I - O LUGAR ONDE OS INSTANTES SE GUARDAM
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Sentava-se sempre no mesmo lugar à janela, do lado do mar, os outros passageiros de costas para si.
Sem pressas, retirava da pasta um bloco de desenho A3 e um lápis de carvão e observava as pessoas, contemplava-as, por fim elegia uma, invariavelmente uma mulher. E o jovem desenhava, rápido, certeiro, luz e sombra em cada manhã.
De costas, de perfil, um pescoço fino ligeiramente inclinado, a beleza de uma nuca, as rugas de um rosto, um sorriso, pálpebras cerradas num dormitar sereno.
Quem ficava perto dele pasmava com o seu talento, cúmplice daquele elo de ligação entre o criador e o objecto criado, porque os modelos, esses, viajavam na ignorância de que eram inspiradores de arte.
Às vezes tinha tempo, virava a folha e esboçava outro rosto, até à última estação. Os passageiros saíam apressados e o rapaz ficava para o fim, desajeitadamente segurava o bloco, o lápis, o casaco e de joelhos no chão da gare, retirava da pasta uma lata de laca L’Oréal e fixava os momentos aprisionados durante a viagem.
Um dia uma rapariga protestou e ali no meio de todos repetia, era só o que faltava, este gajo é doido a desenhar os outros, não tem mais nada que fazer, eu não dei autorização!
Falava muito alto, respirava vulgaridade e agressividade.
Uns diziam, tem toda a razão! Alguém observou, mas está bonito! E ninguém tinha pressa.
O rapaz, acossado de todos os lados, continuava de joelhos, a lata na mão.
E então de um golpe separou a folha do bloco e entregou-a à rapariga, feia, mal vestida, agressiva e vulgar e disse baixinho, peço desculpa é seu!
Na folha A3, desenhado a lápis de carvão, o rosto de uma rapariga ligeiramente inclinado. Do pescoço, uma curva perfeita; dos olhos, um caminho de luz; do nariz, o equilíbrio entre a estrutura do osso e o sombreado da pele, aprisionado o momento único, em que uma rapariga feia, mal vestida, agressiva e vulgar se transfigurou.
-Esta, não sou eu!
E rasgou a folha do bloco A3 com o seu retrato a carvão.
Sem pressas, retirava da pasta um bloco de desenho A3 e um lápis de carvão e observava as pessoas, contemplava-as, por fim elegia uma, invariavelmente uma mulher. E o jovem desenhava, rápido, certeiro, luz e sombra em cada manhã.
De costas, de perfil, um pescoço fino ligeiramente inclinado, a beleza de uma nuca, as rugas de um rosto, um sorriso, pálpebras cerradas num dormitar sereno.
Quem ficava perto dele pasmava com o seu talento, cúmplice daquele elo de ligação entre o criador e o objecto criado, porque os modelos, esses, viajavam na ignorância de que eram inspiradores de arte.
Às vezes tinha tempo, virava a folha e esboçava outro rosto, até à última estação. Os passageiros saíam apressados e o rapaz ficava para o fim, desajeitadamente segurava o bloco, o lápis, o casaco e de joelhos no chão da gare, retirava da pasta uma lata de laca L’Oréal e fixava os momentos aprisionados durante a viagem.
Um dia uma rapariga protestou e ali no meio de todos repetia, era só o que faltava, este gajo é doido a desenhar os outros, não tem mais nada que fazer, eu não dei autorização!
Falava muito alto, respirava vulgaridade e agressividade.
Uns diziam, tem toda a razão! Alguém observou, mas está bonito! E ninguém tinha pressa.
O rapaz, acossado de todos os lados, continuava de joelhos, a lata na mão.
E então de um golpe separou a folha do bloco e entregou-a à rapariga, feia, mal vestida, agressiva e vulgar e disse baixinho, peço desculpa é seu!
Na folha A3, desenhado a lápis de carvão, o rosto de uma rapariga ligeiramente inclinado. Do pescoço, uma curva perfeita; dos olhos, um caminho de luz; do nariz, o equilíbrio entre a estrutura do osso e o sombreado da pele, aprisionado o momento único, em que uma rapariga feia, mal vestida, agressiva e vulgar se transfigurou.
-Esta, não sou eu!
E rasgou a folha do bloco A3 com o seu retrato a carvão.
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Durante dois anos, no comboio das oito e dezanove, este rapaz foi meu companheiro de viagem com a sua pasta e a laca L’Oréal, fixador ideal de quem não tem muito dinheiro.
Silenciosamente partilhámos, este jogo inquietante que é procurar nas pessoas e nos objectos aquele momento em que atingem uma calma, uma interrogação, um estar que parece eterno.
Não sei se continuou a desenhar, se é um grande artista ou se também ele rasgou todas as folhas do seu bloco, mas sei que os instantes que aprisionou devem permanecer algures, belos, exactos, intactos.
Como música que trauteamos e fica guardada no ouvido de Deus.
Silenciosamente partilhámos, este jogo inquietante que é procurar nas pessoas e nos objectos aquele momento em que atingem uma calma, uma interrogação, um estar que parece eterno.
Não sei se continuou a desenhar, se é um grande artista ou se também ele rasgou todas as folhas do seu bloco, mas sei que os instantes que aprisionou devem permanecer algures, belos, exactos, intactos.
Como música que trauteamos e fica guardada no ouvido de Deus.
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Esta é uma página ainda sem neve, mas que antecede a própria neve. Não tem razão de ser, como muita coisa na vida, daí a sua intrigante justificação.
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Será que vai nevar no Natal? - "Y Aura-t'il de la neige à Noël?" - 1996 - filme realizado por Sandrine Veysset
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Manuela Baptista
Estoril, 1 de Dezembro 2009
46 comentários:
Continuar a pensar que algo não está errado é uma forma superficial de acreditar que continuamos certos Abraço.
Manuela..do Jaime saltei para aqui..
Que Maravilha.
É sempre a mesma palavra que me ocorre quando termino de ler as histórias que nos escreve e as que li, e esta é-o Lindíssima!
Sempre de afectos sempre de encontros mesmo que no maior silêncio
O lugar onde os instantes se guardam...será que o é, nos nossos corações?! Os mais bonitos são-no, para mim..no mais profundo dos nossos corações.
A rapariga que não era e que não estava bem, era-o mal vestida agressiva, mas será que o era feia?!
Afinal o nosso rapaz viu-a diferente, o desenho até estava bonito...!?
E agressiva esta rapariga, que o seria talvez feia, de tão zangada estar com ela, e com a vida, acabou com aquele momento que até podia ser de magia, mas não foi.
Este não foi um instante de magia .... para nos lembrarmos um dia.
Mas muitos outros instantes, te-lo-ao sido, de pura magia de fantasia, para nos lembrarmos um dia quando nos faltar a magia...
E este rapaz era-o Maravilhoso!
E eu num cantinho lá bem no fundo do meu coração guardo-a esta história de magia, para que fique eterna, para que esses instantes permaneçam em mim, belos, exactos, intactos.
E esta história não teria sido sem este rapaz contemplativo que no seu silêncio também de mar, criava a obra, ignorada por quem inspirador o fora.
E este comboio prosseguiu viagem, sabe-se lá para onde(?)
Como também não sabemos do rapaz... não faz mal, temos aqueles momentos e o lugar onde os mesmos ficarão para nós,
Para sempre.
Muitos beijinhos,
Manuela "Será que vai nevar no Natal?"
Dulce
Manela:
Sei que quando chego aqui me vou maravilhar! Linda esta história do rapaz que desenhava perfis, durante a viagem de comboio " rápido,certeiro, luz e sombra em cada manhã". E o seu talento era tão grande que encontrava beleza numa rapariga feia, mal educada e vulgar. Para além do seu talento, a sua alma era também bonita.
Vou acreditar que o rapaz continuou a desenhar e um dia, numa dessas viagens de comboio, houve alguém que lhe deu uma oportunidade. Já fêz exposições e o seu nome é conhecido.
Nós é que não sabíamos que era o rapaz do comboio...
Um beijo.
Graça
Nota:
Embora gostassemos,acho que não vai nevar no Natal! Mas tenho uma amiga que é mágica e vive perto do mar...talvez ela consiga juntar a espuma toda do mar para que este, seja um Natal com neve!
Acreditem, ela faz milagres!!!
Rebelde
É.
Não percebo bem o que é que está errado, mas talvez seja uma forma de rebeldia, não?
Um abraço
Manuela Baptista
Dulce
Se a música que trauteamos está no ouvido de Deus
os instantes de beleza
que captamos
que roubamos
ou que protagonizamos
podem estar em milhões de corações ou nos olhos de Deus.
Isto foi apenas o capítulo I...
"Será que vai nevar no Natal?"
um beijo
Manuela
Graça
Já tinha saudades!
Este rapaz é verdadeiro e quando eu ainda morava na Parede e apanhava o comboio das 8:19 para Cascais, onde trabalhava, já o encontrava no seu posto a desenhar.
Sei também, por outras pessoas, que ele entrava sempre no Cais do Sodré.
Eu é que tive a sorte de o encontrar!
Quanto à neve, logo se verá...
um beijo
Manuela
FEIA
Feia
a rapariga era tão bela
que nem se via
nem em si própria se revia
nem no pintor
que a esboçava
dando-lhe magia
Rasgou-a de si mesma
e ainda hoje
chora esse dia
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 1 de Dezembro de 2009
Jaime:
Que linda esta poesia á menina feia que um dia foi linda aos olhos de alguém e...nunca o soube!
Um beijo
Graça
GRAÇA PEREIRA
Minha Amiga,
Muito obrigado!
Um beijinho para Si também
Jaime Latino Ferreira
Estoril, 1 de Dezembro de 2009
Jaime
bonita poesia!
Graça
beijinhos!
Manuela
. [...] .
. do alento de um moço traduz.se um esboço enquanto o trilho é um troço .
. de uma visão caminheira entre.linhas de uma de.composição latente .
. ,,, .
. o traço é um passo de quem nunca emergiu . o resultado é o aço de quem nunca sentiu .
. .m.a.n.u.e.l.a. "esta é a hora de coisa nenhuma, os braços são um gancho, em ponto morto" .
. o seu dizer é des.lumbre . e o lume que acende o cume da mais alta montanha coberta de neve .
. um beijo total .
. sempre e para sempre,,, .
. paulo .
Bom dia, Manuela. (10.40)
Lindo como sempre, mas como disse Graça você fará a mágica de transformar a espuma do mar em flocos de Neve, mas caso não aconteça ainda será Natal.
Beijos
Renata
Mesmo que não seja um Natal branquinho é de certeza um Natal recheadinho de histórias.
Beijinhos
Filomena
Fátima
Contracenando
com Bobby Mcferrin não é preciso comentar... o que aliás fez tão bem!
um abraço sentido
Manuela
Paulo
eu queria
literalmente
acender o cume
da mais alta montanha
...
"esta é a hora de coisa nenhuma, os braços são um gancho, em ponto morto"
...aqui
ainda estou à procura...
enquanto não encontro
o gancho
coloco-o no cabelo
um beijo
Manuela
Renata
....ainda...
deste lado do mar
que nestes dias chuvosos
está bravo e louco
com a espuma a crescer
um beijinho
Manuela
Filomena
recheado de histórias para contar a uma menina ainda pequenina
que
terá a sorte de comer bolinhos de bacalhau e arroz de feijão...
beijinhos
manuela
"(...) depois construo-as como quem faz uma casa, com paciência e com amor..."
É realmente isso que a Manuela, arquitecta das palavras e engenheira da mente humana, muito bem faz. Gostei muito deste conto. Há algo de profundo, de sublime, que ultrapassa a maioria das histórias que "empapam" os blogues.
Beijinho com ternura.
António
António
obrigada pelas palavras que para mim
tão bem arquitectou e que me arredondaram o coração.
Um beijo
Manuela
manuela,
belíssimo!
um beijo.
Betina
obrigada por ter passado por aqui!
um beijo
Manuela
Manuela,
Hoje agora
umas palavras para si,
não minhas
mas que sim são-nas para Si
e também a propósito da história que nos trouxe,
do rapaz que olhava, contemplava...
"Impressão digital
Os meus olhos são uns olhos.
E é com esses olhos uns
Que eu vejo no mundo escolhos
Onde outros com outros olhos,
Não vêem escolhos nenhuns.
Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores
Uns outros descobrem cores
Do mais formoso matiz.
Nas ruas ou nas estradas
Onde passa tanta gente,
Uns vêem pedras pisadas,
Mas outros, gnomos e fadas
Num halo resplandecente.
Inútil seguir vizinhos,
Querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.
(antónio gedeão)
Beijinhos grandes,
Dulce
Dulce
Obrigada pelo poema!
"Cada um é seus caminhos" e o poeta sabe do que fala.
beijinhos
Manuela
Mais um belíssimo texto, nessa interrogação dum tempo de neve e dum natal...
talvez neve este natal.
Um beijo
Chris
Chris
interrogação de um tempo de neve
bonito comentário o seu!
um beijo
Manuela Baptista
Hoje passei com alguém especial, e ele assinará este post.
"Enquanto não encerramos um capítulo,
não podemos partir para o próximo.
Por isso é tão importante deixar certas coisas irem embora,
soltar, desprender-se.
As pessoas precisam entender que ninguém está jogando com cartas marcadas, às vezes ganhamos e às vezes perdemos.
Não espere que devolvam algo, não espere que reconheçam seu esforço, que descubram seu gênio, que entendam seu amor. Encerrando ciclos.
Não por causa do orgulho, por incapacidade ou por soberba,
mas porque simplesmente aquilo já não se encaixa mais na sua vida.
Feche a porta, mude o disco, limpe a casa, sacuda a poeira.
Deixe de ser quem era, e se transforme em quem é."
(Fernando Pessoa)
Oi, amiga!
Que bela história!
Gosto de tudo que você escreve.
Você é muito, muito talentosa.
Um ótimo fim de semana!
Beijinhos.
Itabira - Brasil
Almas Zangadas com a vida não se reconhecem em traços belos.
Manuela, não quer fazer uma visita ao novo blog da Anima Mundi onde a beleza marca encontro?
Um grande beijinho,
Maria Emília
Fernando
ouvir-te assim com sotaque brasileiro deixou-me meia baralhada
mas até tem graça!
Tenho de te confessar que eu às vezes, estando num capítulo, dou uma espreitadela nos seguintes, mas nunca perco o interesse pela hitória, se ela for verdadeiramente apaixonante.
"Deixe de ser quem era, e se transforme em quem é."
Claro que tu seguiste à risca esta máxima e assim também és Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e mais uns quantos!
Quanto a nós, neste blog, pensamos que a Renata, despiu-se da Alegria e está com saudades de futuro.
Um abraço a todos os teus eus
Manuela Baptista (Oui? C'est moi.)
Inês
Obrigada pela sua visita e palavras carinhosas!
E é bonita, Itabira?
Bom fim de semana para si também
beijinhos
Manuela Baptista
Maria Emília
mas está todo vaidoso o blog!!!
Ainda não lhe dei a volta toda, mas tem matéria com muito interesse.
beijinhos
Manuela
Boa navegação, a que se faz nete blog. Beijos
. neve ou não . hoje,,, apeteceu.me vir aqui num instantinho . numa corrida entre salpicos de chuva fina . dar.lhe um beijinho e um xi.coração muito apertadinho, com todo o respeito que tudo de Si me merece .
. :) .
. bom fim de semana,,, .
. paulo .
Há pessoas que não se reconhecem no olhar dos outros...
Um texto belíssimo! Também muito belo é o filme, que também vi.
Um beijo.
Henrique Dória
obrigada marinheiro!
pela presença e pelas palavras
um abraço
Manuela Baptista
Paulo
assim
fazendo o sol brilhar entre salpicos de chuva
a neve fica adiada
mas digo-lhe
que sinto o coração aconchegado
em algodão em rama!
um beijo e um abraço
Manuela
Graça Pires
Grata pelo seu olhar!
um beijo
Manuela
Manuela,
a história é linda,
tão linda como o rapaz
que sabendo-se portador de enorme luz interior,
projectou toda a sua beleza e luz
no exacto momento que pintou a rapariga feia.
Essa não se reconheceu,
não sabia que existem os olhos da alma...
Ao som de uma música divina pergunto-me:
Será que vai nevar este Natal?
Volto rapidamente à minha infância…e vejo os meus olhos brilhar….
gostava tanto!
Para a maravilhosa contadora de histórias, um mágico beijinho com muita luz
canduxa
Quando a Canduxa
aqui entra, acendem-se as luzes todas da rua e eu até fico a pensar que os pirilampos já não estão em vias de extinção!
Obrigada, pela sua magia
Um beijinho
Manuela Baptista
"Será que vai nevar no Natal?"
Será que vamos mudar no Ano que vem,em breve?...
Será que vamos olhar o outro sem preconceito?...
Será que vamos ser humildes e puros de coração como o rapaz do texto?...Que pede desculpas por enxergar a beleza do outro, seu próximo?...
Será?...
Que vamos esperar muito pela próxima história com mar ao fundo?
Será???????
Beijoquinhas
Está a caminho, Linda!
O Jaime é que usurpa o pc...embora o ladrão seja eu.
Olhando os outros sem preconceito
um beijo
Manuela
Fátima
já ouvi a música!
Eu gosto dos mundos
da poesia
e dos desenhos
de Tolkien.
É o meu lado mais básico ;)
um abraço
Manuela
"...este rapaz foi meu companheiro de viagem...
Silenciosamente partilhámos, este jogo inquietante que é procurar nas pessoas e nos objectos aquele momento em que atingem uma calma, uma interrogação, um estar que parece eterno."
A Manuela partilhou e fixou com a laca da alma as mesmas imagens, os momentos em que nas suas histórias transfigura as personagens e lhes empresta aquele momento de serenidade, é o momento da criação, que é sempre único.
Parabéns por esse talento.
Beijos
venho até aqui pela mão do Paulo.
tem um talento especial para narrativa.
gostei!
Branca
por um triz me escapava!
Não me envaideça, afinal é com todos vocês que o talento se aprende e cresce, ou não...
beijinhos
Manuela
Piedade
a mão que a conduziu
é uma bela mão!
Obrigada pelas palavras
um abraço
Manuela
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