de um tempo de água


Às vezes é um som, um cheiro, uma percepção colorida entre o açafrão e a pimenta. E tenho saudades.
Era doce a língua e acordava sempre ao som de uma gargalhada, uma corrida ágil nas lajes do corredor, o fogo que sentia a crepitar na cozinha enorme e escura, o ranger da corda no poço. Ficava mais um pouco a marinar ruídos, os olhos fechados porque não tinha pressa, jamais tive pressa, nem do chá preto fervido com leite ou do coco acabado de colher.
Pelas janelas de carepas, encimadas por caudas de pavão, as pequenas placas de ostras colocadas em escama deixavam entrar a ténue luz da manhã acinzentada, pálida, da monção. Engenhosos os arquitectos, que superando a ausência de vidro construíram estas janelas de luz e ar a circular, porque a humidade é tanta que entontece.
Alguém dizia “mais uma vez os macacos deslocaram as telhas, ouvi-os de noite…” e eu também…era como fazer parte de um conto antigo, os macacos não são macacos, são príncipes ardilosos, roubam as telhas para construir um palácio e com um sopro leve transformam-nas em ouro e imensos são os roubos que perpetuam que há aldeias inteiras sem tectos e a chuva entra como se fosse a rua.
Os muros cobertos de jasmim escondem as cobras venenosas e as iguanas e se damos um salto de medo é o medo que elas têm nos olhos que nos desfaz o salto, por isso aquietamo-nos mudos de espanto.
A meio da manhã a chuva pára de repente num tempo de bicicletas velhas a ranger e os mercados parecem uma festa de pulseiras de vidro e são tanto mais quantas mais temos valor, o verdadeiro, o do amor. No fundo dos ribeiros há um tapete destas pulseiras partidas e pensamos em tesouros, em pedras preciosas perdidas a que ninguém dá valor. Os colares são de flores, para que o odor permaneça o tempo certo de uma festa, de uma alegria fugaz.
Os meninos têm uns olhos imensos, são magrinhos, fininhos e dolentes, brincam de roda numa lenga-lenga eterna porque as mães lhes entoaram as canções de embalar com o coração e esse é igual em qualquer canto da terra, um desígnio de uma certeza, de uma beleza estranha como o que de estranho há em mim.
Os cortadores de relva alugados à hora, são os búfalos ainda jovens, placidamente rendidos à frescura do verde enquanto os seus igualmente jovens donos cabeceiam sonolentos, encostados às paredes, ruminam folhas de bétel encarniçando os lábios e os dentes.
Eu só queria ser pintor e desenhar numa tela imensa toda esta cor e quando a chuva da monção avança numa cortina cerrada, levando à sua frente tudo o que não se deixa prender e faz saltar os peixes das suas rotas e lança-os a nadar perdidos nas estradas, acendemos as fracas luzes nos pátios e nas varandas cobertas onde se agitam os espanta-espíritos de lata e vindo dos confins da casa há sempre um violino a soletrar um inexplicável canto triste que sabemos de cor e tão sentido e a tinta que criámos esborrata.
E se a língua é o lugar onde eu nasci é por isso que eu desejo estar aqui, porque é de água ao mesmo tempo de asa.
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Este é o caderno de um viajar perdido
em Goa
onde ainda se fala a minha língua




"janelas de carepas" desenhos de mb

33 comentários:

Unknown disse...

Olá Manuela

"de um tempo feito de água" :)

parece-me bem... assim perpectuado na sua/nossa Língua onde cada um de nós possa ser um viajante perdido entre cheiros, sabores, cores e sons - e que a nossa Língua nunca deixe de estar à mesa seja aqui, em Goa ou até na lua...:)

muito belo e nostálgico este conto - imensa tela colorida que me embriaga os sentidos...

excelente, Manuela... excelente!!!

beijos

Walter

Unknown disse...

Recordações que se diluem nas águas da memória juntamente com os cheiros,
As cores e os sabores a ...marinar...
Parabéns por mais este texto que nos move na saudade do tempo e do espaço português

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


Saudades, tenho saudades da Índia que até agora não conheci e que diariamente, em ti própria, alimentas!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 24 de Setembro de 2010

manuela baptista disse...

Naty e Carlos

assim os dois
eu diria que o amor já cresceu...

obrigada pelos votos de bom fim de semana!

manuela

manuela baptista disse...

Walter

de um tempo feito de água

tem razão
ficava bem assim, também

lá na Índia, onde as minhas fotos ficaram todas aguadas de inexperiência e humidade...

um beijo

manuela

manuela baptista disse...

Luís Coelho

desta língua que nos une e que continue a marinar

aqui seria melhor, manuelar...

um abraço

manuela

manuela baptista disse...

Jaime

são saudades de futuro!

manuela

Branca disse...

"E se a língua é o lugar onde eu nasci, é por isso que eu desejo estar aqui", muito lindo, eu também desejo estar aqui nesta língua que se desdobra como um lençol em contos de encantar.

Beijinhos Manuela.
Bom fim de semana
Branca

Jaime Latino Ferreira disse...

MANUELA BAPTISTA


... nem mais!!!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 25 de Setembro de 2010

manuela baptista disse...

Branca

...assim uma espécie de língua da sogra :)))

é isso, escrever na minha língua é onde me sinto em casa!

beijinhos

manuela

manuela baptista disse...

JAIME LATINO FERREIRA

voilá!

MARIA MANUELA BApTISTA
PLANETA TERRA, 25 de OUTONO DE 2222

Mª João C.Martins disse...

Manuela

Sendo de um tempo de água, a língua foi e é o prolongamento das forças e marés, semeada por aí, aos quatro ventos e infinitas ventanias. Hoje, no olhar sereno de todas as colheitas, escreve-se assim esse tempo, pincelado em cores tantas,aguarelas, que de cá se viaja até lá, de sorriso nos lábios, crédulos no futuro.

Um beijinho

manuela baptista disse...

Maria João

de cá
para si

com um sorriso crente no futuro e no prolongamento das marés!

um beijo

manuela

sideny disse...

Olá Manuela

Belissimo conto.

E já agora um bom fim de semana:))

beijinhos

manuela baptista disse...

Sideny

eu já tinha sentido a falta dos seus votos de bom fim de semana...

para si também!

beijinhos

manuela

JB disse...

Também o seu texto é um "violino a soletrar um inexplicável canto" alegre, que assenta numa pauta tão rica em cor e aromas.
É impossível não se viajar nos seus textos e é impressionante a quantidade de imagens que desencadeia desenhadas, de forma única, na tela do leitor.

Beijinhos

AC disse...

Começa-se a ler e imediatamente uma porta se abre. Ao certo nem sabemos como ela é, porque imediatamente nos sentimos parte da narração. Já estamos sentir o aroma do açafrão e da pimenta, a espreitar os colares de vidro no fundo do ribeiro, a sentir a impertinência dos macacos...
E ficamos por ali, a mergulhar naquela mescla de aromas, sabores e sentires, como se fosse a configuração do mundo. É assim a escrita da Manuela, são assim as palavras onde gosto de me perder.

Beijo :)

manuela baptista disse...

JB

pelas viagens que viaja

em cada viagem que lhe dou

um beijo

manuela

manuela baptista disse...

uma porta e uma janela, AC...

quem me dera escrever
a configuração do mundo, assim uma espécie de trilho sagrado

de dar o nome às coisas pela primeira vez

Obrigada!

um beijo

manuela

Moi disse...

há muito não passava por aqui.
Mas soube-me bem, fez-me sorrir este conto de palavras da saudade.
Beijos de bom fds

Alis disse...

OláManuela,
também eu rendida á frescura das pa lavras…
e ao engenho e arte da chuva presa ás nuvens…
sempre a bater nessa vidraça azul que faz tilintar os espanta-espíritos e nos deixa pimenta no nariz… atchim…

adorei
beijinhossssssssssssssss

manuela baptista disse...

Angel

dark

pelas janelas entra a luz e a escuridão...

seja bem aparecida!

beijinhos

manuela

manuela baptista disse...

Alissssssssssssssss!

é verdade, esqueci-me de desenhar os espanta-espíritos...

que eram mais espanta-morcegos

que eram muito mais do que os macacos espalha-pimenta

saúde!

beijinhos

manuela

alegria de viver disse...

Olá querida amiga

Sempre nos brinda com lindos textos e belos desenhos. Ler este texto é viajar no tempo, esse que não volta, mas acrescenta uma vivência feliz.
Janelas abertas coração limpo.

Tenha uma semana de muita paz.
Com muito carinho BJS.

Linda Simões disse...

... Eu só queria ser pintor e desenhar coisas que fizessem felizes todas as gentes.Assim,num passe de mágica,eu estaria cá e lá,lá e cá...

...

E por falar em saudade...


Um abraço apertado,


Linda Simões

manuela baptista disse...

Rufina

o tempo é enganador

parece que não volta, mas permanece

beijinhos

manuela

manuela baptista disse...

Linda

e pintar uma ponte rolante que unisse os continentes
os homens
e as marés

assim os aviões seriam aves e os barcos peixes e não falaríamos mais de saudade

um beijo

manuela

. intemporal . disse...

.

. e,,, .

.

. en.quanto se marinam ruídos, os príncipes ardilosos des.tecem os sentidos a oriente .

.

. para onde rumarei em breve e nova.mente,,, .

.

. não para "Goa", ainda .

.

. mas na minha agenda as "janelas de carepas" são um convite entre.aberto .

.

. um .

.

. dois .

.

. três .

.

. beijos felizes .

.

manuela baptista disse...

um convite entreaberto

e sempre em aberto!

porque fazia fresco naquelas casas
dispensado o ar condicionado

que tanto nos condiciona...

que as carepas esperem por si , Paulo

e não desapareçam na voragem do tempo

três

dois

um

beijos felizes!

manuela

Por toda minha Vida disse...

Boa tarde, Manu.

Minha doce amiga sempre estamos com o avesso da estação e é muito bom, pois, quando minha primavera chega teu outono me encanta com seus tons dourados, eu te presenteio com minhas orquideas que estão florando, algumas estão ainda se preparando e eu ansiosa esperando.

Beijo e ótima semana.

Renata

manuela baptista disse...

Renata

é no avesso de cada estação

que encontramos a direcção de todas as coisas...

uma boa floração de orquídeas!

beijos

manuela

Graça Pereira disse...

Manela
Esta é uma página que podia muito bem ser sobre Moçambique com caracteristícas muito semelhantes ás de Goa...
Vi-me á porta da casa da indiana que fazia as samuças mais deliciosas que comi até hoje...o primeiro sinal de que tinhamos chegado era aquele cheiro forte de açafrão e malaguetas...Os tachos de cobre reluzentes iam cozinhando o caril que ela também servia...Recebia-nos á porta com um sorriso, compondo o seu sari cheio de cores e falando num português mutilado...Mas o sorriso era câmbio para tudo!!
Vejo-me na periferia no bazar indígena para comprar coco, quiabos
e tomate "cafreal", o mais saboroso. Trazíamos também "cafurro" para puxar a cera do chão que o nosso empregado só largava quando se via nele como num espelho. A monção a chegar com as suas cheias malucas no Umbelúzi e no Licuari.
Os mufanas a correrem atrás de nós, talvez com o estômago vazio mas com um sorriso no rosto como o luar quando está cheio... pedindo,"Senhora dá quihenta..."
Ah, Manela, este texto já li e reli não sei quantas vezes...e as saudades são como o rio dos "Bons Sinais" que nunca se cansava de correr para o palmar...
Eu hoje, estive em Quelimane!
Obrigada Manela.
Um beijo muito carinhoso.
Graça

manuela baptista disse...

Graça Pereira

e eu não sabia

que já tinha viajado em Moçambique...

e fiquei cá com uma fome!

adoro chamuças :)))

beijinhos

manuela