Quando a tinta branca do seu barco começou a estalar, ele sentiu uma inquietação indefinida, leve, um sentimento adiado, guardado, que vinha silenciosamente à superfície.
“Tudo vem à tona um dia”, dizia, “ nada fica preso ao fundo do mar por mais agarrado que esteja, enleado em algas, escondido nas rochas, haverá sempre uma corrente contrária e soltar-se-á”. Respondia-lhe o marulhar das ondas e o piar das gaivotas e ele mergulhava a mão esquerda na água, sentia a sua frescura e os picos de sal que secavam no sol do entardecer.
Os peixes não se agitavam com a sua presença, sabiam-no terno e afável, sem redes nem artes de pesca, sem canas ou isco e as migalhas de pão que lhes lançava eram o chamariz de cardumes prateados que o acompanhavam nas suas marés.
Por um momento dormitou e foi tão forte o cheiro das laranjeiras em flor, que deu um grito, as pernas longas e magras estremeceram, o coração saltou-lhe no peito como um potro assustado e entendeu, aceitou as saudades que tinha da terra, do quintal da casa do avô onde cresciam três laranjeiras com as laranjas mais doces que alguma vez comera.
Num movimento rápido e preciso pôs o motor a trabalhar e segurando com firmeza o leme, dirigiu o seu barco no sentido do nascente, incrédulo com a sua ousadia, porque uma vez partido, nada regressa ao que era. É assim com o mais fino vaso e com o mais humilde dos seres.
Chegou de manhãzinha. A areia da praia brilhava colada à humidade da noite e no porto de pesca a azáfama de todos os dias parou de repente mal alguém anunciou: “É o Zeferino!” “O Zeferino voltou…” E puxaram-lhe o barco e lançaram-lhe a âncora rindo como meninos tontos. As mãos calejadas do cordame e das lides davam-lhe palmadas nas costas e os braços nus queimados pelo sol abraçaram-no como só os amigos o sabem fazer.
Ele pasmava. “Não me sabia assim amado…eram estes que troçavam de mim quando eu era pequeno e magrinho…?”
Mas lembrou-se que a crueldade e a generosidade estão às vezes tão distantes e tão próximas que quase se tocam e não disse nada. Abraçou quem o abraçava e contou o que lhe pediam que contasse. Das ilhas de água no meio do céu, dos nevoeiros e dos faroleiros corajosos, das estrelas e da espuma das ondas, da senhora dos navegantes perdidos que não o deixava naufragar.
E na sua terra perto do mar era Abril enovelado em flores de laranjeira e ele ficou, como se tivesse todo o tempo do mundo e pintou a casa e o barco e construiu outros seis como o seu avô lhe ensinara.
Zeferino tinha sete barcos e era um homem bom.
Rumo às ilhas feitas de mar
um, dois, três barcos felizes para o meu amigo Paulo!
36 comentários:
Manuela,
Muito comovente! Tenho que reler outra vez a história deste menino Zeferino que não se sabia tão amado...
Uma bonita prenda para o Paulo, os seus três barcos felizes, para rumar às ilhas feitas de mar...ele que também hoje se decobriu tão amado com os amigos a trabalharem todos ao nascer do dia.
Parabéns ao Paulo neste 10 de Abril de 2011 e à Manuela pelo encantamento desta inebriante história.
Beijos
Branca
P.S. Vou a caminho de outra casa que também está a trabalhar.
Ah! Os desenhos são loucos de lindos e as estrelinhas deixaram-me sem palavras, venho já olhar para elas outra vez, quero ver melhor este céu...
obrigada, Branca!
...o Zeferino não é um menino, é um homem
um beijo
manuela
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. "É assim com o mais fino vaso e com o mais humilde dos seres." .
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. é assim como quem conta este conto . tal e qual . por.que a.final são as palavras que tecem os seres e des.tecem a lembrança de que "a crueldade e a generosidade estão às vezes tão distantes e tão próximas que quase se tocam" .
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. e não digo nada .
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. porque da generosidade tenho aqui o pão para a boca e o alimento para a alma inteira .
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. porque da amizade ampla e transparente fizemo.nos gente crescente e hoje somos já tão altos mas não ainda do tamanho do nosso voo .
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. porque pelo caminho retocamos as asas e escassas são as vezes em que precisamos de ajuda .
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. porque estamos assim a esta distância . a de um pulsar a.penas . entre.o.meu . e.o.seu.coração .
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. bem.haja por Ser quem É . por escrever como escreve . manu.ela.de.elo . há tanto e para sempre .
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. os meus parabéns .
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. um .
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. dois .
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. três .
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. íssimos felizes .
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Pois, eu sei que o Zeferino é um Homem, um Homem-menino, gosto muito dele, quero ler outra vez, shiu....silêncio que estou concentrada, :))
A inquietação do Zeferino é comum a muitos outros seres que navegam pelos mares e um dia voltam para ancorar em casa. Gostei... o súbito aroma a laranjas, lembrou-me do que sinto quando me cheira a incêndio e também eu sinto que devo regressar a casa... ou quando me cheira a maresia e sinto que cheguei a casa :)Aqui, também me sinto em casa :) beijinho
Manuela
"E na sua terra perto do mar era Abril enovelado em flores de laranjeira e ele ficou, como se tivesse todo o tempo do mundo"
Pois que conto mais lindo
Que jeito mais doce tens de contar histórias... !
Bonito!
Beijinhos
Bom dia Mariazita
Um texto encantador e com tanta ternura à mistura que não sei mesmo dizer nada.
Tenho medo de não ter palavras tão doces quanto as laranjas deste texto.
Tenho medo dos abraços que se soltam nas partidas e se cruzam nas chegadas.
Beijinhos por estes momentos de leitura.
Auf!
Auf!
Eu também sou de Abril!
Eu até sou de todos os meses...
E hoje não tens cara para me dizer que não há...
Auf!
Manuela,
hoje, não há nada que eu posso dizer, que seja mais forte que a vontade de um abraço sem fim, a este, e a outros "Zeferinos" que tanto me têm feito crescer e gostar mais de mim...!
um abraço para si e para o Paulo, que de Zeferino tem muito, porque é e será sempre um bom homem!
Walter
Quando o coração salta que nem um potro, o barco da vida está de novo em movimento.
Um dia estas histórias com mar ao fundo, têm de atracar nas páginas de um livro seu.
bom dia!
gente em Abril com laranjeiras em floR
hoje
há bolo de chocolate e...croquetes!
para espalhar pelo ar, os desígnios de um país tristonho e zangado
porque tudo se pode individar e hipotecar
excepto o que faz o mundo girar: a predisposição para se ser feliz
um abraço
manuela
Manuela, estou enlevada e enternecida com tua estória que fala de mar e marinheiros e remeteu-me imediatamente ao livro que vou lançar esta semana...do quanto tive que mergulhar fundo para trazer à tona tudo o que eu tinha em mim, escurecido pelo tempo em que ficou afundado. Lembrei-me tb, imediatamente, do meu romance que ainda está para ser publicado em que conto uma estória antiga...com cheiro de maresia. Estamos numa bela sintonia, minha amiga, delicada e sensível artista, do lápis e das tintas...Amo ler-te! beijos, bom domingo,
Manuela,
Passei para deixar um beijinho antes de seguir para Coimbra, a cidade onde me faço estudante.
Regressarei para ler mais atentamente e comentar.
Eram sete barcos, todos do Zeferino, como o avô lhe ensinou, mas ao mar o homem bom... não voltou, trocou o cheiro a maresia pelo das flores das laranjeiras.
Parabéns ao Paulo e a quem assim nos delicia com as suas palavras aladas, maravilhosas, amiga Manuela.
Beijinho
Ná
Manuela,
Os seus textos têm sempre dimensão e um enorme equilíbrio. E é precisamente de equilíbrio que quero falar, pois aquele que por aqui transparece é um equilíbrio com raízes, tecido nas profundezas do tempo.
Quanto ao Paulo, ser de infindáveis viagens, os sinceros parabéns!
Beijo :)
“Não me sabia assim amado…eram estes que troçavam de mim quando eu era pequeno e magrinho…?”
Mas lembrou-se que a crueldade e a generosidade estão às vezes tão distantes e tão próximas que quase se tocam e não disse nada"
Lindíssimo Manuela.
Quanta verdade nestas palavras.
Lembram-me a única magia em que verdadeiramente acredito, a dos afectos quando partilhados...
Um beijinho grande num abracinho forte de ternura.
Manuela.
Não sei mas acho que você é uma sereia e que tantas histórias ainda vai nos dar, belas e profundas como os oceanos e seus segredos, para ti envio rosas que joguei nas ondas da costa do nordeste do Brasil. Tenho certeza que alguma sereia amiga tua irá te entregar.
Boa semana entre a terra eo Mar...
Manela
Talvez eu pegasse num dos barcos do Zeferino (achas que ele se importava?) e fazia-me ao largo rumo ás ilhas feitas de mar...ou até mais longe! Encheria o barco de peixes coloridos , de algas muito verdes com raízes profundas e, quando chegasse a saudade,voltava a terra na certeza que poderia partir outra vez no prenuncio de cada aurora.
Os teus desenhos...são feitos de magia!!
Beijo
Graça
Quanta poesia existe na natureza e em toda a simplicidade a ela ligada! Quantas pérolas brotam das nossas emoções! Todas elas tão únicas, quer as emoções, quer as pérolas que delas fluem!
Gostei muito deste registo. Muito, muito!
Voltar...voltar porque o amor existe...porque o amor grita forte...e está inconsolável pela dor inesperada...mas voltar é impossível...
Esta será outra história...que a tua excelente história me motivou...
Beijos,
Manuela
sete barcos
um por cada dia da semana
tres barcos
para o paulo
muitos barcos
embora ele tb goste dos aviões
gostei do texto e das imagens
gosto de mar
e
gosto de barcos
e
de o que a Manela escreve,
beij
Manuela,
Depois de um dia um pouco tenso, vim embalar-me na história. Adormecerei de seguida, partindo quem sabe "rumo às ilhas feitas de mar".
Mais uma vez, a história nasce e é ternura
AMIGA Manuela
100 000visitas
Tnho festa no meu blog
tenho selo para ti
Um beijo
Querida amiga
Sou sua fã, é maravilhoso sua inspiração.
Quero ler para sempre seus textos.
Um homem bom, pode ter tudo.
Com muito carinho lhe agradeço, por todas as historias lindas que me transportam.
Menina de coração lindo BJS.
Manuela.
Manu vim te agradecer a visita, estou voltando aos poucos ainda presa por alguns fios enlaçados mas, fico feliz ao receber tuas palavras que como tesouras cortam alguns fios que insistem em enrolar-me.
Beijo
Também me chegou aqui o cheiro das laranjeiras e, por momentos, fui o Zeferino com histórias do mar para contar.
Um belíssimo texto, amiga. Como sempre.
Um grande beijo.
"Zeferino tinha sete barcos e era um homem bom." He he he! O sete é o meu numero preferido;o)
Linda narração! Adorei!
***
Bises et à bientôt****
Há muito que sabia dos barcos do Zeferino. E sabia também, que ele era um Homem bom e que não se sabia tão amado. Nem sempre o coração acredita nas cores mansas da maré, quando no barco a tinta ainda estala.
Das viagens, muito o Zeferino haverá de contar, hoje, amanhã e tanto tempo depois, pois em cada barco ele terá sempre um amigo a ajudá-lo a puxar as redes. É que a crueldade é algo que se enleia e torna, tantas vezes, mais difícil o regresso à serenidade da areia.
Um abraço grande para o Paulo, porque apesar de ter chegado muito depois da festa, não deixo de o abraçar, como só os amigos fazem.
Um beijo para si Manuela, que sabe, como ninguém, de barcos e Zeferinos.
Boa noite, Manuela
A saudade, às vezes, cheira a flor de laranjeira...
E com esse perfume atraiu Zeferino às suas gentes, para lhe fazer a surpresa de se saber amado.
Adorei o texto.
Uma semana feliz. Beijinhos
Manuela,
um prazer poder estar aqui e me deliciar com toda essa beleza poética que salta das suas linhas e entrelinhas, sempre um convite irresistível a profunda reflexão.
"Mas lembrou-se que a crueldade e a generosidade estão às vezes tão distantes e tão próximas que quase se tocam e não disse nada."
Saber-se amado; eis o que nos leva a contruir novos barcos e enfrentar as marés. Bom quando elas nos vêm com o aroma da flor de laranjeira.
Um beijo, minha querida. E inté!
Manuela,
Às vezes não temos a noção do quanto somos amados, um acontecimento do género pode fazer a diferença.
Linda a sua história!
Beijinho,
Ana Martins
Nos faz sonhar e viajar nas palavras, beijo Lisette.
Manuela,
como as obras dos grandes artistas expostas em galerias, assim a dimensão dos sentimentos (dos afectos) só são perceptíveis, tantas e tantas vezes, quando se fazem ausentes ou quando sentimos dentro de nós a dor da ausência. Ai regressamos, reunimos os cacos e colamos de novo, certos de que a fenda é no palato e a fala vai doer, os olhos irão gemer, e, ainda assim, desejosos de que doa e gema, que fique a fenda, mas que os barcos do nosso navegar tenham o cheiro da laranjeira do quintal, das romãzeiras e das figueiras em que fomos meninos... ai reside a chave do que somos a cada dia, em especial quando a tinta dos nossos cascos escama, a pele enruga, no ciclo ininterrupto das marés vivas...
Tudo para lhe dizer que cada texto seu me é precioso.
De partida para uns dias (longos) fora de portas, deixo-lhe o meu carinho e a minha gratidão.
Santa Páscoa
Mel
rever os barcos
bom fim de semana!
beij
agradeço
aos que me leram
companheiros desta viagem
e ao Paulo
que cativou três barcos, para navegar!
manuela
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