Paula Rego
gato
(desenho a carvão)
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2010/06/03
tempo passado e presente
.
O menino escrevia. A língua de fora, a cabeça ligeiramente de lado, a borracha bem apertada na mão esquerda. "O Carlinhos era uma linda crianca..." O pai disse "então? lê o que acabaste de escrever..." O menino parou, mordeu o lápis, olhou o pai "enganei-me?" "não sei!"respondeu o pai, "lê!" "Ah! é com uma cedilha, pai...". O pai continuou a ditar: "...de cabelos louros e olhos azuis, ponto." "pai?! eu não tenho olhos azuis..." "continua! Faltava-lhe às vezes, virgula, vontade de estudar, ponto e virgula!"
Sentado num caixote de madeira, as pequenas pernas balouçavam ao ritmo das sílabas ditadas pelo pai e apesar das dificuldades da escrita, sentia-se bem, perto dos fornos de cozer as telhas e os tijolos, feliz por poder acompanhar o pai no seu trabalho, de o ajudar a afastar os gatos vadios que por ali abundavam, magrinhos, friorentos, em busca do calor das paredes dos fornos em dias de chuva e esparramados ao sol dos pátios quando a Primavera chegava. Às vezes dava-lhes nomes, o Tosco tímido e feio, o pelo queimado denunciava os perigos a que continuamente escapava ou o Cegueta, grande lutador e brigão embirrento, exibindo as cicatrizes da sua felina e territorial natureza. O rapaz temia os gatos e ainda mais as suas unhas, mas protegia-os da sina dos fornos e muitas vezes escondia na pasta da escola, bocadinhos de queijo ou uma lata de sardinhas, para lhes dar à tardinha.
"Este rapaz tem um fundo bom!" dizia o pai com orgulho e ele pensava "fundo? fundo é o poço e o escuro da noite..." e o pai continuava, "é como as casas, se as suas fundações não são boas e sólidas de que servirá um bom telhado?" e ao ver a sua cara de espanto, "sim! o chão que pisas tem de ser seguro, meu filho! As telhas virão muito depois..."
Tantas horas ficavam ali, o menino a fazer os trabalhos da escola e o pai a ensinar as coisas da vida, até quase ao sol pôr e os homens abandonavam a fábrica e saudavam "até amanhã, se Deus quiser!" e os gatos vadios miavam pelos telhados e o tempo era longo que até doía e o pai e o filho sonhavam que a vida seria sempre assim tão calma e tão quente.
O menino amava o pai e confiava nele como as nuvens confiam no vento e contava-lhe os segredos para além das letras bem desenhadas, do Carlinhos que era uma linda criança, sabia lá ele quem era o Carlinhos! e lindas eram as estrelas que ele gostava de olhar à noite e queria tanto saber quantas eram, mas perdia-se na contagem porque o sono chegava manso e doce e o pai, que o vinha aconchegar já a lua ia alta, perguntava baixinho "contas as estrelas?" e ele respondia, "conto! mas perco-me..." e o pai " amanhã depois da escola, procuramos galhos de árvores e com o meu canivete cortamos e acertamos, uns maiores, outros mais pequenos. Por cada estrela, colocas um pauzinho no parapeito da janela, grande ou pequeno conforme a grandeza da estrela que encontrares..."
Muitas outras noites vieram e a contagem incompleta sempre adiada, o sono de criança vencia o objectivo concreto, jamais impossível, porque de um sonho não se desiste nunca, sob pena de deixarmos de sentir o nosso chão debaixo dos pés.
Por isso ainda hoje no bolso das calças, guarda dois pauzinhos de galho de árvore, um grande e um pequeno, conforme a grandeza da estrela que encontrar.
Sentado num caixote de madeira, as pequenas pernas balouçavam ao ritmo das sílabas ditadas pelo pai e apesar das dificuldades da escrita, sentia-se bem, perto dos fornos de cozer as telhas e os tijolos, feliz por poder acompanhar o pai no seu trabalho, de o ajudar a afastar os gatos vadios que por ali abundavam, magrinhos, friorentos, em busca do calor das paredes dos fornos em dias de chuva e esparramados ao sol dos pátios quando a Primavera chegava. Às vezes dava-lhes nomes, o Tosco tímido e feio, o pelo queimado denunciava os perigos a que continuamente escapava ou o Cegueta, grande lutador e brigão embirrento, exibindo as cicatrizes da sua felina e territorial natureza. O rapaz temia os gatos e ainda mais as suas unhas, mas protegia-os da sina dos fornos e muitas vezes escondia na pasta da escola, bocadinhos de queijo ou uma lata de sardinhas, para lhes dar à tardinha.
"Este rapaz tem um fundo bom!" dizia o pai com orgulho e ele pensava "fundo? fundo é o poço e o escuro da noite..." e o pai continuava, "é como as casas, se as suas fundações não são boas e sólidas de que servirá um bom telhado?" e ao ver a sua cara de espanto, "sim! o chão que pisas tem de ser seguro, meu filho! As telhas virão muito depois..."
Tantas horas ficavam ali, o menino a fazer os trabalhos da escola e o pai a ensinar as coisas da vida, até quase ao sol pôr e os homens abandonavam a fábrica e saudavam "até amanhã, se Deus quiser!" e os gatos vadios miavam pelos telhados e o tempo era longo que até doía e o pai e o filho sonhavam que a vida seria sempre assim tão calma e tão quente.
O menino amava o pai e confiava nele como as nuvens confiam no vento e contava-lhe os segredos para além das letras bem desenhadas, do Carlinhos que era uma linda criança, sabia lá ele quem era o Carlinhos! e lindas eram as estrelas que ele gostava de olhar à noite e queria tanto saber quantas eram, mas perdia-se na contagem porque o sono chegava manso e doce e o pai, que o vinha aconchegar já a lua ia alta, perguntava baixinho "contas as estrelas?" e ele respondia, "conto! mas perco-me..." e o pai " amanhã depois da escola, procuramos galhos de árvores e com o meu canivete cortamos e acertamos, uns maiores, outros mais pequenos. Por cada estrela, colocas um pauzinho no parapeito da janela, grande ou pequeno conforme a grandeza da estrela que encontrares..."
Muitas outras noites vieram e a contagem incompleta sempre adiada, o sono de criança vencia o objectivo concreto, jamais impossível, porque de um sonho não se desiste nunca, sob pena de deixarmos de sentir o nosso chão debaixo dos pés.
Por isso ainda hoje no bolso das calças, guarda dois pauzinhos de galho de árvore, um grande e um pequeno, conforme a grandeza da estrela que encontrar.
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noitegato
(desenho a carvão)
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este é um conto do anoitecer construído com pauzinhos que apanhei por aí, cortei, lixei, acertei
uns maiores outros mais pequenos conforme a grandeza das estrelas que encontrei
uns maiores outros mais pequenos conforme a grandeza das estrelas que encontrei
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Manuela Baptista2010/06/03
23 comentários:
Manuela
E eu reconheci alguns pauzinhos que apanhou por aí e acho que conheço este menino e até os gatos, e senti como o seu pai era sábio e tinha razão, este menino tem "boas fundações" e será sempre um grande Homem.
Adorei.
Beijinhos de boa noite.
Branca
MANUELA BAPTISTA
Conforme a sua grandeza
galhos pequenos ou grandes
mas são as estrelas leveza
do sonho em que te expandes
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 3 de Junho de 2010
Manuela,
que passado delicioso!
um pai sábio
uma criança feliz
a criança cresceu
continua a contar estrelas
"...porque de um sonho não se desiste nunca..."
e a Manuela encanta-nos com sonhos reais.
beijinhos cheios de estrelas
História linda, Manuela.
Parece que hoje, os pais pouco tempo têm para sonhar com os filhos, para lhes ensinar as coisas da vida.
Gatos, sim, continuam a haver e cada vez mais esfomeados. Muitas vezes nem uma côdea de pão para lhes dar nem uma espinha de sardinha.
Gostei muito, Manuela.
Branca
este pai
é todos os pais
que ainda têm tempo para contar pauzinhos com os seus meninos
este menino
é todos os meninos
doces como o mel
o fundo
é aquele que continuamos
a procurar
obrigada por ter adorado!
beijinhos
Manuela
Jaime
bonita quadra!
Manuela
Canduxa
eu também contava as estrelas e dava-lhes nomes
perdida em mapas estelares e em desenhos no céu nocturno
beijinhos
manuela
Benó
é verdade! tempo para dar e receber é um dom
obrigada pelas palavras e pela visita!
...e como está o seu jardim?
beijinhos
Manuela
Manuela!
Gostei da história! mas hoje até podia contar de monstros de três cabeças e das trevas d noite que eu achar tudo lindo!
Estou feliz, Manuela, de VERDADE
Beijos e muitos
Tão feliz que até como as palavras!
Filomena
ai, que me tirou um mostrengo de cima!!
eu também estou feliz sem saber porquê, pois então!
beijos
Manuela
Olá querida
Este é o conto que jamais perde a raíz, uma vez plantado nascerá firme e com o coração cheio de bondade.
Lindo o desenho.
Com muito carinho BJS.
Rufina
bonita a raiz de um conto!
com o coração cheio de ternura
um beijinho
para si
Manuela
"Este rapaz tem um fundo bom!"
E esta rapariga que nos conta a história também o tem...
um fundo de vida bendito num dizer de palavras muito bonitas
num cantar de nos ensinar o bem que pode ter a vida
e assim não deixaremos de sonhar
de desejar que os dias tenham mesmo este encantamento, os nossos dias
e por isso ainda hoje guardo no meu coração muitos pauzinhos de estrelas que entretanto foram sendo vida de um sonho, ao acordar
"O sonho é a ponte
Que vai do finito ao infinito
Incomparável fonte
Presença do que está escrito
Sonhar é o que foi dito
O que a minha alma me aponte
Reconhecimento bendito"
(Jaime Latino Ferreira)
Olá Manuela..! Que bonito foi este conto...!
Olá Jaime..! Que linda poesia, de sonho também do que ainda não foi dito
nem tão pouco foi ainda escrito...
Obrigado em dois abraços por muito ter gostado.
dulce ac
Dulce
que bonito encantamento
tem o seu escrito
porque os fundos são aquilo que se alcança
quando não desistimos nunca de procurar!
e com os dois abraços
fico eu...
Manuela
.
. bom,,, eu aperto sempre a borracha com a mão direita .
.
. quis o destino que fosse assim .
.
. e penso também ter um bom fundo,,, não obstante a vida, ela mesma, por vezes madrasta e severa, ter a infalível capacidade de nos ir alterando na passagem dos dias .
.
. no entanto, acredito que há sempre algo inato na criação de cada ser humano .
.
. que o tempo não consegue destruir .
.
. e acredito em Si, assim transparente, onde a.penas os ganchos, que teimosa.mente seguram o carrapito no seu devido lugar, teimam também em ir aparecendo na radiografia .
.
. um beijo total, querida amiga .
.
. paulo .
.
na consistência
de um canhoto amigo
que se constrói sílaba a sílaba
fundo a fundo
a.penas a metáfora do carrapito permanece o mistério por desvendar
e não vá eu
engolir algum gancho :/
ou chocar com uma madrasta que a esta hora
más são todas as madrastas :((
deixo-lhe o meu acreditar
meu querido Paulo!
e um beijo total
Manuela
Manuela ela ela ela...
sou apenas um eco...eco eco eco...
e sopro-lhe lhe lhe lhe...
um beijinho inho inho inho...
e pauzinhos inhos inhos inhos...
para a menina ina ina ina...
não se perder er er er...
na contagem agem agem agem...
das estrelinhas inhas inhas inhas inhas nhas nhas nhas as as as...
Walter, inho, inho, ão!
agora teve graça
mesmo!!
um beijo
Manuela
Manuela,
Meninos, esta caixinha agora faz ecoooooooo!
Cheguei.ei.ei.ei e venho só traz.er.er.er beiji.nhos.nhos.nhos.
Já estou gaga! :)
Até...
Branca
P.S. Manuela, afinal os meus comentários de férias são mais curtos.
Branca
nas férias...perde-se sempre alguma coisa...
são curtos, mas precisos!
beijinhos
Manuela
Querida Manuela,
tempo escasso que temos para a internet.
Pois empresto o meu dentista rsss desde que venha até cá :-)
Adorei os pot's que ainda não tinha lido e o do menino e as estrelas uma vez mais...digno de figurar num livro ou até numa rubrica da TV para os mais pequeninos e não só...se encantarem.
Penso que seria uma boa aposta para uma qualquer televisão contratarem a Manuela assim como fazem com Prof.Marcelo...seria muitissimo mais interessante.
E...porque encontrei na Manuela uma estrela de um tamanho infinito....deixo beijinhos abracinhos meus e a.m do Bruno, extensivos ao lindo Jaime e também a todos os amigos que aqui passam.
Lisa!!
e eu aqui às voltas com um computador novo, porque ao meu querido pc nem o dentista o salva...e nem a via aqui nesta página
obrigada Lisa, estrelados são vocês!!
beijinhos
Manuela
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