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Ralharam-lhe, zangaram-se, fizeram-na repetir centenas de vezes as cinco vogais, começando em a terminando em u, esquecia-se do i, comia o e, deitava fora o o!
Não a deixaram ir ao recreio para aprender e pendurada na janela, com inveja dos risos lá fora, bocejava e pensava, para que quero eu estes cinco desenhos, tão pequeninos, tão curtinhos, não sei o que dizem e eu não gosto deles, quero trepar aos castanheiros, apanhar os ouriços, ser tão esperta e não me picar, abri-los, roubar-lhes as castanhas, encher os bolsos e depois comê-las na aula, cuspindo a pele fina como um papel, provocar a professora com o som de um roedor e ela dizer: "Menina? O que é que está a comer, não tem juízo nenhum!", e responder "a! a primeira das primeiras vogais, serve para isto: Ah!"
Um dia sem saber como, pensou noutra coisa qualquer, por exemplo, bolo de chocolate e papagueou as vogais e depois as consoantes e começou do fim para o princípio e chegada ao meio saltou e leu dez páginas inteiras e a professora gritou "Já chega!", as enjoadas das outras meninas tapavam os ouvidos e diziam "Que parva!", que era um grande insulto para meninas enjoadas...então calou-se e para não irritar mais ninguém pegou no lápis e começou a escrever. Nunca mais parou.
Escrevia nos cadernos e nas capas dos cadernos, nos papéis de embrulho para os presentes de Natal, nos recibos da água e da luz, nos sobrescritos guardados nas gavetas, nas caixas de cartão, nos guardanapos de papel, no papel de seda, nos cadernos de desenho dos irmãos e quando já não havia mais espaço, escrevia na palma da mão. Um dia escreveu um poema na parede branca da sala e perguntaram-lhe: "Mas afinal qual é o teu sonho? O que farias se vivesses numa casinha toda feita de papel?"
Só muito mais tarde percebeu que existiam casas assim, frágeis, leves, à espera de serem preenchidas, de sonhos e de letras. E nas paredes das salas contou aventuras,viagens e histórias de marear, os tectos dos quartos, encheu-os de canções de embalar, contos de meninos perdidos, de leões sem coragem, de homens de lata, de sereias e de gansos com voz para falar. Na cozinha, as receitas de bolo de chocolate espreitavam nas portas dos armários e dos corredores compridos saltavam letras escuras para aterrorizar! Nos quartos abandonados virados a norte, escrevia histórias de medo e morte, das que tiram o último sopro de vida a um animal assustado.
Às vezes, quando estava vento, a casa dobrava-se, vincava-se e saía a voar, mas se a tarde estava calma pousava como um barco sobre o azul estonteante do mar. Nos dias de tempestade desfazia-se, os pedaços de papel desligavam-se solitários e tristes para se reencontrarem na manhã seguinte sobre um quente campo de papoilas vermelhas. Outras vezes, encolhia-se com o frio e acordava toda amarrotada no bolso de um poeta.
Ele perguntou, "O que faria se vivesse numa casinha toda feita de papel?" ela respondeu, "Escrevia..."
Não a deixaram ir ao recreio para aprender e pendurada na janela, com inveja dos risos lá fora, bocejava e pensava, para que quero eu estes cinco desenhos, tão pequeninos, tão curtinhos, não sei o que dizem e eu não gosto deles, quero trepar aos castanheiros, apanhar os ouriços, ser tão esperta e não me picar, abri-los, roubar-lhes as castanhas, encher os bolsos e depois comê-las na aula, cuspindo a pele fina como um papel, provocar a professora com o som de um roedor e ela dizer: "Menina? O que é que está a comer, não tem juízo nenhum!", e responder "a! a primeira das primeiras vogais, serve para isto: Ah!"
Um dia sem saber como, pensou noutra coisa qualquer, por exemplo, bolo de chocolate e papagueou as vogais e depois as consoantes e começou do fim para o princípio e chegada ao meio saltou e leu dez páginas inteiras e a professora gritou "Já chega!", as enjoadas das outras meninas tapavam os ouvidos e diziam "Que parva!", que era um grande insulto para meninas enjoadas...então calou-se e para não irritar mais ninguém pegou no lápis e começou a escrever. Nunca mais parou.
Escrevia nos cadernos e nas capas dos cadernos, nos papéis de embrulho para os presentes de Natal, nos recibos da água e da luz, nos sobrescritos guardados nas gavetas, nas caixas de cartão, nos guardanapos de papel, no papel de seda, nos cadernos de desenho dos irmãos e quando já não havia mais espaço, escrevia na palma da mão. Um dia escreveu um poema na parede branca da sala e perguntaram-lhe: "Mas afinal qual é o teu sonho? O que farias se vivesses numa casinha toda feita de papel?"
Só muito mais tarde percebeu que existiam casas assim, frágeis, leves, à espera de serem preenchidas, de sonhos e de letras. E nas paredes das salas contou aventuras,viagens e histórias de marear, os tectos dos quartos, encheu-os de canções de embalar, contos de meninos perdidos, de leões sem coragem, de homens de lata, de sereias e de gansos com voz para falar. Na cozinha, as receitas de bolo de chocolate espreitavam nas portas dos armários e dos corredores compridos saltavam letras escuras para aterrorizar! Nos quartos abandonados virados a norte, escrevia histórias de medo e morte, das que tiram o último sopro de vida a um animal assustado.
Às vezes, quando estava vento, a casa dobrava-se, vincava-se e saía a voar, mas se a tarde estava calma pousava como um barco sobre o azul estonteante do mar. Nos dias de tempestade desfazia-se, os pedaços de papel desligavam-se solitários e tristes para se reencontrarem na manhã seguinte sobre um quente campo de papoilas vermelhas. Outras vezes, encolhia-se com o frio e acordava toda amarrotada no bolso de um poeta.
Ele perguntou, "O que faria se vivesse numa casinha toda feita de papel?" ela respondeu, "Escrevia..."
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Agradeço ao Walter, a pergunta que me fez
e à Filomena, a imagem desenhada no céu!
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Manuela Baptista
Estoril,12 de Fevereiro 2010
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25 comentários:
Querida Manuela,
quando li essa pergunta do Walter no outro post pensei logo que dali saíria um belo conto...
Que lindo!!! O Bruno já o leu agorinha mesmo e disse : "a Manuela escreve mesmo muito bem gostava de saber imaginar as coisas assim com tantos detalhes. Eu perco-me no pensamento."
Tudo o que eu possa dizer será pouco, acho que nasceu para escrever e encantar quem a lê. devia ser "punida" por lei de não ter uns livros para todos poderem oferecer aos filhos:-)
Beijinhos meus com carinho
Lisa, seja bem vinda!
(e com os problemas da net resolvidos?)
pois é, a pergunta do Walter inspirou-me...mas olhe que essa expressão do Bruno "Eu perco-me no pensamento.",é muito profunda e eu às vezes também me perco no pensamento!
Grata pela sua amizade
muitos beijinhos e um aperto de mão :) ao Bruno.
Manuela
ehehehe... estou aqui na sua despensa, já li a casa quase toda, agora estou a ler as suas receitas... ái Jesus o que para aqui vai... receita de doce de letras? compotas de vento? pudim de água do mar polvilhado com areia do deserto? folhados de poesia? Receita infalível para afastar curiosos?
Desculpe Mnuela, vou já sair, mas levo comigo a receita de chocolate da sua avó, parece-me normal...
Por onde é que eu saio? estou todo atordoado com tanto secretismo, alquimias, poesias e magias , sei lá...?
Ah, a porta de saída deve ser a mesma por onde entrei, do lado de fora dizia "bem vindo à casa da poesia", do lado de dentro diz, " se está saciado pode sair e obrigado".
Já estou saindo, já estou saindo...
Gaita! esqueci a receita do bolo de chocolate em cima da "Folha Seca e Fina".
Já cá não estou!
Walter, cuidado!
a porta de saída
nunca, mas nunca, é aquela por onde entrámos!
As casas de papel têm truques, armadilhas, poços secretos, alçapões escondidos, recados escritos à mão...
Já os folhados de poesia são claros como a água, dá-se uma trinca e ficamos a versejar o resto da noite.
A receita do bolo de chocolate está aí, nesses pássaros-folha é só copiar!
Um beijo
e já viu no que deu uma pergunta tão simples?
Manuela
É a minha vez de perguntar... posso entrar na tua casinha de papel? Trago oferendas de palavras e sonhos,para sonhares com letras e escreveres frases de sonho e lápis de cores para escreveres ao pintares as paredes e pintares ao escrever. És a anfitriã perfeita deliciando as visitas, permitindo-lhes a leitura de tão fina casa... :) Beijinho
Pode sim, Eva!
mas baixe a cabeça porque às vezes o papel dobra-se e a casa abana...
e também pode escrever nas minhas paredes e fazer todas asneiras que quizer...desde que goste das minhas histórias!
um beijo
Manuela
FOLHA VERDE
Se és folha seca
casa
fina
tua folha rega-se
a cada esquina
e quando se rega a folha
dobra
ensina
é folha verde
e ar
luz
clorofila
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 12 de Fevereiro de 2010
Fátima
eu também conheci uma menina assim, era eu!
Primeiro que atinasse com as vogais foi um verdadeiro suplício, mas depois não parei...
No entanto, não sou triste, nem pesco nada de grego, tive mais sorte do que a sua menina triste, mesmo sendo bela como a Isadora Duncan...
um beijo
Manuela
Jaime
"folha seca e fina feita com toda a espécie de substâncias vegetais reduzidas a massa, para escrever, imprimir, embrulhar"
o papel!
cheio de clorofila
verde
feito de verde
que ilumina
a tua folha verde!
Manuela
oh...
e não é que a Manuela confessou!
escrever,
contar histórias mágicas,
que nos envolvem num manto de magia e nos fazem adormecer no ceu
azul cheio de papéis a voar,
é mesmo como a sinto.
Para a melhor contadora de histórias mágicas que conheço
o meu beijinho grato por tão lindos
serões que me proporciona.
Escrevia!...
Pois eu nem sei o que escrever,diante de histórias tão maravilhosas, que nos prendem do começo ao fim!
Então escrevo simplesmente: Escreva! Parabéns!E nos encante sempre com sua perfeita lapidação...De pedras,folhas,mar...
Com carinho,
Linda Simões
Mais uma história com sabor a realidade.
Que perguntas hei-de fazer nesta casa de papel onde tudo se deseja escrever?
Canduxa
confessionalmente admito,
que as vogais são um paradoxo para mim...
Serões com histórias é uma coisa boa, não é?
beijinhos
Manuela
Linda
...está a ver que também escrevia!
Maravilhosos são vocês todos!
Beijinhos
Manuela
Luís
pode perguntar, por exemplo
"onde é que está o papel de carta??"
obrigada pela presença!
um abraço
Manuela
Vir aqui é bom, muito bom, e ler
os comentários também é.
Beijinhos/Irene
Irene
estar aqui também é bom...
Obrigada e venha sempre!
beijinhos
Manuela
Manela
Quando li num dos comentários a uma outra história tua " o que farias de vivesses numa casa de papel" eu pensei logo que com aquela dica sairia das tuas mãos, dos teus pensamentos, um conto maravilhoso... e didáctico. Não me enganei!
Imagino o que uma criança sentiria ao ler todo este enredo do papel com as vogais, a menina que não queria aprender e depois que encontrou o "E"...não parou escrever... Sentir-se-ia deliciada como eu!
As crianças esperam pelos teus livros e os adultos (ás econdidas)
também!
Um beijo grande
Graça
Quando iniciei a leitura desta história ri-me porque últimamente ando a comer muitas letras, mas perdi-me depois pela prosa poética da Manuela e desta menina que escrevia em tudo quanto era sítio.
O Walter só podia fazer uma pergunta tão profunda quanto esta e a Filomena, uma romântica e uma coleccionadora de imagens fabulosas ajudou a dar um toque interessante a este texto.
É de meninas que escrevem assim pelas folhas em branco e pelas paredes das casinhas de papel, que se fazem grandes escritoras.
Beijinhos, Manuela.
Desejo-lhe um bom Domingo.
Olá, amiga!
Passei para rever seu cantinho e saber das novidades...
Seu cantinho está cada vez mais lindo!... surpreendente...
Um ótimo fim de semana!
Ótimo Carnaval!
Só alegria!...
Beijinhos.
Itabira - Brasil
Graça
repescando perguntas e respostas
inspiro-me no que a vida tem de real.
O livro? Qualquer dia envio um mail às editoras :))
beijinhos
Manuela
Brancamar
há imensa gente que come letras quando escreve na net, não sei se é a pressa, se são os pc que se vingam da nossa falta de tempo...
O Walter merece uma história bonita e a Romântica nem me ligou nenhuma :)
anda por aí, em férias de Carnaval já farta de blogues!
Beijinhos Branca e bom Domingo!
Manuela
Inês
obrigada pela visita, já tinha saudades suas...
E aí gente de Itabira, já começou o desfile??
Beijinhos
Manuela
Olá,
Ainda bem que a tua casa de papel está de portas abertas, para ir saboreando o que fazes com as letras de que não gostavas e que hoje te fazem levitar...
bjs
marisa
Marisa
e ainda bem que entrou!
A casinha, está neste momento toda ensopada da chuva que não pára de cair...
Amanhã estendo-a ao sol!
beijinhos
Manuela
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