fiel defensor das suas crias, do seu território, da sua alcateia... Um exemplo. Um exemplo de pêlo dourado, belo como os lírios nas altas serras!
Beijinho

Cildemer disse...

Ilustração e texto lindos!
Também gosto de lobos. É uma espécie protegida, não é?

***
Bjs e feliz domingo****

Ps: obrigada pela visita e comentário no meu cantinho;o)

AC disse...

Manuela,
Quando leio o que escreve sinto que vem ao de cima o melhor de mim. Obrigado por tamanha dádiva.

Beijo :)

Branca disse...

Emendo "recionais" para racionais e peço desculpa da má pontuação...
Só não apago tudo e repito porque não gosto de apagar comentários.
Beijinhos

manuela baptista disse...

...eu hoje desculpo tudo!

e peço também desculpa pela confusão na publicação desta página, que permanece desalinhadamente estranha, pelo menos para mim...

mas estou com problemas de formatação!

aliás eu penso que sou naturalmente desformatada, é isso :)))

um abraço aos noctívagos

manuela

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


Ah minha desformatada querida ...!!!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 3 de Abril de 2011

manuela baptista disse...

Cildemer

o lobo ibérico "canis lupus signatus" é uma espécie protegida,

das outras espécies existentes ainda em França,apenas sei que a população está a diminuir

aqui lhe dou um link para perceber o porquê deste texto, pois era minha intenção colocá-lo com a página mas não consegui...

http://ecosfera.publico.pt/noticia.aspx?id=1484750

obrigada pela pergunta

manuela

. intemporal . disse...

.

.

. do canis lupus signatus a leveza de um porte mais pequeno mas nem por isso menos ágil no jogo da sobrevivência .

.

. ao contrário do que se pensa o lobo não é perigoso para o homem . antes o contrário .

.

. um caçador solitário e a família no regresso a casa .

.

.

. um dia encontrou o homem . e seguiu.o . porque estouvado é o vento quando se deixa cheirar .

.

. como calculado é o tempo na hora de regressar .

.

. podemos então vestir.lhe a pele .

.

.

.

. íssimo feliz .

.

.

manuela baptista disse...

é mesmo assim Paulo!

obrigada por contar

manuela

Nilson Barcelli disse...

Os lobos nunca foram problema.
Mas sempre foram apresentados como virtualmente perigosos pelos mais velhos...
Em pequeno, ainda ouvi histórias de arrepiar...
Manuela, o teu texto é magnífico. Como sempre, aliás.
Bom Domingo.
Um beijo.

Unknown disse...

querida Manuela,

muito bem formatado é o seu carácter, o seu pensamento, a sua forma de dizer a verdade das coisas e dos homens...

muito, mas muito mal formatada e desvirtuada é a história do capuchinho vermelho...

não há lobos maus, há homens crueis e medrosos!

muito mal formatado também está este país...oh se está!

Manuela,

e hoje, continua em maré de tudo perdoar?:)

perdoe-me então, p'lo que disse e não disse!

um beijo

Walter

manuela baptista disse...

a maré continua cheia

boa para navegar

e uivar!

Walter... :))

manuela

António R. disse...

Há noites em que nos perdemos como os lobos. Talvez o homem deva aprender com o lobo a ansiar brincadeira na aprendizagem dos afectos pelos seus filhos.
Excelente história como sempre, desta vez sem mar ao fundo, apenas com o cheiro do vento.

P.S. Perto de Mafra existe o Centro de Recuperação do Lobo Ibérico e os lobos podem ser vistos aí ao vivo.

Anónimo disse...

Reli o conto e senti-me loba.

Tal como a Manuela e sendo eu bicho da terra... porque todos somos, para mim os mais irracionais vestem a pele de cordeiros... também eu escolheria viver fiel à minha alcateia, criaria as minhas crias, beberia a água cristalinas das nascentes e observaria maravilhada o nascer dos primeiros lírios brancos na Primavera.

Obrigada por estes momentos tão especiais que vivo aqui, amiga Manuela.
Parabéns pelas magníficas telas.

Beijinho

Mariazita disse...

Olá, Manuela
Li duas vezes. O texto tem uma profundidade tal que justifica uma segunda leitura.

Tenho um carinho muito grande por lobos. Por ser uma espécia em vias de extinção??? Não sei.

Acho que eu também seria loba (aliás penso que tenho uma costelinha...)pelo menos no que se refere às crias :)))

Hoje postei sobre África. Não sei se gostas...

Boa semana. Beijinhos

E.A. disse...

Manuela,
Uma história que me sossega os sentidos na hora de dormir.
Um beijinho

Linda Simões disse...

Sim,

uma história que sossega a alma na hora de dormir

e em todas as outras horas

de uma leveza , de uma singularidade

Como tu sabes bem fazer

Um abraço , amiga


Saudades

Boa semana

Beijinhos aos dois

Luna Blanca disse...

Lindo! Voltarei sempre.

So os poetas e os cegos podem ver no escuro.

Fica na paz.

Dulce AC disse...

"se eu fosse bicho da terra, seria loba
defenderia o meu território e as minhas crias, fiel à minha alcateia
os olhos postos nas altas serras
onde crescem os lírios brancos, os primeiros
aqueles que chegam com a Primavera"

Lindíssimo Manuela.
Também eu se fosse bicho da terra, seria Loba...

Um abraço forte e amigo.
dulce

ONG ALERTA disse...

Somos animais em muitas situaçóes irracionais, beijo Lisette.

Branca disse...

Vim reler e retive para mim esta incapacidade do Homem:
"...o medo não ajuda a distinguir a ameaça real, da imaginada." e por vezes este medo é a origem da tantos males no mundo, a origem de tantas guerras!

Beijinhos e uma boa noite.
Branca

Ana disse...

Não há animais maus, há (alguns ) homens que são irracionais.
Do texto ao poema tudo é belo!
Um beijo *

alegria de viver disse...

Olá querida amiga

Estou relendo seu conto, lindo e reflexivo.
Em muitas ocasiões, aquele que
aparentemente incomoda é o portador de grande auxílio.

Seu coração é de flores.

Com muito carinho BJS.

Cildemer disse...

Fui ver "os tesouros do fundo do mar" e fiquei encantada;o)

***
Beijinhos e linda semana****

Cildemer disse...

Obrigada pelo link! Irei ler mais tarde porque pelo momento tenho falta de tempo!
Se queres eu explico como inserir um link;o)

***
Re-bisous et à bientôt****

manuela baptista disse...

cil de mer

merci!

eu sei colocar links, apenas não me atrevo, porque o bloger está com problems e se mexo nas mensagens é um desastre...

manuela

Cildemer disse...

Ah, então tem que haver paciência!

Já fui ler o artigo sobre os animais protegidos e a maneira como se encontram mortos. Seria uma boa coisa "criarem mecanismos de controlo da venda de químicos agro-tóxicos, os quais são, normalmente, utilizados para matar animais."!

***
Beijinhos e boa noite****

Graça Pires disse...

Oa homens. Os lobos. Os lírios brancos. Tudo me encantou neste texto onde se preserva a fragilidade das palavras. Como se uma espécie de fogo posto nos ondulasse nas mãos...
Um grande beijo, Manuela.

Mª João C.Martins disse...

Se eu fosse loba, desejaria ser mulher e escrever… escrever assim como a Manuela, para adornar de contos os brancos lírios e emudecer o piar dos mochos e de outros tantos bichos que assustam as crias em noites escuras.

Um beijinho

Virgínia do Carmo disse...

Este contexto é-me familiar; Temos lobos sempre por perto e a ignorância dos homens não raras vezes faz vingar nos animais os tropeços derivados, apenas, das suas própias inaptidões...

Como faz falta esta ternura à Humanidade...

Bem haja, Manuela

Beijinhos

Nilson Barcelli disse...

Voltei e gostei de reler.
Querida amiga Manuela, tem um bom fim de semana.
Um beijo.

manuela baptista disse...

grata a todos!

manuela