"flying" foto de Mikael Jigmo
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Quando o homem lhe falava baixinho e devagar, ela esticava a sua grande cabeça e ficava imóvel a ouvi-lo, o bico entreaberto, suspensa ao mais leve movimento da sua mão direita, enquanto a esquerda segurava o balde de zinco e os joelhos dobrados num equilíbrio perfeito tremiam um pouco.
Era como um jogo, em que cada um tirava o maior prazer da companhia do outro e à primeira mão-cheia de caranguejos e camarões lançados para a água ela escancarava a boca e engolia-os com enorme sofreguidão. Depois dava uma volta sobre si mesma e num agradecimento mudo afastava-se, as barbatanas dianteiras empurrando-a para a frente, as posteriores, como os remos seguros de um barco.
Não ia muito longe, porque o tanque era pequeno e a algazarra das crianças não a deixava sossegar, gritavam “mais!” e ela comia mais só para lhes agradar. Às vezes, distante, muito distante na sua memória de criatura das águas profundas e das correntes potentes, sentia o cheiro da maresia e não sabia que era assim o cheiro do mar e vinha-lhe uma saudade imensa de algas, moluscos, águas-vivas e camarões, cascos de navios, praias de areia quente e os recifes de coral que apenas ela saberia encontrar.
Um dia, depois de tantos dias, que se os soubesse contar não os contaria nunca arriscando-se a morrer cativa de tristeza e medo, caladas as vozes agudas dos meninos e vazio de comida o balde de zinco, o homem falou-lhe de uma outra forma que ela não entendia, de liberdade e profundidade, da crueldade que terminava e da coragem que ela teria de sentir para se soltar. Do peso que teria de ganhar, das corridas para exercitar os músculos e as barbatanas e o pescoço forte e o olfacto apurado para procurar o seu próprio alimento e a maior de todas as lições: não confiar nele nem em qualquer outro humano, esquecer-se para sempre de quem a cativou para que o seu próprio cativeiro terminasse.
Ela que ouvia tão bem as baixas frequências sentiu que perdia o que não desejava perder, mas imaginou o cheiro da maresia e esticou um pouco mais a sua enorme cabeça e o homem disse pela última vez “minha querida Cabeçuda..” e fez-lhe uma carícia mesmo por cima dos olhos.
Largou o tanque pequeno onde ecoavam as gargalhadas das crianças e o apito do comboio que a ajudava a dormir, perdeu o medo de águas um pouco mais fundas e aprendeu a identificar o seu alimento, a procurá-lo sem a ajuda do homem, a nadar, a mergulhar, fez-se forte, cresceu, ganhou peso e determinação.
Os homens, orgulhosos dela, soltaram-na então no mar alto, já ela sabia há muito que estava preparada para o fazer e eles ainda não, mas claro que ninguém reconhece que as tartarugas são muito mais rápidas do que os homens!
Mergulhou no oceano e na memória de um tempo guardado bem dentro do seu coração, em que os perigos espreitam e as barbatanas fortes e a carapaça de uma tartaruga não são nada, comparadas com a luta de todas as horas por uma sobrevivência ameaçada, pela doçura de uma areia quente onde irá desovar, multiplicando as formas hidrodinâmicas dos seres que não são peixes, nem algas, nem caretas, nem homens, nem aves, mas podem voar.
De longe em muito longe, há um homem que fala baixinho e devagar e sem saber porquê, sente uma leve carícia entre os dedos da mão.
Era como um jogo, em que cada um tirava o maior prazer da companhia do outro e à primeira mão-cheia de caranguejos e camarões lançados para a água ela escancarava a boca e engolia-os com enorme sofreguidão. Depois dava uma volta sobre si mesma e num agradecimento mudo afastava-se, as barbatanas dianteiras empurrando-a para a frente, as posteriores, como os remos seguros de um barco.
Não ia muito longe, porque o tanque era pequeno e a algazarra das crianças não a deixava sossegar, gritavam “mais!” e ela comia mais só para lhes agradar. Às vezes, distante, muito distante na sua memória de criatura das águas profundas e das correntes potentes, sentia o cheiro da maresia e não sabia que era assim o cheiro do mar e vinha-lhe uma saudade imensa de algas, moluscos, águas-vivas e camarões, cascos de navios, praias de areia quente e os recifes de coral que apenas ela saberia encontrar.
Um dia, depois de tantos dias, que se os soubesse contar não os contaria nunca arriscando-se a morrer cativa de tristeza e medo, caladas as vozes agudas dos meninos e vazio de comida o balde de zinco, o homem falou-lhe de uma outra forma que ela não entendia, de liberdade e profundidade, da crueldade que terminava e da coragem que ela teria de sentir para se soltar. Do peso que teria de ganhar, das corridas para exercitar os músculos e as barbatanas e o pescoço forte e o olfacto apurado para procurar o seu próprio alimento e a maior de todas as lições: não confiar nele nem em qualquer outro humano, esquecer-se para sempre de quem a cativou para que o seu próprio cativeiro terminasse.
Ela que ouvia tão bem as baixas frequências sentiu que perdia o que não desejava perder, mas imaginou o cheiro da maresia e esticou um pouco mais a sua enorme cabeça e o homem disse pela última vez “minha querida Cabeçuda..” e fez-lhe uma carícia mesmo por cima dos olhos.
Largou o tanque pequeno onde ecoavam as gargalhadas das crianças e o apito do comboio que a ajudava a dormir, perdeu o medo de águas um pouco mais fundas e aprendeu a identificar o seu alimento, a procurá-lo sem a ajuda do homem, a nadar, a mergulhar, fez-se forte, cresceu, ganhou peso e determinação.
Os homens, orgulhosos dela, soltaram-na então no mar alto, já ela sabia há muito que estava preparada para o fazer e eles ainda não, mas claro que ninguém reconhece que as tartarugas são muito mais rápidas do que os homens!
Mergulhou no oceano e na memória de um tempo guardado bem dentro do seu coração, em que os perigos espreitam e as barbatanas fortes e a carapaça de uma tartaruga não são nada, comparadas com a luta de todas as horas por uma sobrevivência ameaçada, pela doçura de uma areia quente onde irá desovar, multiplicando as formas hidrodinâmicas dos seres que não são peixes, nem algas, nem caretas, nem homens, nem aves, mas podem voar.
De longe em muito longe, há um homem que fala baixinho e devagar e sem saber porquê, sente uma leve carícia entre os dedos da mão.
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Esta podia ser a história de Calantha bela como rebentos em flor, "Caretta, caretta" a Tartaruga que saiu de um tanque e conquistou o mar.
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e um, dois, três! agradeço ao paulo a história feliz do tempo das tartarugas
27 comentários:
MAR E AR
E se nadar fosse voar?
Voar mesmo sem artefactos nem artifícios técnicos, voar como os pássaros voam no ar?
E se a mar fosse o ar dos peixes e o ar o mar de todas as descobertas?
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 4 de Setembro de 2010
VOANDO... é o termo certo, rumo à liberdade!
eu já tinha conhecimento da história surpreendente deste magnífico ser, a "calantha", que me emocionou e me fez pensar que nenhum Ser se esquece de voltar ao que sempre foi...
e ver reinventada aqui a sua história e que poderia ser de uma outra calantha qualquer... é barbatana a mão que escreve; é ternura o que se sente, ao se ler esta página que flutua, p'los mares azuis da liberdade...
parabéns Manuela!
beijinho
walter
Manuela,
As suas palavras, tecidas de sensibilidade e ternura, são um hino à liberdade e à harmonia das coisas...
Ergo a minha taça e brindo à Calantha e a todas as calanthas do mundo!
Beijo :)
Olá Manuela,
Que dizer desta reinvenção magnífica de uma história tão terna transformada numa metáfora de um vida que pode ser a de qualquer um de nós? Tal como os animais também os Homens têm os seus cativeiros, com a diferença de que os animais não constroem cativeiros para os Homens e estes fazem-no para todas as espécies, incluindo para eles próprios.
É tão difícil por vezes comentá-la, porque está tudo dito nas entrelinhas e as suas histórias podem ser tantas histórias!
Parabéns, Manuela.
Beijinhos
Branca
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. "benditos os que não confiam a vida a ninguém" .
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. nem às crianças, nem aos homens.adultos, nem à protecção dada por uma vida confinada às paredes de um antigo aquário, que, entre.tanto, tanto permaneceu ao insistir para que ali ficasse .
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. a história desta tartaruga, tem a alma e a fúria calma dos portugueses que outrora e sem demora descobriram e conquistaram o mundo .
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. com a mesma liberdade e com similar profundidade a conquista é e será sempre o melhor de nós que quando posto à prova é o melhor de tantos os nós que segura.mente navegamos .
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. "Deus é o existirmos e isto não ser tudo" .
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. na certa certeza que daqui já levaremos tanto .
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. este é um conto límpido e linear .
. ausente de quaisquer metáforas .
. des.necessárias .
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. onde ávido per.corro todas as linhas sem entre.linhas .
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. tão somente ou a.penas porque a força de que somos feitos será sempre motriz a par.e.passo com a humildade onde somos todos aprendizes do tanto que podemos e até não sabemos .
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. e de hoje em diante,,, a nossa "Calantha" poderá olhar.nos de frente e saber que daqui partiu, e em linha recta sentir o que de baixo para cima nunca sentiu .
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. e talvez re.acordem os homens.heróis que teimam adormecidos .
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. e talvez nos sobrem tantos momentos de talentos e de alentos por en.quanto esquecidos .
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. uma coisa é certa, é na palavra escrita da manuela baPtista que não há quem desista .
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. e o amor assim não morrerá nunca .
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. estou cert.íssimo disso .
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. e por isso,,, .
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. os meus parabéns, manuela .
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. e,,, mais logo, ao passar.Lhe junto à janela, o olhar, de baixo para cima, será então em linha recta, e não haverá nunca quem nunca cometa um poiso de asa quando se pode voar .
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. um .
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. dois .
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. três .
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. beijos felizes .
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. paulo .
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Manuela,
Sem dúvida alguma saio daqui encantada com o encanto dos seus contos de voos
Beijinhos
nadar é voar nas águas ...
Boa semana
Olá Manuela
Não sei o que dizer deste seu texto, apenas que fiquei deslumbrado e pensativo. Sim, pensativo no que estarei a fazer aos meus gansos...
Beijinhos
O pai Bártolo
Olá querida amiga
É uma bela história de coragem de sensibilidade de liberdade.
Como é bom sonhar.
Amei sua tartaruga.
Com muito carinho BJS.
Manuela
Há uma natureza própria, código íntimo de todas as células, que nunca se deixa aprisionar...
Há cativeiros, onde, para além daquele que cativa, há aquele que se deixa cativar...
" O que significa cativar?" - Perguntou o principezinho -
E há histórias belas, de liberdade e coragem e de outras coisas tão grandes quanto estas; histórias como a da Calantha e de todos os animais com couraça; e esta, talentosamente escrita por si, a marcar-nos por dentro.
Um beijinho
eu também amo esta tartaruguinha...
neste seu maravilhoso "rabisco" Manuela...
até no desenhar deixa a marca das palavras ternurentas no sentirmos em nós a importância do amor ser liberdade...
num abracinho amigo um beijo para os dois...(Olá Jaime..!)
"how are you..?!"
dulce
Manuela
Linda a sua história
Pensei nas minhas 3 tartarugas e fiquei a pensar.
Um beijo
DULCE AC
Dearest,
Então a minha Amiga vem para aqui falar inglês comigo e não o faz no lugar certo, junto à Trilogia que publiquei!?
Se eu fosse tartaruga, despia a couraça, punha as mãos nas ancas e resmungava:
Shame on You, so soft as you are
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 6 de Setembro de 2010
Manela
Sempre gostei de tartarugas...lembro-me daquela que mesmo pesadona com a sua carapaça...conseguiu vencer a ágil e vaidosa lebre...Talvez tivesse asas como diz o Jaime...
O cativeiro é sempre difícil...ainda que sejamos tratados com todo o carinho mas o desejo de liberdade torna-se cada vez mais doloroso...
Tal comoa tua tartaruga, na vida fazemos uma constante subida de açudes e pela experiência quotidiana sabemos que é nessas subidas que voltamos a colher a alegria de uma vida sem medos, com raiz e com futuro. Ás vezes, na busca da liberdade ...descobrimo-nos amarrados em armadilhas da nossa busca.
Que a tartaruga não se enrodilhe na imensidão das algas...plantas desenraizadas que o mar atira impiedosamente à areia da praia...
Quem sabe...se a tua tartaruga...não me levaria até ao Indico...talvez eu tambem tenha asas.
Obrigada por esta história!
Beijo
Graça
E, aqui quietinha,também estou a espreitar as tartarugas... Mais uma história que faz com que viajemos nas no mar da Manuela...
Ai, ai...
Belas histórias contadas...
Beijinhos de carinho,
Linda Simões
Boa noite Manuela,
parabéns, é sempre uma delicia ler o que escreve.
Beijinhos,
Ana Martins
Ave Sem Asas
Que outro final esperar de uma aquariana que num dia de chuva forte deitou os peixes ao mar?
Certamente que a "Cabeçuda" se passeia voando nesse mar infinito, nunca esquecendo que há um homem, que fala baixinho e devagar, ao qual gostaria de acariciar os dedos da mão.
Bjos
MariaIvone
Querida Manu.
Acho que teu maior segredo é conhecer Atlântida, pois, sabes como poucos contar histórias sobre o mar tenho uma desconfiança que entendes e ouve a vida infinita do mar e dos seres que nele habita ou será uma sereia?
Beijo
Renata sem portátil usando o computador do filho.
Linda Cronica!
Já mergulhei aqui no Brasil com tartarugas e vi uma exatamente como esta aí da foto. Participei como voluntária em um projeto que preserva as tartarugas marinhas e estou sempre acompanhando as pesquisas. AMEI sua escrita, feita com o coração!
Bia
www.biaviagemambiental.blogspot.com
Parabéns Manuela por esta história cheia de sensibilidade e ternura.
A tartaruga aprendeu a enfrentar os perigos do mar mas "de longe em muito longe, há um homem que fala baixinho e devagar e sem saber porquê, sente uma leve carícia entre os dedos da mão.
Magnífico!.
Um beijo.
MANUELA
Vim agradecer a visita e em nome do Vitor obrigada pelos parabens
è bom conservar os amigos
eu por um amigo vou até ao inferno.
Beijos
A tartarugas agradecem o Mimo são 3 tamanhos
A pequenota
A Jovenzita
E a Dª Mafala imponente e meiga...
voando voando...parei aqui
onde fico até amanhã bem cedinho
com muitos beijinhos para si Manuela num grande abracinho amigo
e até lá..!
dulce
Como são deliciosas as histórias que encontro neste teu cantinho. Os mistérios da natureza guardam outros mistérios...
Bjs
Chris
a todos os que se atreveram a viajar
com a Calantha
agradeço a sua arte de navegar!
um abraço
manuela
Lindíssima história! Fiquei presa nas palavras e no mar leve do futuro. Beijos.
obrigada Paula!
as romãs sempre se deram bem com o mar
um beijo
manuela
Olá
Incrível texto.
Todos os registos vão dar a liberdade seja ela voando ou nadando. A Obra é gualmente vivida dentro de cada Ser, sem exclusões.
Até...
M.
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