Um dia o meu coração também será de xisto e isso não me assusta. Em cada lâmina folheada escreverei um pedaço da minha vida, esta que vive comigo desde que é minha e que eu prezo e amo tanto, como a este meu cão.
Chamar-me-iam louco se me ouvissem, mas aqui na brancura imensa destes altos apenas as ovelhas e as cabras me escutam, os grifos talvez ou as águias-gritadeiras se por um acaso se deixassem avistar.
E o meu cão, fiel. Companheiro dos dias curtos e dos longos, dos frios gelados e do calor do Verão. Capaz de me salvar dos lobos e das outras feras, que as há, embora por aqui há muito tempo as não sinto, conhece em mim cada suspiro, cada anseio como aquele que me desfaz o peito quando penso nas imensas searas de trigo que não vi, mas sei que ondulam ao vento.
É branco o pão que delas sai e o meu é escuro, a manteiga desliza quando quente e o meu tem o cheiro das azeitonas pretas e da terra acabada de cavar.
O vento, esse é igual. Forte, uiva-me aos ouvidos, desloca as rochas e faz-me chorar, não de desgosto, mas traz consigo as areias longínquas do mar e eu até sinto os pedaços de conchas partidas e as espinhas dos peixes e as lágrimas soltam-se sem que eu as possa parar. Fraco, entontece-me os sentidos e é quando cai em mim a saudade das aldeias habitadas, das festas dos baptizados e dos casamentos, onde há sempre vinho a bailar nos copos e os homens cantam até o sol raiar e as mulheres enfeitam-se de ouro e de panos bordados como as deusas antigas e soltam nas mesas as toalhas de linho e os dedos finos das raparigas desenham a canela corações e a palavra amor nas travessas de arroz doce.
Tenho frio então, mas ateio fogueiras e aqueço a noite, as ovelhas dormem na palha seca cobertas pelas lousas que brilham ao luar, o meu cão aproxima-se e pousa o focinho nos meu joelhos e eu partilho o chouriço e o pão e a água gelada da ribeira que dizem de Pena e pena seria se não existisse. Como de mim há tão poucos já, sem ovelhas, sem cabras, sem pastos, sem palha, sem fogo, sem canela, sem pão, sem tecto, sem cão.
As cidades crescem e os homens afirmam-se na inutilidade das coisas, não sabem a cor das águias-gritadeiras que são castanhas como as folhas do Outono e pensam que os grifos são contos de assustar, desconhecem o coaxar das rãs e quantas vezes, à noite, já não sabem rezar.
E a minha mão desliza sobre o pêlo macio do meu cão e ficamos os dois lado a lado toda a noite a tresnoitar, num silêncio cúmplice, arrasador de dúvidas, apaziguador de tristezas e eu guardo comigo a certeza de que ainda sei respirar.
Chamar-me-iam louco se me ouvissem, mas aqui na brancura imensa destes altos apenas as ovelhas e as cabras me escutam, os grifos talvez ou as águias-gritadeiras se por um acaso se deixassem avistar.
E o meu cão, fiel. Companheiro dos dias curtos e dos longos, dos frios gelados e do calor do Verão. Capaz de me salvar dos lobos e das outras feras, que as há, embora por aqui há muito tempo as não sinto, conhece em mim cada suspiro, cada anseio como aquele que me desfaz o peito quando penso nas imensas searas de trigo que não vi, mas sei que ondulam ao vento.
É branco o pão que delas sai e o meu é escuro, a manteiga desliza quando quente e o meu tem o cheiro das azeitonas pretas e da terra acabada de cavar.
O vento, esse é igual. Forte, uiva-me aos ouvidos, desloca as rochas e faz-me chorar, não de desgosto, mas traz consigo as areias longínquas do mar e eu até sinto os pedaços de conchas partidas e as espinhas dos peixes e as lágrimas soltam-se sem que eu as possa parar. Fraco, entontece-me os sentidos e é quando cai em mim a saudade das aldeias habitadas, das festas dos baptizados e dos casamentos, onde há sempre vinho a bailar nos copos e os homens cantam até o sol raiar e as mulheres enfeitam-se de ouro e de panos bordados como as deusas antigas e soltam nas mesas as toalhas de linho e os dedos finos das raparigas desenham a canela corações e a palavra amor nas travessas de arroz doce.
Tenho frio então, mas ateio fogueiras e aqueço a noite, as ovelhas dormem na palha seca cobertas pelas lousas que brilham ao luar, o meu cão aproxima-se e pousa o focinho nos meu joelhos e eu partilho o chouriço e o pão e a água gelada da ribeira que dizem de Pena e pena seria se não existisse. Como de mim há tão poucos já, sem ovelhas, sem cabras, sem pastos, sem palha, sem fogo, sem canela, sem pão, sem tecto, sem cão.
As cidades crescem e os homens afirmam-se na inutilidade das coisas, não sabem a cor das águias-gritadeiras que são castanhas como as folhas do Outono e pensam que os grifos são contos de assustar, desconhecem o coaxar das rãs e quantas vezes, à noite, já não sabem rezar.
E a minha mão desliza sobre o pêlo macio do meu cão e ficamos os dois lado a lado toda a noite a tresnoitar, num silêncio cúmplice, arrasador de dúvidas, apaziguador de tristezas e eu guardo comigo a certeza de que ainda sei respirar.
desenhos de mb
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o título deste texto foi inspirado no filme “Ainda há Pastores?” de Jorge Pelicano
37 comentários:
Manuela,
A gente lê e sente a essência do vento, que espalha mensagens por tudo quanto mexe enquanto vai gravando nas rochas as leis mais simples do universo, mas que ninguém lê...
Cada texto é sempre um enorme prazer.
Beijo :)
Manela
Que texto tão lindo e audível!
Há vidas maravilhosas que tanta gente desconhece...As pessoas da cidade serão felizes? Não sabem o que é o pão escuro acompanhado com azeitonas...não conhecem o uivo dos lobos e o coaxar das rãs...
Desconhecem o calor de uma fogueira numa noite fria e as estrelas por companhia... e o macio de um pêlo de cão que se tem por cobertor.
Ainda há gente feliz?
Beijo
Graça
MANUELA BAPTISTA
Ainda há pastores?
Sim há, é quando olho para as estrelas embora cada vez mais escondidas pela luz que me convenço que os há ...!
Tantos quantos os desamores!
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 1 de Outubro de 2010
Manuela,
estou aqui sem saber muito bem o que dizer, de tal forma esta história me tocou...
um dia, alguém, que já virou uma estrela do céu, me disse ao ouvido que eu tinha alma de pastor...
passados tantos anos, ainda me questiono porque mo disse, se eu sei que tantas são as vezes que me perco das estrelas, que me esqueço de "saber respirar", que me faltam ouvidos para "saber escutar" o coração das coisas, o pulsar do universo...
estarei eu, estaremos todos nós, a transformarmo-nos em pastores sem cão, sem cajado, perdidos das estrelas e do luar, e do que nos diz o vento e o silêncio, já não queremos saber...porquê?
com ou sem alma de pastor, guardo um rebanho de sonhos dentro de mim!
Manuela,
um beijo na estrela que brilha dentro de si
Walter
Manuela,
Também sinto com o vento o cheiro longínquo do mar, das conchinhas se quebrando aos meus pés, da força das ondas....Ah que saudade do mar...
Beijos,
Bia
www.biaviagemambiental.blogspot.com
As diferenças abismais entre o campo e a cidade, que vamos interpelando..., mas como dá a entender o Walter a cidade nunca deixa de nos engolir um pouco, sobretudo nestes tempos difíceis em que a escravidão dos horários e de um estar mais desumanizado nos esconde as estrelas e muito do que da nossa alma de pastores possa existir salta numa emoção forte perante textos como este.
Tive uma casa de férias perto da serra, em Sabugal e tenho lá amigos como família, são uma espécie de pastores, quase todos têm criação de animais, não ovelhas e cabras, mas outros, vão com eles para os lameiros e no Verão chegam a dormir por lá. Há sempre alegria naqueles rostos, o ritmo é o do pulsar da natureza e o tempo tem outro sabor. Os animais regressam muitas vezes a casa quase sabendo o caminho e os cães passeiam-se livremente, indo todos beber a um bebedouro comum, em pedra, no centro da aldeia.
E há pastores sim, há-os até por opção, conheci eu um, bem jovem, que veio estudar teatro para a cidade, mas nunca deixou a pastorícia, talvez porque nunca quis perder esse sentido de comunhão com o Universo, apesar da solidão dos montes, mas é muitas vezes através dela que tudo faz sentido...
Vou com a sensação de não ter dito muito, porque tudo está no texto.
Agora, vou fugir para o mar, que tem outro sabor em dias calmos, junto dos pescadores, que são outro tipo de pastores na solidão das águas...
Beijinhos
Branca
"E a minha mão desliza sobre o pêlo macio do meu cão e ficamos os dois lado a lado toda a noite a tresnoitar, num silêncio cúmplice, arrasador de dúvidas, apaziguador de tristezas e eu guardo comigo a certeza de que ainda sei respirar."
Sem comentários.
...
Beijinhos de bom dia.
Há um pastor, que vive sempre dentro de nós. Que sente a vida que é sua, ouvindo ou ignorando o que está mais perto da sua própria natureza. Há uma solidão própria na companhia imensa de nós mesmos, onde guardamos os gestos simples a cheirar a terra e as memórias do que nunca vimos, mas pressentimos no passar da brisa e sabemos serem verdadeiras, para além dos nossos olhos.
Como a contemplação das estrelas...
Como o murmúrio do mar nos búzios..
Como os átomos de vida que guardamos, fieis e serenos, na certeza de que apenas isso importa. E isso é o nosso rebanho.
Um beijinho, Manuela
"e a palavra amor nas travessas de arroz doce"
E na verdade até o arroz doce tem um outro sabor...
e é tão bom e sei vou querer mais
E hoje o meu coração diz-me que ainda há estrelas...
E as cidades continuarão a crescer
mas eu sei que em alguns dias sentirei essa "certeza de que ainda sei respirar".
Manuela Olá..mais uma envolvência tão maravilhosa na vida que sabemos brilhar dentro de Si...e em nós
Muitos beijinhos num grande abracinho.
Dulce
Todas as palavras são trazidas até aqui no colo de um vento que me aquece, que me mantém acordada, que me aninha protegendo-me do frio da serra, mas principalmente que me traz o desejo tão grande de passar esses momentos junto a esse belo amigo, de toda a hora - o cão.
É verdade... tanto fica enterrado, esquecido no edificar de mais uma pedra da cidade...
Gosto muito de ler os seus textos!
Beijinhos
AC
Graça Pereira
Jaime
Walter
Bia
Branca
Linda
Maria João
Dulce
JB
boa-noite pastores de sonhos!
um beijo
manuela
Querida amiga
É um belíssimo texto, tem a nostalgia como fundo. Graças a Deus que ainda podemos recordar.
Fico pensando no meu filho que nem sabe o que é um pastor, desculpa mas vou rir um pouco, ele acaba de me falar "mãe claro que sei, tá cheio de pastores o que não falta são igrejas".
Dá para acreditar nisto? Rsrsrsrs...
Amiga amei os desenhos.
Com muito carinho BJS.
Olá Manuela
Adoro ler as suas historias, sâo sempre lindas.
beijinhos
Olá Manuela,
BOA NOITE..
NEM PRECISO LER BASTA AS IMAGENS...
ESSE AZUL !MENSO DE PARTIR E VOLTAR...DE CÉU E MAR E DE EMOCIONAL DESEJO DE SER NUVEM...
BEIJINHOS
OBRIGADA
Rufina
dá...para acreditar nisso!
então é preciso encontrar os outros para ele ver :))
beijinhos
Manuela
obrigada Sideny!
um beijinho
manuela
Alis
tu é que podias desenhar um céu de estrelas
com os noctívagos pássaros nos cabelos da noite
não era lindo?
um beijo
manuela
.
. "sem ovelhas, sem cabras, sem pastos, sem palha, sem fogo, sem canela, sem pão, sem tecto, sem cão." .
.
. e o meu cão é o mundo onde me hospedo, porque à noite ainda sei rezar .
.
.
.
. e da in.utilidade das coisas res.guardo uma obra que nunca pariu .
.
. porque não sabe a cor das águias-gritadeiras e mesmo que tenha frio, aqui não se poderá res.guardar .
.
. porque este é um lugar sagrado .
.
. onde não há lugar ao diabo no corpo .
.
.
.
. um .
.
. dois .
.
. três .
.
. beijos felizes .
.
.
Paulo
e eu gosto da sacralidade dos lugares que nos abrigam como um céu de estrelas
e conhecem bem o demo, os pastores!
que toma muitas formas
como a dama pé-de-cabra, que iludiu um cavaleiro
e esta história ainda se conta no alto das serranias
e eu sei que é verdadeira!
porque se eu escrevo muito sobre o belo
nunca me esqueço que, face a face com o divino, existe o demoníaco, que os homens quiseram arredar do seu vocabulário e da sua vivência e iludem-se perdidos
aqueles, que já não sabem rezar...
e
obrigada pelo seu testemunho que me fez centrar!
um
dois
três
beijos felizes
manuela
Manuauf,
Auf, auf, auf, auf, auf, auf, auf,
Auf, auf, auf, auf, auf, auf, auf,
Auf, auf, auf, auf, auf, auf, auf,
Auf, auf, auf, auf, auf, auf, auf,
Auf, auf, auf, auf, auf, auf, auf,
Auf, auf.
Auf, auf, auf, auf, auf, auf, auf.
Auf, auf, auf, auf, auf, auf, auf,Auf, auf, auf, auf, auf, auf, auf,Auf, auf, auf, auf, auf, auf, auf.
Auf, auf, auf, auf, auf, auf, auf,Auf, auf, auf, auf, auf, auf, auf,Auf, auf, auf, auf, auf, auf, auf,Auf, auf, auf, auf, auf, auf, auf,Auf, auf, auf, auf, auf, auf, auf,Auf, auf, auf, auf, auf, auf, auf,Auf, auf, auf, auf, auf, auf, auf.
Auf, auf, auf.
Auf!
Siri!
Auf,auf?
auf, auffffffffffffff...
Auf, auuuuuuuuuuuuu, auf!
aufy!!
auf
manuela
Bom dia, Manuela, Manu.
(07.28)
Entre o cão e a estrela te digo que nesta solidão amiga, só resta com certeza na respiração sentir-se vivo, lindo Manu, você é best.
Renata e tenha uma semana inspiradora com muitas estrelas...
Renata
Renata
we are the best!
friends :)))
manu
Ainda há estrelas?
Tantas, que ainda há e sempre haverá enquanto o coração dos homens for puro, enquanto os seus olhos só virem o céu e não se perderem por outros caminhos.
Venho espreitá-las por aqui e pelo céu que me cobre e elas sempre serão donas da minha vida, como quando era menina e ficava a tentar descobrir a estrela polar, a ursa maior e a menor e todas as constelações que ia aprendendo.
Um montão de estrelas para todos e muita LUZ.
Beijos
Branca
Branca
obrigada pelo seu carregamento de estrelas!
um beijo
manuela
cada texto é sempre melhor que o anterior....
mas, que nunca o teu coraçao se transforme em xisto.
um beijo
Piedade
é do xisto
que nascem as ardósias, onde se podem escrever todas as histórias
obrigada!
um beijo
manuela
É o contacto com a natureza que faz sentir assim... ou a dor!
Cuando regresaba a casa,
roto, maltrecho, impotente...
vi que una ardilla caminaba,
en libertad!...
sobre unos cables eléctricos
para pasar de un pino a otro
en busca de sabrosos piñones;
la melancolía y el dolor
me invadían...
pero aún me han permitido
esbozar una tenue sonrisa
seguida de un susurro...
una vida se apaga
y otras vidas siguen...
saltando en LIBERTAD.
Mi pecho se ha hinchado de aire,
mis ojos de lágrimas
y mi corazón se encogió.
Era la pena y el dolor
que entraba en mi.
Recebe todo o meu afecto num abraço
Que belo texto! Cheio de sentimento, carregado de afectos, com os sentidos bem apurados, como se decifraces na pele todos os sonhos que fermentam a errância do que te cerca.
Um grande beijo, Manuela.
Duarte
pois seja a alegria que sai de mim!
agradecendo os seus versos bonitos
um abraço
manuela
Graça Pires
na errância que nos cerca
encontramos nós tesouros!
um beijo
manuela
"As cidades crescem e os homens afirmam-se na inutilidade das coisas, não sabem a cor das águias-gritadeiras que são castanhas como as folhas do Outono e pensam que os grifos são contos de assustar..."
Excelente texto, querida amiga.
Beijos.
obrigada Nilson
seja sempre bem vindo!
um abraço
manuela
Minha amiga Manuela (Manu)
Uirapuru me chamou atenção então criei esta histórinha e juntei a versão de duas lendas a de Oribici uma linda índia e da que quem vê o uirapuru pode fazer um pedido, deve haver mais, Itamirim veio do nome de minha mãe "Ita" e "Poranga" de um indiozinho menino (curumim) que tem várias lendas e contei algumas para meu filho quando pequeno.
Muito obrigada por ir me visitar, queria que soubesse que muito me honra, mande lembranças ao Jaime.
Beijo ao casal fofis.
Renata
Manuela, lindo texto. Ternurento.
É bem verdade que as cidades crescem e engolem os pastores que acabam por esquecer o cheiro da terra molhada e o coaxar das rãs.
É preciso que continue a haver Pastores com o seu Cão.
Curumim
é o nome mais bonito que a Renata inventou!
eu também gostava de saber histórias de índios...
um beijo
manuela
Benó
que entende da terra molhada
onde ainda crescem as flores!
beijinhos
manuela
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